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Análise | Red Dead Redemption II – Um Sonho de Liberdade

18 de maio de 2010. A Rockstar já estava habituada com a sexta geração de consoles tendo alçado um patamar nunca antes visto com o glorioso GTA IV, porém ninguém estava preparado para a grandeza de Red Dead Redemption.

Firmando confiança em uma propriedade pouco memorável na era do PS2 com Red Dead Revolver, a Rockstar revolucionaria suas próprias ambições (para a época) ao trazer um verdadeiro épico faroeste que ninguém sabia o tanto que queriam jogar.

Elevando o nível de suas narrativas puramente cinematográficas, Red Dead Redemption trazia muito mais do que uma história de traição e perda como habitualmente estamos acostumados a ver nos games da empresa, mas sim um drama simbólico e prático da busca da redenção de um homem, John Marston, a fim de reaver sua família e enterrar de vez seu sombrio passado na gangue Van Der Linde

 Apesar de ser um game com uma história soberba, era impossível não sentir maiores fisgadas de curiosidade sobre o passado de Marston, de sua vivência com a gangue e também da história do líder despótico Dutch Van Der Linde.

Reconhecendo que havia potencial para mais, a Rockstar seguiu um caminho fora do tradicional ao situar a narrativa da sequência anos antes do jogo anterior. Enfim chegou a nossa chance de conhecer o fim da era do Oeste selvagem dos EUA, assim como o fim da era das gangues de foragidos.

Trazendo um novo protagonista, Arthur Morgan, o jogador conhecerá uma jornada de violência, amor, ódio e, obviamente, traição ao longo de Red Dead Redemption II.

Crepúsculo dos Deuses

É 1899. Após um assalto dar completamente errado na cidade de Blackwater, a gangue do infame idealista Dutch Van Der Linde é obrigada a se refugiar nas gélidas montanhas do norte dos EUA. Caçados pela maior agência privada de detetives do país, os Pinkerton, Dutch e sua gangue precisam esperar a situação esfriar para planejarem seu próximo golpe. O alvo é o magnata ricaço Cornwall que levará as ações da gangue no modo mais pessoal possível, aumentando o contingente de detetives e caçadores para dizimar a turma de Van Der Linde.

No meio disso tudo, temos o levemente ingênuo, o bruto de coração suave, Arthur Morgan. Criado por Dutch e seu sócio golpista Hosea, Arthur não conheceu um vislumbre de uma vida civilizada. Mudando os locais de acampamento sempre fugindo das autoridades, o protagonista deposita toda sua fé na gangue e em suas figuras paternas. Mas isso tende a se esgotar quando Arthur começa a cansar de uma vida de altos riscos e baixas recompensas. A era dos bandidos terminou no Oeste, mas ainda é preciso que os bandidos percebam que não há mais lugar para suas práticas.

Como dito em exaustão por toda a imprensa, Red Dead Redemption 2 realmente traz um esmero narrativo ambicioso para a Rockstar. Trabalhando com mais de vinte personagens que integram a gangue, além dos diversos antagonistas que encontramos e outros parceiros improváveis, é impressionante o que o trio de roteiristas conseguem realizar para cada um desses indivíduos que, embora não consigamos conhecer em plena profundidade, temos uma grande noção de seus sonhos e desejos.

A construção de arquétipos vista aqui é inspiradora, pois possivelmente temos o conjunto mais memorável de personagens de toda a história da desenvolvedora. Evitando repetir com sucesso conceitos já explorados anteriormente, temos aqui um vasto rol criativo de personagens. Temos Sadie Adler, uma viúva que ingressa na gangue após seu marido ser violentamente assassinado pelos homens de Colm O’Driscoll, outro infame foragido. Há o reverendo Swanson, um homem sem fé que se perdeu em meio ao vício em heroína. Micah Bell, o terrível pistoleiro inimigo de tudo e todos com alto grau de psicopatia. O contador agiota sr. Strauss, o mameluco de coração bom Charles Smith que busca encontrar seu verdadeiro lugar no mundo, assim como os jovens Sean e Lenny que sonham alto com a arrogância da juventude.

Enfim, são inúmeros personagens interessantes que revelam o que há de humano e de monstruoso em cada um deles. Todos os integrantes caminham por uma zona cinzenta de moralidade, pois há momentos ternos que exibem a união e fidelidade da família Van Der Linde, além de eventuais ajudas a terceiros. Porém os roteiristas nunca deixam de relembrar que essas pessoas caminham no lado oposto da lei e que cometem atrocidades capazes de arruinar a vida de diversas famílias.

A narrativa de Red Dead Redemption II é extremamente orgânica. O jogador encontrará decisões morais significativas que podem tornar Arthur Morgan em um crápula doentio ou em um herói falido de moral mais humana.

Isso envolve muito além das histórias das missões principais divididas em seis capítulos. O jogador encontrará frequentemente eventos aleatórios no mapa que trazem a oportunidade de praticar tanto o bem quanto o mal. Seja ao liberar ou não um caçador preso em sua própria armadilha, resgatar uma jovem sequestrada por um crápula qualquer, dar carona à desconhecidos, intervir em assaltos, salvar prisioneiros foragidos, entre uma infinidade de eventos à disposição do jogador.

Não é somente nesses casos que a narrativa condiciona a jogatina. Por conta do assalto fracassado em Blackwater e a força policial tremenda que lá se encontra, o jogador não poderá explorar a porção oeste do mapa até finalizar o jogo. É uma tática inteligente da Rockstar a forçar gentilmente o jogador a conhecer toda a porção inédita do leste com cidades novas e regiões de clima e vegetação que fogem da tradicionais paisagens áridas do jogo anterior (há grande porção do mapa antigo incluso no game).

Como há essa condição no game, é preciso muito que o jogador se sinta investido na narrativa do jogo que, em primeiro momento, é bastante lenta, conduzindo um grande capítulo inicial como uma espécie de tutorial para mostrar as maravilhas técnicas do game e as possibilidades de atividades que se abrirão após a conclusão da introdução.

De modo algum temos um jogo tão agitado quanto GTA V com um design de missões tão variado quanto, mas há muito cuidado em deixar cada missão realmente única mesmo que tenhamos as mais banais das atividades.

Quando percebemos que as duas missões envolvendo pesca são umas das melhores do jogo, vemos como a Rockstar sabe muito bem como conduzir a emoção do jogador.

É isso que torna esse jogo em particular tão distinto dos outros da Rockstar. Não se trata mais da explosão de adrenalina em missões frenéticas, mas sim em potencializar o efeito dramático de uma conversa entre amigos, de confidências de um amor fracassado, da decepção completa com entes queridos e amados assim como o choque abrupto de uma morte inesperada.

Obviamente que existe muita leveza também, pois Arthur é um personagem carismático e bem humorado, nunca perdendo a chance de tirar sarro ou provocar membros da gangue, como no caso de suas rixas pessoais com o Tio e com John Marston que também é excelentemente trabalhado, nos fazendo compreender o quão importante é Arthur em sua vida.

No coração das Trevas

Há truques expressivos para potencializar a jornada dos personagens e da crescente degradação do relacionamento de Arthur com Dutch. Através do sistema de capítulos e das mudanças de acampamento, fica nítido o quão desgastante as mudanças são para todo o grupo que fica cada vez mais acuado e longe do sonho de fugir dos EUA após um último grande golpe.

Utilizando a mesma formula em pelo menos três capítulos, vemos o cansaço de Arthur e o surgimento de dúvidas a respeito do destino da gangue. O contraste é absoluto pois de início, Dutch é um líder bom e carismático, mas após certo momento da narrativa, lentamente o personagem caminha para a psicopatia e paranoia completa.

É uma estrutura que pode ser comparada a jornadas de ídolos caídos como vemos tanto em O Poderoso Chefão quanto em Apocalypse Now.

Mesmo que tenhamos desfechos parecidos a cada capítulo forçando o nomadismo do grupo, a cada segmento há uma guinada narrativa bastante poderosa. Os roteiristas nos apresentam a conflito de gerações entre duas famílias ricas do pântano, nos desmandos de um chefe do crime que corrompe toda uma metrópole, em uma revolução de liberdade e até mesmo em uma jornada pertinente sobre a delicada questão indígena nos EUA no século XIX.

Atente que estou somente mencionando a história principal. Em todo o Red Dead Redemption 2 há uma gama vasta de narrativas bizarras, edificantes ou emocionantes para encontrar organicamente no mapa. Coisas capazes de assustar qualquer um.

Retornando a Arthur, vemos constantemente essa evolução no personagem. Ainda que tenhamos a opção de ser renegado, um crápula, a narrativa obviamente força um tipo de redenção. O jogador encontrará um Arthur diferente durante os dois últimos capítulos da jornada por razões bastante complexas que flertam com o existencialismo e legado. São temas complexos pertinentes a um personagem solitário, mas vemos diversas reflexões e momentos puros sobre casamento e paternidade também.

Arthur possivelmente seja o personagem melhor escrito da Rockstar até o momento pelas razões já abordadas de modo geral para não estragar nenhuma surpresa. O ritmo mais brando do game oferecendo mudanças substanciais em momentos inesperados demonstra uma maturidade impressionante da Rockstar. Aliás, evitando quedas drásticas de ritmo, os desenvolvedores têm a sacada brilhante de adicionar elipses durante grandes cavalgadas nas missões principais através da ótima câmera cinematográfica.

O Nascimento de uma Geração

 Apesar de termos diversos exemplares de jogos excepcionais que provaram muito bem o que essa geração é capaz de fazer, é um fato que a Rockstar acabou de elevar a barra de qualidade na indústria a um nível muito, mas muito superior. Ou seja, é bom que a concorrência comece a melhorar ainda mais seus produtos, pois o que a Rockstar conseguiu entregar nessa geração, é praticamente digno do que esperávamos para a próxima.

Nunca se viu tanta complexidade de game design e de detalhes em um jogo antes como vemos aqui. Em primeiro momento, pelo tanto de mecânicas apresentadas, é fácil sentir um avassalamento burocrático para dominar tudo o que o jogo requer. É uma curva de aprendizado realmente complexa, mas ao mesmo tempo simples de se acostumar após dedicar algumas horas ao jogo.

Já no capítulo inicial, vemos o trabalho assustador nos detalhes para deixar o game o mais realista possível. Além dos esforços gráficos que possivelmente torna Red Dead Redemption 2 o jogo mais bonito dessa geração, temos esses efeitos de física incríveis como deformação de terreno, visibilidade limitada conforme o clima, derretimento de neve pela temperatura do ambiente interno, sujeira nas roupas, vestes para climas específicos, alimentos e tônicos diversos para oferecer e recuperar seus atributos de vida, fôlego e olhos da morte, além de uma infinidade de outros elementos bastante complexos.

Se eu tentasse listar tudo que percebi, praticamente não contemplaria tudo o que a Rockstar realmente construiu no game em si. É algo surpreendente e nunca visto antes nesta escala. Não só nos detalhes físicos, mas também nas animações diversas para Arthur seja para nado, corrida ou cavalgada. O mesmo se dá para os inimigos que reagem ativamente a cada disparo correspondendo o calibre da arma.

Sempre competentes em criar mundos abertos espetaculares, aqui temos também o trabalho mais complexo da empresa. Com um mapa gigantesco repleto de segredos, podemos experimentar diversos terrenos distintos com faunas e flores totalmente distintas para incentivar o jogador a descobrir cada pedaço desse mundo fantástico.

São diversas opções disponíveis para o jogador entre vestimentas, armas, cortes de barba e cabelo, criaturas para caçar e até mesmo de alimentos. Tudo é feito na maior profundidade possível para garantir uma experiência única para cada jogador.

Embora a Rockstar inove em diversos aspectos, é particularmente inspirador notar que durante os dez anos de desenvolvimento do game, ela esteve de olho em praticamente todos os lançamentos da indústria.

Uma das inspirações que mais me surpreendeu foi notar a influência de Thief de 2014 no game. Com Arthur, podemos invadir diversas casas nas noites silenciosas enquanto todos dormem para roubar pertences preciosos. Outra grande influência é a do sistema de testemunhas de Watch Dogs que aqui é ainda mais complexa e grave para o jogador já que a resposta da polícia é implacável quando alguém denúncia um delito cometido por você.

Com tantas opções de crafting, é difícil definir uma inspiração exata, mas freio que há elementos a la The Last of Us como força motriz para encaminhar uma mecânica tão completa.

Isso mostra que a Rockstar está sempre atenta ao redor aproveitando as melhores ideias. Obviamente que há influência também de The Witcher 3, como não podia deixar de ser. Mas os elementos originais são mesmo incríveis para aprofundar a imersão. Aliás, imersão esta tão intensa que até mesmo temos uma câmera em primeira pessoa com animações completamente diferentes, além de oferecer uma dinâmica de combate e exploração totalmente distintas a da câmera tradicional em terceira pessoa. Vale a pena experimentar.

Meu Ódio será sua Herança

Assim como todas as formas de arte, os games conseguem nutrir grandes mensagens repletas de poder. Entretanto, apenas verdadeiros visionários superam as barreiras naturais de um formato para ir além. Red Dead Redemption II consegue ir muito além do além. É uma peça extremamente poderosa sobre liberdade, amor, ódio, lealdade, paternidade, legado e herança. Na terra do aqui faz e aqui se paga, a Rockstar conta uma parte valiosa da triste história do Oeste Americano que testemunhou ciclos de selvageria até ser domado depois de muita força e sangue derramado.

Obviamente que o game vai também muito além de sua história ao ser tão caprichoso com suas características técnicas e apuro cinematográfico a ponto de deixar diversas produções hollywoodianas no chinelo. Aliás, em toda a análise eu nem cheguei a mencionar a questão do áudio que também se altera significativamente dependendo de onde o personagem está. Isso também envolve a trilha musical que conta com canções originais magníficas raramente vistas em produções de games. Elas rendem momentos catárticos poderosos, principalmente quando a câmera cinematográfica surge e a belíssima May I começa a tocar com Arthur cavalgando entre o bayou dos arredores de St. Denis.

Enfim, a incrível jornada de Arthur Morgan é uma poderosa mensagem sobre a ilusão da liberdade e da tristeza profunda em reconhecer que o paraíso desejado se trata apenas de uma projeção de sonhos frustrados de uma vida melhor.

Pontos positivos: Mapa orgânico gigantesco e variado repleto de coisas a fazer, profundidade e complexidade absurda de efeitos de física e mecânica no game, gráficos excepcionais, ótima trilha musical, história inspiradora e marcante, protagonista excelente, merecedor do seu dinheiro, sistema revolucionário de iluminação, possivelmente o melhor game da geração.

Red Dead Redemption II (EUA, Reino Unido, Canadá, Índia – 2018)

Desenvolvedora: Rockstar Games
Estúdio: Take Two Entertainment
Gênero: Aventura em terceira pessoa, faroeste
Plataforma: Xbox One, PS4

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Publicado por Matheus Fragata

Editor-geral do Bastidores, formado em Cinema seguindo o sonho de me tornar Diretor de Fotografia. Sou apaixonado por filmes desde que nasci, além de ser fã inveterado do cinema silencioso e do grande mestre Hitchcock. Acredito no cinema contemporâneo, tenho fé em remakes e reboots, aposto em David Fincher e me divirto com as bobagens hollywoodianas.

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