em

Artigo | A Viagem de Chihiro: Um Conto Atemporal e Universal

A Viagem de Chihiro (Sen to Chihiro no kamikakushi, 2001) é um filme dirigido por Hayao Miyazaki, considerado um dos maiores diretores de animação japonesa e produzido por seu estúdio consagrado como um dos melhores no mundo, o estúdio Ghibli, ganhador do Urso de Ouro no Festival de Berlim e do Oscar de Melhor Animação, é considerado um dos melhores filmes da última década pela revista Sight and Sounds uma das revistas mais renomadas de cinema.

O filme conta a história da pequena Chihiro, que ao completar 11 anos muda-se de casa e vai para uma nova cidade, no caminho, seu pai acaba pegando o caminho errado e para em uma floresta onde há um túnel que os faz parar em uma cidade aparentemente vazia. Os pais com fome, acabam comendo a um banquete em uma das lojas abandonadas o que faz eles se transformarem em porcos, deixando Chihiro sozinha em um lugar que ela acaba descobrindo sendo uma casa de banhos dos deuses mitológicos japoneses e que só poderá voltar para casa se conseguir convencer a dona do estabelecimento a transformar os pais dela de volta em humanos.

O filme tem várias referencias a algumas histórias clássicas infantis, como Alice no País das Maravilhas e Mágico de Oz, onde a personagem acaba encontrando vários desafios em sua jornada para voltar para casa, mas o que é mais interessante é que ele une essas várias histórias tradicionais do ocidente e as transforma com uma roupagem oriental, onde as criaturas e os acontecimentos são tipicamente japoneses, assim criando um filme que consegue ter uma identificação com os dois públicos.

O que consigo ver são duas interpretações que se seguem, nas quais analiso duas vertentes que o filme pode passar: a jornada do amadurecimento da personagem e a jornada do herói, que podem parecer semelhantes entre si, mas que acabam se tornando duas vertentes que se complementam. Não aprofundarei o assunto nas metáforas em relação a mitologia japonesa, mas sim interpretar de forma livre os conceitos que o filme apresenta.

Chihiro e sua jornada de amadurecimento

Como falado antes, o filme tem claras referências a clássicos da literatura infantil, que nos retrata o amadurecimento e a passagem da vida infantil para a vida adulta, como é o caso dos pais dela se transformarem em porcos, fazendo com que eles virem seres impotentes em relação ao novo mundo que está se fazendo ao redor deles.

Um sentimento muito comum nos jovens, já que antes os pais eram sempre aqueles que tinham solução para tudo aos olhos dela, mas com o passar dos anos acaba se descobrindo que eles já não serão aqueles que irão te salvar quando acontecer algo.

Essa sensação de impotência é muito bem trabalhada no filme já que logo depois disso ela começa a sumir, como se ela não conseguisse mais estar presente naquele mundo diante as mudanças que estavam acontecendo.

Logo depois, nos é apresentado os personagens que compõem as castas dessa sociedade, como Kamaji, o velho que trabalha nas caldeiras e os seus escravos carvão, que seriam os trabalhadores de carga, escravos, pode-se traçar um paralelo com escravos negros na época colonial e Kamaji sendo seu mestre, não pelo lado negativo, contudo, pois ele também faz parte do sistema criado ali, já que até ele deseja poder sair de lá, já que guardava consigo um bilhete para o trem, mas que nunca tinha usado, talvez tenha se tornado quase um amuleto, que um dia ele poderia sair dali.

Ou a Lin, a mulher que trabalha no hotel e ajuda Chihiro a conseguir um emprego, o que se mostra aqui é o nascimento da vida no trabalho de Chihiro, sem os pais para a sustentarem e a auxiliarem ela agora precisa arrumar um emprego, mesmo que isso custe sua identidade, ou seu nome, como é mostrado no filme com a dona do hotel, Yubaba, que a transforma em uma trabalhadora tirando seu nome.

O nome da família e o passado dela não importam mais nessa nova vida, Yubaba mostra então seu poder de amedrontar e dominar os outros, mas mostra uma fraqueza que é seu filho Boh, ao qual ela mima, mostrando a dicotomia do personagem e que ela esconde seu filho do resto do mundo para na verdade esconder a própria fraqueza. Além de sua irmã, Zeniba, que é o completo oposto de Yubaba, (no começo do filme vemos uma estatua com aparência idosa de duas cabeças, talvez representando que ali começava o território de Yubaba e Zeniba, como dois opostos) ela vive em um lugar praticamente isolado enquanto a irmã gosta de ostentar poder e fortuna com suas joias e magias poderosas tentando estar em todos os lados possíveis, se transformando em uma ave para isso.

Haku é um dos personagens mais importantes dali pois ele é quem guia a personagem o tempo todo nas duas interpretações, na linha da jornada de amadurecimento ele seria o homem que faz a Chihiro conseguir sobreviver naquele lugar, ele que guia o caminho. Com sua transformação em uma serpente voadora, ele teria múltiplas aparências: a de uma criança, a de uma serpente e a de um deus do rio, mas no fim é Chihiro quem o salva, mostrando a evolução da personagem diante das situações impostas a ela ao longo da história.

Outro personagem interessante que acrescenta essa jornada é o Sem Rosto, um deus que não tem personalidade e aparência física determinada, mas que rouba a voz dos outros quando os comem, uma metáfora aos perigos da vida, já que ele se apresenta como alguém que dá dinheiro (que no final se apresenta como falso) em troca de comida e prazeres. Seria a parte da vida em que tudo é fácil no começo, mas que vai piorando ao passar do tempo.

Pode-se fazer até um paralelo com a psicologia da própria protagonista, sendo o Sem Rosto seu ID, a vontade, o desejo, já que no fim, Sem Rosto se torna um monstro furioso a medida que as pessoas vão o alimentando com a sua ganância. Chihiro é a única que pode detê-lo e a única que não o satisfaz, lutando contra si mesma dos desejos e que acaba fazendo ele expelir tudo aquilo que ele tinha consumido, como uma forma de purificação do desejo e quase uma exorcismo e retorno de sua origem no fim, onde ele acaba indo morar com a irmã gêmea de Yubaba e começa uma vida muito mais humilde e sem os desejos que o controlava antes, no final um personagem que não teria personalidade acaba se saindo como um dos mais carismáticos do filme.

No final do filme, Chihiro passa por todas os testes que a transição da vida infantil para a adulta pode ter, ela tem que se soltar da confortável vida com seus pais e começar a viver independentemente, arruma um emprego, encontra alguém que ama, passa pelos desejos e intempéries da vida e consegue recuperar sua identidade, ou aceita seu passado, seus ancestrais, algo que o filme faz crítica a nova geração que tenta esquecer os velhos valores dados pelas pessoas mais velhas. No fim ela consegue recuperar seus pais, mas aprende as lições de vida as preparando para a vida adulta, ou como no filme se apresenta, a nova cidade em que vai morar, tendo que se desapegar da sua antiga vida e começar uma nova.

Chihiro e a jornada do herói

Como falado anteriormente as duas vertentes aqui apresentadas são semelhantes, mas tem suas divergências, e agora apresentarei um pouco sobre o que é a jornada do herói.

A jornada do herói, criada pelo antropólogo Joseph Campbell depois de estudar as diversas mitologias ao redor do mundo, criou uma simples “fórmula” que estabelece a construção de uma história para que se apresente um herói, muito disseminada pelo cinema americano, em filmes como Star Wars e Matrix, que acabou criando uma formula fácil de se contar uma história com apelo para todos os públicos. A Viagem de Chihiro não é uma exceção e cria a partir da jornada uma bela história e quebra alguns paradigmas como uma protagonista criança e do sexo feminino que raramente é a heroína nesse tipo de história. A estrutura da jornada do herói é dividida em 12 fases, e aqui se fará um paralelo com todas as fases em relação ao filme.

A primeira fase é o Mundo Comum onde o herói é apresentado, que não apresenta nenhum perigo aparente, onde no filme seria a vida que Chihiro vivia até o momento do começo do filme, a cidade que ela vivia e os amigos que ela tinha antes da mudança para a nova cidade. A segunda e terceira fase são o chamado da aventura onde a transformação dos pais em porcos e a reticência do herói em relação a sua jornada onde ela acaba tentando fugir da cidade para descobrir que não há meios de retornar para a sociedade e ela acaba se diluindo no mundo. A quarta fase é a da ajuda sobrenatural ou o encontro de um mentor, onde Haku é aqui apresentado como o mentor dela através desse novo mundo, que a faz ensinar as regras daquele universo.

Ao longo do filme, Haku se ausenta por um longo tempo tendo assim a ajuda de outros “mentores” como Kamaji e Lin que também fazem parte desse conjunto. A quinta fase é a passagem do herói pelo Primeiro Portal, a primeira provação para entrar no mundo, aqui muito bem representado pela ponte que liga a cidade fantasma com a casa de banhos e aonde ela tem que passar sem ser percebida pelos deuses ali presentes, essa fase só é concluída quando ela finalmente consegue o emprego de Yubaba, completando o primeiro desafio desse mundo e começando a sua jornada realmente.

A sexta e a sétima fases são as provações que o herói é apresentado, a Barriga da Baleia, o que são as diversas provações que Chihiro tem ao longo de sua estadia na casa de banhos como o deus que estava preso a um montante de lixo e sujeira até a parte do Sem Rosto que fecha a sexta fase e a consegue com êxito. A oitava que é a provação mais difícil, a de vida ou morte seria a de recuperar a forma humana de Haku, onde Chihiro tem que lutar contra o próprio Haku e Yubaba.

A nona seria o caminho de volta, não nos confundirmos com o fim do filme, mas sim com a jornada de Chihiro rumo a casa da irmã de Yubaba onde ela pega um trem aparentemente “humano” para chegar em um lugar onde vai pegar seu “elixir”que aqui é a forma humana de Haku e o conhecimento de que ele a salvou quando era pequena, esse elixir tem várias camadas de compreensão, já que é mais um elixir pessoal, em que a menina que tinha largado seu nome e seu passado acaba recuperando a partir de uma memória de infância que aqui é a Ressurreição do Herói.

E no fim a jornada é completada quando ela consegue seus pais de volta, regressando com o elixir que seria o autoconhecimento e respeito de seu passado.

Conclusão

Como dito anteriormente, Viagem de Chihiro é um filme que cria uma história que consegue agradar dois públicos diferentes, o Ocidental e o Oriental e essas duas vertentes de interpretação é a prova disso sendo que a jornada do Herói é algo tipicamente Ocidental, disseminado por filmes Ocidentais, a maioria americanos e a jornada do Autoconhecimento que é algo mais estabelecido em histórias Orientais, onde a jornada que o herói faz não é para salvar o mundo ou um povo, mas sim para se conhecer e se salvar diante das diferentes situações que a vida apresenta.

Chihiro é, na minha opinião, uma das personagens femininas criadas no cinema mais fortes, conquistando através do filme o amor do publico por conseguir superar seu medo e sua timidez e conquistar o que deseja de forma justo e honesto. Um filme que pode ter várias interpretações e camadas a serem interpretadas.

Além de ser um dos filmes mais incríveis criados em forma de animação, por não só contar uma história semelhante a outras na sua base, mas diferente em relação a todo os outros aspectos. A direção impecável de Hayao Miyazaki faz com que todas as cenas tenham uma beleza e um ritmo maravilhosos. Às vezes o espectador parece estar diante de um quadro e não um filme, junto com a beleza da trilha sonora composta por Joe Hisaishi trazem o equilíbrio perfeito entre as cenas de contemplação e os momentos de ação do filme. Talvez não seja um filme que vá agradar todos os públicos, mas que se torna uma experiência inesquecível que consegue conciliar o público Ocidental e Oriental, além do infantil e do adulto, trazendo temas sérios, profundos e reflexivos.

Redação Bastidores

Publicado por Redação Bastidores

Perfil oficial da redação do site.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

CES 2017 | Wacom apresenta novos modelos de mesas digitalizadoras

CES 2017 | NVIDIA estende o sistema GeForce Now para PC e Mac