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Análise | Nioh

Desde os primeiros movimentos com um controle na mão, o videogame era conhecido por ser extremamente desafiador. Testando os reflexos dos jogadores nos arcades de Space Invaders e Pac-Man, alguns eram mais fáceis e amigáveis para aqueles que apenas queriam passar um tempo, enquanto outros eram notoriamente conhecidos pela sua dificuldade punitiva. Mas foi na era dos primeiros consoles de mesa que tivemos jogos como Battletoads e Mega Man do NES, que eram feitos milimetricamente para os jogadores que queriam testar os limites de seus reflexos.

De início, a dificuldade era muitas vezes inserida no jogo para que ele durasse mais tempo, assim o jogador sentia que o dinheiro tinha sido bem gasto e não percebia que o game consistia de 5 ou 6 telas. O tempo foi passando e as desenvolvedoras acabaram mudando de mentalidade e decidiram ir para o lado oposto. Para atrair mais e mais jogadores inexperientes era necessário dificuldades mais leves e níveis de aprendizado mais convidativos. E  ainda existiam aqueles que lembravam de um período com jogos mais desafiadores, e por consequência, davam uma sensação maior de recompensa pelo esforço do jogador.

Muitos alegam que foi a franquia Souls da From Software que retornou com a dificuldade no mundo dos games, mas se esquecem de Ninja Gaiden (2004, originalmente exclusivo de Xbox), produzido por um estúdio da Tecmo (antes da fusão entre ela e a Koei), que ficou famoso por não só ressuscitar a franquia de Ryu Hayabusa, mas passar a sensação de dificuldade extrema da época punitiva do original de NES direto para os consoles modernos, além de um gameplay afiado e game design intuitivo. Tal time se tornaria o Team Ninja, e dali em diante teria a reputação de criar experiências desafiadoras para os que se intitulam “gamers hardcore”. Anos se passaram e a equipe que outrora estabeleceu um patamar de dificuldade retorna com um game em produção há mais de 10 anos: Nioh.

Mas será que ele faz jus ao passado da equipe? O que o Team Ninja trouxe para um gênero que já está tão bem estabelecido como o gênero de RPG de ação?

Um Estranho no Ninho (de Youkais)

A história narra a jornada de William Adams (baseado em uma figura histórica de mesmo nome), um bravo navegador inglês que se vê preso em uma torre em Londres logo após seu Espírito Guardião, chamada Saorise, ser capturada pelo sádico alquimista Edward Kelley, que deseja utilizar os poderes de detecção da fada para obter um mineral precioso chamado Amrita, criando assim um exército de youkais (os demônios da mitologia japonesa) e mortos-vivos. Após escapar da Torre onde estava aprisionado, William parte para o Japão em busca de sua companheira, levando-o a se envolver em uma guerra entre clãs e famílias pela unificação do país.

A trama é uma mistura interessante de figuras históricas reais com elementos fantásticos da mitologia japonesa. Personagens como Hattori Hanzo e Tokugawa Ieyasu, ambos aliados de William e importantes elementos para que seu objetivo seja alcançado, são adaptações de pessoas que realmente existiram. Quem está acostumado com o contexto político-histórico do Japão por jogos como Samurai Warriors e Dinasty Warriors estará em casa para entender os personagens.

Acaba sendo mais linear e com uma narrativa mais tradicional e convidativa do que jogos como Dark Souls e Bloodborne, onde o personagem principal era um mero avatar do jogador e a história é fragmentada e pouco explicada. Apesar do tom sério da situação e se basear em pessoas e momentos reais, a história não esquece de colocar momentos peculiares e até bem-humorados. Como os fofos Espíritos Guardiões mascotes de generais e líderes, pulando de lá pra cá na cabeça de seus mestres, sendo que William é o único que pode vê-los.

Infelizmente, o protagonista é um daqueles personagens que se saem melhor de boca fechada, já que além dos diálogos cafonas, a dublagem em inglês é preguiçosa e sem personalidade. Enquanto os outros personagens dialogam em japonês, os poucos personagens estrangeiros da história falam a língua inglesa. Essa mistura interessante só é interrompida quando se percebe a diferença na qualidade dos dubladores orientais e ocidentais. Apesar dos problemas, tudo isso é amarrado em uma excelente adaptação em português das legendas.

Tirando as vozes e os diálogos um tanto caricatos, o game sabe muito bem que a história não é a motivação maior para o jogador, já que há curtas cutscenes no começo e no fim de cada missão apenas para embasar os acontecimentos. O jogo não perde tempo tentando explicar muito de sua própria mitologia, deixando detalhes no glossário de personagens e criaturas. O que funciona muito bem para o ritmo do gameplay, que é o verdadeiro ponto forte da experiência.

A jornada para ser um Nioh

 Como já dito, Nioh pega emprestado elementos da franquia Souls mas não se atém a somente a sua fórmula básica, trazendo novidades e criando novos parâmetros para o gênero. Não se engane em apenas vê-lo como um mero clone, o jogo na verdade busca muito da raiz do seu estúdio, o Team Ninja, para dar a mesma fluidez de combate que um game do Ninja Gaiden. Se pudéssemos resumir em apenas comparações, pode-se dizer que o jogo tem a estrutura de um Dark Souls com a velocidade de um game de Ryu Hayabusa. Há mais elementos de hack’n slash misturados com RPG de ação do que em qualquer título Souls ou Bloodborne.

As missões são divididas em fases no mapa. Cada área oferece a missão principal e também algumas missões paralelas, que podem ser encontradas após terminá-la pela primeira vez. Cada sidequest altera alguns elementos e posições de tesouros e inimigos, o que não deixa o jogo cansativo nem em suas missões secundárias. Fazer essas missões o tornará mais apto para avançar no mapa, tanto melhorando seu personagem quanto encontrando novos aliados que ajudarão a melhorar seus equipamentos. Além das fases especiais chamadas Missões Crepusculares, desafios ainda maiores em cenários previamente visitados. Essas missões vão sendo trocadas aleatoriamente e (geralmente) tem níveis de desafio bem maiores do que as missões comuns. O jogador provavelmente precisará passar por algumas delas para adquirir equipamento e level o suficiente para avançar na história, isso traz certo alívio já que toda ajuda é necessária devido a dificuldade do jogo.

Para ajudar em sua jornada, William tem um arsenal robusto e extremamente customizável. Passando pelas armas brancas como katanas simples ou duplas, machados, lanças ou kusarigamas (uma espécie de foice) até armas de fogo e de disparo, como arco e flechas e até pistolas, canhões e rifles. Além disso, William tem em mãos seres mágicos que ajudam na hora de confrontar os demônios. Os Espíritos Guardiões, estes seres que apresentam diferentes atributos físicos para a arma e corpo do personagem, podem ser ativados após sua energia ser acumulada ao longo das batalhas, dando um grande boost no ataque e que muitas vezes é uma mão na roda em combates longos contra chefes de fase.

É no combate mais dinâmico, arcade e voltado para a ofensiva que faz do jogo se destacar de outros do gênero. O s movimentos de ataque são divididos em três posturas com cada arma. Um na qual a espada fica em riste ao corpo, tendo o equilíbrio entre rapidez e potencia de ataque. O outro que faz a arma ficar acima da cabeça, tendo mais força no golpe mas menos velocidade. E o último, onde se coloca a arma abaixo da linha da cintura, fazendo os ataques serem mais rápidos, mas infringindo menos dano, além do complexo sistema de habilidades e movimentos com cada arma, que podem ser customizadas para cada movimento do jogador. É importante se ter em mente todas as possibilidades de customização de ataques e habilidades para enfrentar o que está por vir.

Como o Nioh do título, tirado de uma lenda japonesa que tinha como grande tema o equilíbrio entre a mente e o corpo, a jornada de William ensina isso ao jogador com a sua dificuldade punitiva mas extremamente satisfatória.  Os riscos são altos, e o jogador deve prestar atenção constantemente ao seu redor. Há armadilhas por todo lado e os olhos do jogador estão constantemente atentos a tudo que está em volta. Buscar as melhores rotas para não se deparar com inimigos muito acima de seu nível que irão te estraçalhar a qualquer momento, sejam humanos ou youkais, (que emanam um miasma capaz de conter sua regeneração de Ki na batalha). As mesmas posturas de luta também são adotadas pelos inimigos munidos de armas, o que deixa os confrontos ainda mais imprevisíveis e tensos.

A curva de aprendizado é alta e o jogador pode demorar algum tempo para aprender todos os truques e a dinâmica de enfrentar cada tipo de inimigo, mas após algumas boas horas adentro da história, o game se torna fluído e o jogador realmente sente uma evolução descomunal de suas próprias habilidades. Para quem já está acostumado com outros games do gênero, sabe muito bem que a chave para o sucesso é a paciência. Aprender cada movimento do inimigo, não desperdiçar a sua energia e cansar o oponente para que ele esvazie a própria barra de Ki (a stamina do jogo), atacando na hora certa. Com isso em mente, o jogo não se torna tão difícil quanto parece e acaba sendo uma jornada recompensadora. A filosofia de ter calma para avançar mais rápido pode parecer contraditória, mas é palavra-chave aqui.

Onde os Fracos Não tem Vez

As principais ameaças do jogo vêm diretamente da mitologia japonesa como zumbis, onis com machados, ciclopes gigantes e até kappas (uma espécie de tartaruga com cabeça de sapo) e tengus (pássaros com vestes tradicionais japonesas capazes de soltar letais rajadas de vento). Você pode até conhecê-los de animes e mangás que abordam este universo, mas o design e a animação desses monstros, dentro do jogo, trazem um nível  de detalhes e originalidade em seu visual que os tornam extremamente memoráveis e fascinantes, apesar de igualmente perigosos.

Além de soldados e samurais humanos, que geralmente dão trabalho por aparecerem em bandos e cercarem o jogador, eventualmente os inimigos vão se repetindo ao longo das telas. Lá pela metade da jornada, você pode sentir falta de um pouco de variedade, mas a dificuldade em enfrentá-los nunca é superada. Você ainda terá o mesmo frio na barriga ao avistar um youkai ou um oni ciclope, emanando miasma por todo o seu corpo, com sede de sangue e correndo diretamente para você. Apesar da repetição, os inimigos são muito bem integrados ao cenário, mostrando o planejamento dos desenvolvedores em dar vida a criaturas que pudessem se adaptar a diversos locais e situações e não parecessem deslocados. E obviamente uma das razões para que isso aconteça é o incrível game design.

Entre templos abandonados infestados de youkais e saqueadores, William irá passar por cenários variados e extremamente memoráveis. Visualmente, Nioh não é um primor visual mas também não perde seu brilho e originalidade, com ótimos efeitos de iluminação e partículas e o já citado incrível design e movimentação das criaturas e movimentos de combate de William. Tudo flui extremamente bem em uma taxa de quadros constante, com algumas ressalvas em áreas lotadas de inimigos em partes avançadas do jogo. Mas o obstáculo principal em locais fechados como templos e cavernas fica para a câmera, que muitas vezes torna o trabalho de acertar o derradeiro golpe mais difícil do que deveria. Encontros com inimigos grandes nessas áreas fechadas, como chefões e os já citados monges e onis, acabam sendo frustrantes e desagradáveis com a câmera constantemente travando na parede ou quando William acaba ficando em frente dela, perdendo a visão do que está em sua frente.

Como o protagonista, o jogador se sente como um estranho no ninho, adentrando terras estrangeiras que nunca foram exploradas antes por pessoas fora do Japão. O sistemas e o design acabam criando uma jornada cativante, apesar das incontáveis telas de Game Over (que tem um tempo de loading extremamente rápido). Repetir as ações não se torna metódico, há sempre algo novo que o jogador pode tentar ou uma rota diferente para tentar desviar de um inimigo mais complicado de vencer. As fases foram extremamente bem compostas e oferecem uma jornada única a cada novo local. Uma área que começa com alguns casebres ao redor de uma floresta pode levá-lo até uma luxuosa mansão abandonada infestada de demônios e saqueadores. É fascinante acompanhar o senso de progressão injetado em todas as telas.

O looping do jogo de drenar Amrita dos inimigos, pegar itens raros e encontrar pelo mapa os simpáticos kodamas, seres pequenos que aumentam a chance de se adquirir elixires e outros itens para melhorar seu arsenal, e no final de tudo isso morrer por algum inimigo muito mais poderoso (ou por algum vacilo mesmo) não cansa e na verdade se torna cada vez mais viciante. O sistema oferece sempre melhoras e incentivos para o jogador continuar e tentar mais vezes. E mesmo a dificuldade sendo alta, ela nunca é desleal. Se você está morrendo, culpa é sua, e não do jogo.

As brutais batalhas oferecem uma recompensa maior do que meros itens. É no momento a momento do combate que o gameplay se destaca. Finalizar o oponente e depois continuar atacando enquanto vê seu corpo se desmembrando, ao redor de uma poça de sangue e itens nunca se torna entediante, e o Team Ninja sabe muito bem disso.

Apesar de um multiplayer online interessante o game foi feito para ser primariamente jogado solo. Você não poderá desbloquear o co-op nas fases até terminá-las pela primeira vez. Não é possível usar o truque de chamar um amigo muito mais poderoso para passar daquele chefão difícil ou encontrar tesouros e passagens secretas como na série Souls/Bloodborne. Além do co-op, há um sistema interessante de clãs, que o jogador pode acessar para invadir mundos de outros jogadores e tentar derrotá-los para pegar seus itens.

A duração do jogo varia muito. Dependendo de quantas vezes você irá morrer, a jornada pode durar de 50 a 60 horas, além das diversas missões secundárias que estendem ainda mais o tempo total. Ou seja, há material o suficiente para passar a marca das centenas de horas com o jogo, sem medo de torná-lo entediante.

Veredito

Nioh é um daqueles jogos que marcam a vida de um jogador. Após vivenciá-lo, você não jogará algo do tipo da mesma maneira. O jogo tem problemas, mas o que ele acaba trazendo para o gênero e a experiência como um todo o torna um dos games mais satisfatórios, completos e incríveis do PS4. Após completar a jornada de William no Japão feudal, poucos jogo darão a mesma satisfação de conquista após uma árdua batalha contra um chefão ou de terminar aquela fase extremamente punitiva. A dificuldade não parece estar ali gratuitamente e é criada unindo um design inteligente com sistemas funcionais para criar uma experiência brutal, mas extremamente satisfatória. Trazendo elementos consagrados de títulos do passado (Ninja Gaiden, Dark Souls), Nioh traça seu próprio caminho no gênero e se torna um dos games mais complexos, viciantes e recompensadores da geração.

Nioh (Nioh, Japão – 2017)
Desenvolvedora: Team Ninja
Distribuidora: Koei Tecmo, Sony Interactive Entertainment
Gênero: RPG de Ação
Plataformas: Playstation 4

Redação Bastidores

Publicado por Redação Bastidores

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