Crítica | Assim Caminha a Humanidade – Desconstruindo o Texas
Todo meio de expressão artística possui exemplares fortíssimos encarados como verdadeiros épicos monumentais. No cinema, esses épicos ocorrem vez ou outra e alguns tem a felicidade de marcarem História se tornando verdadeiros clássicos. George Stevens, já totalmente consolidado na indústria reconhecido como um dos maiores nomes de Hollywood, encontraria, talvez, o maior desafio de sua carreira: a realização de Assim Caminha a Humanidade.
Um dos maiores filmes da cinematografia americana com três horas e vinte minutos de duração, Assim Caminha a Humanidade é um épico para oferecer o melhor do blockbuster dramático de Hollywood, resgatando ferrenhamente o espírito apaixonante de ...E O Vento Levou ao trazer uma história que ousa atravessar décadas para mostrar a completa transformação de seus personagens.
O Texas do Passado
O livro de Edna Farber é uma grande carta de amor ao Texas mostrando todos os seus defeitos assim como suas glórias. Por ser um épico que atravessa a maior parte da vida dos personagens, já se tornava um enorme desafio para adaptar às telonas, mas o grande esforço de Fred Guiol e Ivan Moffat faz o difícil virar um passeio no parque devido a estupenda qualidade da escrita tanto para a narrativa ao todo como no tratamento dos diálogos espetaculares muito eficientes em mostrar as diferentes personalidades tão distintas que os personagens apresentam.
Apesar de gigante, o foco da história se concentra na relação amorosa de Leslie (Elizabeth Taylor) e Jordan Benedict (Rock Hudson). Ela, uma garota do interior de Maryland, estado do leste dos Estados Unidos, se apaixona perdidamente por Jordan, um latifundiário ricaço do Texas, estado do oeste, quando ele viaja para sua casa a fim de comprar o poderoso alazão War Winds para sua fazenda de 500 mil hectares.
Voltando com o cavalo e a moça para o Texas já domado dos anos 1920, conhecemos o incrível choque de cultura e realidade que Leslie terá para se adaptar a um modo de vida e pensamento completamente diferentes dos seus, além de ter que lidar com a antipática irmã de Jordan, Luz (Mercedes McCambridge), e com as investidas suspeitas do capataz Jett Rink (James Dean), o empregado mais detestado do rancho pecuário Reata.
A beleza disso tudo é que a sinopse só abrange parte do primeiro ato já que a narrativa está em constante evolução, trocando de antagonistas e protagonistas a todo momento conforme os anos passam. Apesar disso dar o toque de peculiaridade para o filme, é nítido que o melhor ato é o primeiro que consegue desenvolver plenamente a poderosa protagonista Leslie – Liz Taylor demonstra uma vivacidade apaixonante nesse segmento.
Os filmes de Stevens, principalmente os pós-Segunda Guerra, trazem problemáticas sociais sutis, mas em Assim Caminha a Sociedade, o conflito social é o mais presente. Através do coração humanitário de Leslie, vemos a mulher confrontar os pensamentos machistas do marido, do enorme racismo que impera no rancho contra os trabalhadores mexicanos, a péssima qualidade de vida desses trabalhadores em condições análogas à escravidão, além de tomar a ordem da dinâmica da casa para si, desagradando profundamente a cunhada.
Aliás, a figura de Luz é tão poderosa como antagonista que deveria ter sido mantida por mais tempo, apesar da cena climática dela exibindo toda sua crueldade projetando o ódio que sente por Leslie no pobre alazão War Winds. Apesar dessa decisão duvidosa em se livrar da antagonista tão rapidamente, os roteiristas desistem da figura de um vilão focando inteiramente a mensagem nos choques ideológicos entre Leslie e Jordan.
A construção de Leslie como uma mulher forte e indomável repleta de valores progressistas é feita com afinco. O que pode decepcionar um pouco é o perfil de Jordan, já que somente temos o exato oposto dos valores de Leslie, afinal ele é egoísta, racista, machista, xenófobo, rude, tradicionalista, preconceituoso, entre outras diversas características negativas que colocam à prova porque que Leslie se casou com um homem tão retrógado. O intuito dos roteiristas com isso é personificar o antigo Texas, o antigo oeste indomado e violento, tanto que esse primeiro ato possui um clima poderoso de western.
É bastante claro que Jordan será o principal foco de evolução ao longo da narrativa, assim como o próprio Texas fica cada vez mais civilizado. A rivalidade entre Jordan e Jett Rink também é enraizada de modo eficaz, apesar de Rink ser um personagem bastante simples de progressão previsível. Aliás, esse é o maior problema de Assim Caminha a Humanidade é a previsibilidade. Absolutamente todos os arcos e núcleos são telegrafados ao extremo, com exceção ao destino de Luz no primeiro ato.
Sabemos que o casal terá filhos, que haverá alguma separação temporária, que Jett Rink ficará bilionário ao descobrir um poço abundante de petróleo em seu terreno e que Jordan será desmontado por não conseguir controlar nada o destino de seus filhos ou do próprio Texas que deixa de ser uma potência pecuária para virar uma potência petrolífera.
O Texas de “Hoje”
Encerrado o primeiro ato em grande momento, os roteiristas parecem que se perdem em qual história eles querem contar, já que rapidamente Leslie e Jordan e a relação amorosa de ambos fica em completo escanteio por conta de muitas, mas muitas elipses para mostrar o crescimento dos filhos do casal: Jordie, Judy e Luz II.
Há sequências interessantes que já determinam a rebeldia dos jovens enquanto crianças como a poderosa cena envolvendo Jordie e um pônei na qual Jordan começa a perceber que não é o dono de tudo e de todos como pensava. Nesse ponto, a figura do tio Bawley cresce bastante como um forte conselheiro para Leslie e as crianças.
A partir deste ponto, com Jett Rink ficando cada vez mais rico, o filme acelera o passo para se transformar em um jogo de conceitos e não mais de desenvolvimento de personagens. Os filhos crescem muito rápido sem alguma preocupação para estabelecer mais características a eles. Tanto que quando já partimos para a idade adulta deles, não existe muita afeição ou empatia por serem desconhecidos completos.
Focado nas histórias dos três, o roteiro toma diversos desvios para mostrar um casamento inter-racial com uma imigrante mexicana, as diferentes consequências da ida à Segunda Guerra Mundial, além de nenhum estar focado em herdar os negócios gigantescos do pai em Reata. Enquanto Jordan declina e começa a ver seu império ruir diante do sucesso de Rink, novamente há elipses para chegarmos ao terceiro ato, no qual Leslie e Jordan passam a ser avós – apesar do sumiço bizarro de uma das filhas deles.
Não há muita exploração da relação de Rink e Jordan depois do ex-empregado ter ficado rico o que também é um potencial desperdiçado. Somente no terceiro ato, quando o filme começa a dialogar com Cidadão Kane e o declínio moral de Rink que o nível volta a se fortalecer. Os conceitos e fatos apresentados no segundo ato tornam-se mais relevantes colocando conflitos raciais em evidência, finalmente afetando os personagens que viviam em uma bolha ideológica em Reata, já que o pai, nessa altura, é totalmente domado por Leslie, respeitando as pessoas como elas são.
Justamente por isso que o clímax do filme, também bastante conceitual, funciona bem conseguindo resgatar a boa escrita do primeiro ato. Apesar de clichê e bastante convencional, vemos um Jett Rink solitário e degradado pela bebida. O velho e eficiente “o homem que tem tudo e, ao mesmo tempo, não tem nada”. Rink é um escravo do próprio pensamento sempre focado em Jordan, nunca aproveitando de fato sua vida ou usando seu dinheiro em prol do Texas, é simplesmente um predador pior que o antigo patrão. O desfecho de seu núcleo trágico é muito forte não só por revelar o quão miserável é o psicológico do personagem, mas também em encerrar uma história de amor proibido.
No final, já com Jordan totalmente desenvolvido e transformado, há uma poderosa reflexão sobre a identidade do Texas e das alegrias da vida em uma mensagem muito edificante e satisfatória para todo o longo percurso da narrativa.
O Ápice de um Artista
George Stevens estava inspirado para realizar seu melhor trabalho de direção com Assim Caminha a Humanidade, apesar de não ser o seu melhor filme. Investindo três anos inteiros para concretizar sua visão, é inegável a qualidade de seu trabalho. Primeiro, é preciso dizer que Stevens simplesmente realiza um milagre com a duração do filme, já que ele é tão agradável e fluído para assistir. As muitas horas de fato passam voando já que temos personagens tão fascinantes de acompanhar.
Isso vem por conta do magnífico trabalho com o elenco que simplesmente dá um show, apesar de muitas vezes as atuações cruzarem a linha da ficção. Nesse caso, o entrave entre Jordan e Rink é tão realista pelo fato de Rock Hudson e James Dean se odiarem totalmente durante as gravações da obra, uma rivalidade que contribuiu bastante para o resultado final. Como apontei antes, Liz Taylor é fenomenal nessa obra, servindo como um contraponto muito sólido a Hudson. Entretanto, este sendo o último filme de Dean concluído antes de sua trágica morte, é impossível tirar os olhos do jovem ator quando ele aparece em cena – ele simplesmente tinha o potencial de se tornar um ator tão eficaz quanto Marlon Brando, por exemplo, ou Daniel Day-Lewis.
Dean estava completamente investido no papel conseguindo transformar completamente sua atuação conforme os anos passam: de menino rebelde para canastrão insolente detestável. Aliás, esse é um ponto pioneiro para Stevens: ele fez questão que todos os atores continuassem na narrativa mesmo conforme as décadas passassem, forçando o envelhecimento através de maquiagem – na época, simplesmente escalavam atores mais velhos quando isso acontecia.
Todos se comportam bem nos papéis, respeitando as limitações físicas impostas pela idade, apesar de Rock Hudson ainda aguentar algumas brigas pesadas com diversas trocas de socos. Assim como em Os Brutos Também Amam, Stevens requisitou que a equipe artística se esforçasse ao máximo para conferir diversas mudanças visuais na direção de arte para Reata.
No começo, vemos Leslie chegar em uma residência faraônica no meio do deserto desolado. O ambiente interno é tão pouco convidativo quanto a aparência externa sombria da casa, já que todo o trabalho em madeira é feito com cores escuras e mortas. Tudo é monocromático ao extremo, além do mau gosto estético da decoração. Ou seja, o lugar parece um mausoléu. Essa identidade visual é tão poderosa que chegou a inspirar Del Toro para a criação da fantástica mansão em A Colina Escarlate.
A casa é uma extensão do estilo tradicional de Jordan então nada mais conveniente que ela mude de atmosfera conforme Leslie amansa seu marido. Já com o nascimento das crianças, vemos a casa reformada, com tons brancos e uma decoração eficiente em resplandecer luz e aconchego no lugar. O fato é que Stevens realmente consegue imprimir uma identidade visual muito poderosa para seu filme que certamente é o que mais possui enquadramentos poéticos de toda a sua carreira.
Não preocupado somente com o valor estético de seus planos, o diretor monta alguns que conseguem transmitir mensagens valiosas por si só. Por exemplo, quando Leslie aborda Jordan em uma noite infeliz para fazer suas ponderações sobre o casamento quase fracassado, Stevens a insere no negrume da escuridão da sala, refletindo todo o luto e tristeza que ela por desejar se afastar do marido – este, banhado pela luz quente e reconfortante da lareira.
O choque para Jordan vem logo depois quando ele acompanha a família para se despedir na estação de trem. Quando a locomotiva parte, Stevens tem o cuidado de deixar o protagonista distante e solitário na profundidade de campo ao enquadrar a placa “Benedict”, sobrenome da família, em primeiro plano. Poderoso e eficaz, sempre.
Aliás, é particularmente brilhante o tratamento visual tão expansivo para os anos 1920 com externas abundantes, além do contato intenso com a natureza selvagem enquanto nas outras décadas temos uma redução de espaço cada vez maior, com os personagens se confinando em edifício mais luxuosos e confortáveis, se imobilizando cada vez mais e perdendo o contato místico da natureza. É uma crítica velada do diretor, mas bastante perceptível com algum esforço do espectador.
Stevens mantém a consistência cinematográfica de sempre e até ousa contar detalhes somente com as imagens, nunca através de diálogos, como o fato de Leslie e Jordan dormirem em camas separadas na terceira idade indicando que o casamento não conseguiu ser salvo apesar dos esforços de ambos. De todo o modo, existem cenas que o diretor se sobressai como um verdadeiro poeta na encenação como a do infame jantar comemorativo de Rink no final da obra ou na impactante cena do velório que funciona também como uma bela homenagem do diretor para todas as vítimas da Segunda Guerra.
Também é muito perceptível que Stevens amadureceu na técnica de filmagem aprimorando bastante a decupagem ao seguir uma linha mais lógica de enquadramentos. Por consequência, ao filmar com menos ângulos, o ritmo da troca de planos é muito menos frenético que anteriormente sendo esse o filme mais contemplativo do diretor. Algo fácil para nós, já que a obra traz vistas e cenários estonteantes em grande parte do tempo.
Gigante
Assim Caminha a Humanidade é um excelente filme, mas um pouco esburacado pelas elipses apressadas trazidas após o primeiro ato perfeito. Com uma história de fundo social importante e repleto de mensagens atuais sobre racismo, xenofobia e tradição, Stevens foi à fundo nos problemas texanos sem nunca desrespeitar a grande terra que é aquele lugar.
Eficiente em todos os sentidos, temos a realização plena de um filme, de fato, gigante.
Assim Caminha a Humanidade (Giant, EUA – 1956)
Direção: George Stevens
Roteiro: Edna Ferber, Fred Guiol, Ivan Moffat
Elenco: Elizabeth Taylor, Rock Hudson, James Dean, Carroll Baker, Jane Withers, Chill Wills, Dennis Hopper, Mercedes McCambridge, Rod Taylor
Gênero: Drama, Romance
Duração: 200 minutos.
https://www.youtube.com/watch?v=elMP6PqGBo0
Crítica | Os Brutos Também Amam - O Testamento Cinematográfico de George Stevens
É sempre valioso quando o cinema contemporâneo lembra do passado e o revive através de formosas homenagens. Logan foi o excelente responsável em trazer à tona a memória do clássico Os Brutos Também Amam (uma péssima tradução para Shane), do mestre da Hollywood Clássica, George Stevens.
Produzindo o próprio filme, Stevens praticamente não poupou esforços e despesas para tornar o longa um dos mais memoráveis faroestes já filmados. Se valendo das narrativas engessadas do gênero, pegou um dos arquétipos das histórias de rancho e a imbuiu com grande comentário social sobre um oeste já domado, agora sofrendo nas mãos de rancheiros gananciosos. Aliando o misticismo da figura do forasteiro misterioso virtuoso com pistolas a uma história de resistência pela força da união, o impacto do filme foi tamanho que poderia até ser apontado como um precursor de Os Sete Samurais, obra-prima de Akira Kurosawa.
Opressão e Resistência
A adaptação de A.B. Guthrie Jr. do livro de Jack Schaefer traz o melhor e o pior das narrativas clássicas de Hollywood. Embora tenhamos um grande punhado de clichês do gênero e algumas figuras maniqueístas, o texto de Os Brutos Também Amam traz diversas qualidades por subverter as convenções do gênero e isso se dá principalmente pelo desenvolvimento da história.
Shane (Alan Ladd) é um andarilho de passado misterioso que acaba na propriedade dos Starrett, fazendeiros trabalhadores em fixar raízes em uma Alabama livre dos perigos selvagens da conquista do oeste americano. Fazendo amizade com o proprietário Joe (Van Heflin) e com o filho dele, Joey (Brandon De Wilde), Shane decide trabalhar na fazenda, mas logo descobre que sua paz será perturbada por um malicioso fazendeiro – Rufus Ryker, que deseja o território dos Starrett e de diversas outras famílias que vivem nos arredores.
Não é preciso ser nenhum gênio para compreender essa história bastante simples sobre a impossibilidade de redenção de um herói de passado marcado por sangue e morte. O pistoleiro exilado deseja enterrar seus erros e fugir do principal ofício que lhe sustentava outrora para virar um ajudante de fazendeiro de vida pacata e sem conflitos.
A genialidade reside na moral em não permitir que Shane consiga fugir do passado e da violência – assim como visto em O Pagamento Final de Brian De Palma, por exemplo. Apesar de ser bastante óbvio pela resistência do herói em partir para o confronto sempre que é provocado, não existe muito trabalho para torna-lo mais complexo ou denso. O filme segue o misticismo do pistoleiro sem dar detalhes de seu passado ou dos rumos do futuro.
Shane é um pivô para aglutinar os fazendeiros a resistirem as ameaças e coerções de Ryker. Essa é a alma do filme e também seu melhor foco em oferecer retratos tão genuínos de um povo simples que tenta ser feliz mesmo com todas as probabilidades sendo desfavoráveis a realização de seus sonhos. O maniqueísmo presente entre a conquista da terra através do poder por Ryker e da integridade moral dos fazendeiros solícitos uns com os outros é diluído de modo bastante surpreendente quando Ryker tenta usar outros métodos ao perceber que o medo não mais abalará aquela gente.
Para exemplificar, há um poderoso diálogo no meio da noite para justificar as motivações do vilão conectando o passado selvagem do oeste com o novo tempo de desenvolvimento agrário retratado pelo longa. O insight é valioso para injetar diversos tons de cinza na relação entre bem e mal, apesar do antagonista ser mesmo um crápula. Outro discurso impressionante é relacionado com o desarmamento que a sra. Starrett deseja para o vale, na inocência de crer que não existirá mais violência caso não haja armas no lugar – um ponto também bem explorado através de um diálogo com Shane.
Com uma história boa, progressão de eventos bastante lógica e grandes personagens que conseguem subverter os piores clichês e arquétipos do western, é difícil imaginar que haja algo que retire boa parte do encanto desse grande filme. Mas o fato é que existem problemas relacionados tanto ao roteiro quanto a direção de Stevens. Simplesmente temos um exagero de melodrama na história e o pior de tudo que a parte mais intensa desse drama é posta na figura do insuportável moleque Joey interpretado pelo péssimo Brandon De Wilde.
Os problemas são diversos: os diálogos são terríveis, todas as frases que saem da boca do menino são excessivamente infantis para um garoto daquela idade, além da constante forçada de uma relação memorável entre Shane e a criança sendo que nunca há uma cena impactante que justifique a paixão que o garoto tem pelo pistoleiro – além de, claro, imbuir um sentimento de aventura visivelmente castrado pelos pais. Fora isso, o personagem é superficial e artificial demais para gerar empatia no espectador, além de Stevens pesar muito a mão com close-ups tenebrosos das expressões sempre estranhas do ator mirim, causando um efeito ridículo para a obra.
Todo o realismo cai por terra com essas tentativas baratas de comoção e, infelizmente, o garoto é necessário para que tenhamos aquele belíssimo diálogo final marcando a despedida do herói que influenciou totalmente a conclusão de Logan. Há também outros percalços bobos como uma conveniência narrativa absurda próxima da conclusão do filme, além da inserção de um pistoleiro misterioso “do mal” na figura de Wilson interpretado por Jack Palance, o contraponto místico de Shane que é eficiente para elaborar mais tensão ao conflito, apesar de ser um artifício rasteiro.
Um Mestre para o Oeste
Apesar da produção de Os Brutos Também Amam ter ocorrido bem como geralmente acontece pela eficiência de George Stevens em gerir um set, seu método de trabalho exagerado em capturar uma cena através de diversos enquadramentos gerou um material bruto absurdamente gigantesco. Sendo filmado em 1951, o filme só conseguiu ficar pronto em 1953, exigindo muito tempo de pós-produção para Stevens na montagem, além da Paramount ter ficado bastante insegura com a qualidade final do western.
Insegurança essa que provou ser totalmente equivocada já que o longa foi um tremendo sucesso quando estreou. O sucesso tão familiar a George Stevens. Em vez de seguir ao máximo o caminho da gramática visual pré-determinada para o gênero, o diretor simplesmente fez seu filme como quis, agregando uma mistura de linguagens que rende um resultado bastante único.
O melodrama exagerado até funciona em certos níveis, como na famosa cena do velório, na qual o diretor consegue capturar uma despedida emocionante de um cachorrinho para seu falecido dono, além de trazer todo o peso dramático do elenco para a cena em questão. Outros grandes acertos da decupagem consistem nas melhores lutas corporais já feitas em um saloon para um filme do gênero, o tiroteio final, além da pequena sequência de jornada bastante triunfante para Shane aceitar seu destino violento.
Na técnica bastante pura de Stevens, há a valorização das paisagens naturais das locações, da alta fidelidade do figurino, dos cenários e dos objetos para a época, além da rústica arquitetura adequada para imprimir o realismo desejado pelo diretor que sabe muito bem valorizar essas nuances artísticas da obra. Apesar de não ser um filme Cinemascope, Stevens planeja sua decupagem com enquadramentos que valorizam a verticalidade que essas imagens evocam, podendo construir vistas estonteantes, além de mostrar detalhes de uma emboscada com somente um plano.
Apesar do ritmo da montagem do diretor ser um pouco mais acelerado do que o convencional para a época, Stevens deixa as imagens respirarem por bastante tempo, flertando um pouco com cinema mais contemplativo. Além de suas fusões sempre muito bonitas e poéticas, o diretor se aproxima muito de criar um jump cut – técnica inventada por Jean-Luc Godard em Acossado.
O que temos aqui é um “proto jump cut” já que Steven adianta a movimentação de um personagem quando adentra o saloon com uma fusão em vez de usar o corte seco como Godard faria anos mais tarde. Ainda assim, é um achado técnico e tanto para um diretor que quase inventou uma nova linguagem cinematográfica com um truque simples.
Os únicos pontos negativos da direção de Stevens recaem mesmo no exagero do uso do garoto para forçar o melodrama com close-ups tenebrosos que removem o espectador da experiência construída na base de tanto esforço artístico. Essas inserções desconfortáveis não acontecem somente com Joey, mas com todas as crianças que participam do longa. Simplesmente bizarro.
Eternizando Memórias
Não se trata da obra-prima máxima de George Stevens, mas com certeza Os Brutos Também Amam é uma peça importantíssima para o cinema americano e seu longo investimento em filmes de faroeste. Mostrando a força do bom uso dos arquétipos e de alguns clichês, temos um longa que não teme o julgamento prévio para logo exibir ao que finalmente veio encerrando com um final mágico e corajoso em quebrar convenções clássicas.
Stevens realiza mais um filme caprichado que consegue emocionar bastante com sua história simples e poderosa tão memorável que até hoje é relembrada por outros grandes filmes que a usam como fonte de inspiração.
Os Brutos Também Amam (Shane, EUA – 1953)
Direção: George Stevens
Roteiro: A.B. Guthrie Jr., Jack Sher, Jack Schaefer
Elenco: Alan Ladd, Jean Arthur, Van Heflin, Brandon De Wilde, Jack Palance, Ben Johnson, Edgar Buchanan, Emile Meyer
Gênero: Western, Drama
Duração: 118 minutos.
https://www.youtube.com/watch?v=9vWNrFP4-AY
Crítica | A Chinesa - O Melhor do Cinema Político de Godard
Poucos antes de atingir o ápice do caos do cinema político com Week-End à Francesa, Jean-Luc Godard mostrou sua face esquizofrênica com a inteligente sátira trazida por A Chinesa, seu primeiro filme verdadeiramente político se aproximando do ideal artístico de Bertolt Brecht. Digo esquizofrênico, pois aqui o diretor está totalmente focado em desconstruir a face pedante de jovens revolucionários de esquerda acomodados em todo o conforto burguês enquanto conspiram pela sangrenta revolução que nunca chega. Nada comum com a loucura ideológica que ele aborda em seu próximo filme.
Como geralmente gosta de fazer, Godard trabalha com uma farsa que só é revelada na culminação do clímax da obra. Antes disso, a maioria do longa trabalha com bastante seriedade o que os cinco jovens estudantes pregam entre diversas reuniões e aulas teóricas oferecidas por si mesmos em um método autodidata focado em preencher, também, diversos egos.
Maoísmo da Juventude
Godard traz a história de uma república de cinco jovens que moram juntos, totalmente aficionados pelas filosofias e pelas reformas políticas de Mao Tsé-Tung sobre o comunismo marxista-leninista. Três rapazes e duas garotas então passam os dias estudando ao máximo a ideologia na tentativa de aplicar o método do comunismo chinês na França.
Em toda sua filmografia, o diretor procurou ser engajado com a política sempre apresentando seus pontos de vista através de enfadonhos monólogos entre diversos personagens chegando ao ápice da monotonia com Masculino-Feminino. O problema mais evidente era que essa exposição massiva de ideias carecia sempre de conflito nos diálogos, tornando tudo muito artificial, como se fossem registros de diários pessoais do diretor.
Isso é muito bem resolvido em A Chinesa já que o grupo constantemente entra em discordância através de suas muitas discussões. Como cada personagem tem pontos de vista bastante distintos, o choque de ideias e o amor compartilhado por Mao oferece um dinamismo agradável para os diálogos bem escritos, por mais que o espectador discorde deles.
A fina ironia de Godard aqui se concentra na figura invisível de um entrevistador que parece realizar um documentário sobre o grupo. Ou seja, A Chinesa, além de ser um ótimo filme, é um exercício de metalinguagem bastante interessante. Através dessa abordagem de documentário, novamente temos enquadramentos elaborados para tal, além de Godard oferecer valiosos insights sobre a história pessoal de alguns personagens em nível bastante satisfatório, os tornando mais complexos e verossímeis.
É bem capaz que esse seja o longa com melhor tratamento de personagens desde O Desprezo, filme de 1963. De modo sutil, Godard quer exibir a diferença do discurso dos personagens com a prática. Todos os sonhadores apenas ficam no nível intelectual da masturbação psicológica imaginando a utopia comunista perfeita. O único trabalho deles para começar a converter os franceses é a distribuição gratuita do Livro Vermelho para transeuntes.
Godard também é competente para não focar somente na ideologia do grupo ao trazer as relações amorosas de cada um deles exibindo certa inocência sobre a vida e o funcionamento do mundo. Isso é evidenciado com a culminação inevitável do grupo pender ao radicalismo apelando para métodos terroristas para difundir suas ideias que o mundo parece não estar nada interessado.
Com muita pureza cinematográfica e maturidade como realizador, Godard insere uma sequência formidável na qual um comunista um pouco mais velho conversa com a líder do grupo durante uma viagem de trem. Diversas verdades são ditas que conseguem abalar firmemente com o âmago da personagem que se recusa a escutar os conselhos lógicos de um homem mais experiente, decidindo manter a contradição do discurso sobre a educação que transforma para apelar a forma mais covarde de violência.
Já desfazendo por completo a força ideológica dos garotos que somente a usam como ópio para escaparem da solidão, Godard ainda vai além com o final do longa estraçalhando completamente as esperanças do grupo que se vê obrigado a enxergar a cruel realidade repleta de indiferença para seus sonhos pueris. O fechamento do longa por si já é espetacular ao tratar o Livro Vermelho, até então visto como item religioso pelos estudantes, como um panfleto qualquer, abandonado na sacada de um apartamento que já havia sido recipiente de projetos utópicos.
A Política de Godard
Sem a menor sombra de dúvidas, A Chinesa é o melhor filme político de Godard na qual ele enfim consegue abordar seus pensamentos com um didatismo agradável através de diálogos bem estruturados repletos de choques de ideias e fervor juvenil. Há sequências satíricas repletas de humor inocente, além de uma pose impagável do elenco tentando almejar posturas adultas para esconder a insegurança típica dessa fase da vida.
Quando Godard finalmente consegue colocar suas ideias em ordem no papel, o resultado é arrebatador de tão eficiente. Uma pena que isso aconteça poucas vezes na filmografia desse diretor tão imprevisível, pois A Chinesa é tão antagônico à Week-End que é difícil acreditar que foram realizados em sequência.
A Chinesa (La Chinoise, França – 1967)
Direção: Jean-Luc Godard
Roteiro: Jean-Luc Godard
Elenco: Anne Wiazemsky, Jean-Pierre Léaud, Juliet Berto, Michel Semeniako, Lex De Bruijn, Omar Diop
Gênero: Comédia, Drama
Duração: 95 minutos
https://www.youtube.com/watch?v=SFaEY92jGHI
Crítica | Week-End à Francesa - Cinema que Veio do Lixo
Perito em trazer as reações mais extremadas de amor e ódio de um espectador, Jean-Luc Godard talvez atinja o ápice dessa polarização com Week-End à Francesa, um road movie que poderia ser tão promissor quanto O Demônio das Onze Horas não fosse o radicalismo estético do diretor. É bastante evidente que ao longo de toda sua filmografia, Godard não dá a mínima para a narrativa, a fragmentando e diluindo sempre que possível.
Enquanto o gênero do road movie é convidativo para esse estilo caótico de Godard criar uma boa história, o diretor simplesmente consegue quebrar até mesmo a nossa percepção sobre o gênero. Week-End é apenas caos, anarquia e radicalismo. E Godard nos engana muito bem com os primeiros minutos de exibição.
Uma Viagem Alucinante
A desculpa narrativa para Godard conseguir vender uma sinopse é bastante simples e interessante sendo capaz de render uma boa história, caso ele estivesse com vontade de conta-la. Acompanhamos a jornada do casal Durand, Corinne (Mireille Darc) e Rolan (Jean Yanne), interessados em matar o pai de Corinne para conseguirem uma bolada milionária do seguro de vida. Sabendo que o velho cairá em uma armadilha armada há um tempo, o casal parte para Oinville na esperança de conquistar o dinheiro. O problema é que essa jornada será um verdadeiro terror já que a civilização parece ruir conforme viajam.
Com a aproximação das ideias de Bertolt Brecht sobre arte e cultura como muito explicitado em A Chinesa, Godard finalmente tem a desculpa perfeita para fazer seu filme manifesto totalmente desgarrado da narrativa. Se antes o intuito era subverte-la com a fragmentação, Godard agora quer destruí-la por completo em prol de mandar recados políticos e ideológicos para sua audiência.
Mas destruir uma farsa em questão de poucos minutos é burrice e o diretor sabe muito bem disso. Primeiro, oferece o plano criminoso, o objetivo. Depois, traz um conto erótico repleto de canastrice para suprir as demandas sobre sexo que as narrativas convencionais sempre flertam. Então temos a jornada, inicialmente cômica e fascinante, estabelecendo os protagonistas como dois fanfarrões detestáveis ignorantes que buscam a riqueza fugaz da burguesia.
Como são aproveitadores dispostos a tudo, atravessam o maior engarrafamento da História do Cinema na contramão. Em um travelling lateral que dura praticamente quatro minutos intermináveis, repletos de efeitos sonoros de buzinas irritantes, Godard mostra toda a indiferença dos motoristas e passageiros com a causa do engarrafamento, xingando à exaustão os aproveitadores que cortam o trânsito. É aqui que Godard passa a trabalhar com o caos mostrando diversos acidentes de veículos ao longo de 2/3 da obra.
Depois, praticamente não há mais narrativa, mas sim diversos encontros aleatórios que o casal tem com figuras históricas, divindades e um pianista (sendo esse o melhor trecho dessas bizarrices). Godard utiliza diversos intertítulos que ele julga engraçados para brincar e irritar o espectador, além de já se repetir com as quebras de quarta parede evidenciando que tudo aquilo retratado é um filme e que os personagens têm consciência de serem fictícios. Assim como muita coisa na filmografia dele, é um conceito rico e interessante, mas apenas alfinetado e nunca explorado com mais interesse.
Godard simplesmente é um refém de suas próprias ideias das quais geralmente muitas são ruins e que sempre retiram o espaço para as boas respirarem e agradarem o espectador. Na invenção da linguagem, Godard chega até mesmo a brincar com a progressão dos fotogramas físicos do filme, os descarrilando para ilustrar um acidente automobilístico. Novamente, uma boa ideia e, talvez, uma das últimas que prestem apresentadas em Week-End.
A partir do segundo ato, Godard simplesmente decide desmontar a farsa do restante da narrativa que restava. Através de dois lixeiros, um negro e um árabe, que o casal pega carona, o diretor finalmente traz o seu discurso ideológico à tona com monólogos filosóficos que problematizam a história, a escravidão e as guerras da Argélia e do Vietnã (como de costume), além de outras ideias expostas ao longo de vinte minutos nos quais os personagens ficam comendo um sanduíche olhando diretamente à câmera enquanto o parceiro faz o discurso que ele mesmo daria se não estivesse tão ocupado para tal.
Apesar de ser um truque interessante e da subversão de papéis ao colocar dois lixeiros oprimidos como verdadeiros intelectuais sedentos por vingança contra os imperialistas burgueses brancos, é simplesmente um exercício vaidoso de Godard que novamente esquece que há uma plateia cada vez menos interessada sobre suas divagações ideológicas insuportáveis. Pelo menos para mim, mas isso não quer dizer que você não vá encontrar algo fascinante nos pensamentos do diretor.
Depois disso, a sociedade aparentemente é implodida e logo não acompanhamos mais os protagonistas, mas um grupo de guerrilheiros que vivem nas florestas praticando canibalismo misturado com a suculência da carne de outros animais. Para fazer desse ato seu verdadeiro “Magnum opus”, o diretor cruza a linha da estupidez ao filmar animais sendo assassinados com único propósito de “agregar” valor à mensagem surreal do filme. Um porco e uma galinha perdem a vida e são imortalizados pela prepotência de Godard.
Beirando o ridículo e atingindo o condenável repulsivo, é fácil querer desistir de imediato sobre a obra. Essa é a primeira vez que Godard parece lembrar que há um espectador para seu filme e logo trata de encerrar o filme com uma ironia final “genial” de humor negro sobre as relações humanas quando tudo está perdido envolvendo o casal que inicia a narrativa.
Ao menos, durante boa parte do filme, Godard se preocupa em fazer seu ótimo trabalho com as cores vibrantes do longa, conseguindo chocar quando usa um sangue bastante realista para ilustrar seu sonho masturbatório sobre caos, anarquia e sociedade.
Fim de Semana, Fim de Mundo
Tratando seus espectadores como meros burgueses imbecis que merecem o pior dos tratamentos a partir do choque de uma sátira irritante, Godard consegue ser único e original. Ele realmente atravessa todos os limites para mostrar a decadência humana com críticas ao materialismo e à civilização ocidental. O problema é a prepotência de querer que alguém encare suas mensagens políticas à sério quando se esforça tanto para ser irritante, misógino, porco e inútil com diversas passagens repulsivas em Week-End.
Não é questão de moralismo, mas de bom-senso. Um filme caótico medíocre sobre o caos realmente deve ter sido encontrado no lixo, como o próprio Godard satiriza ao apresentar seu cinema marginal repleto de podridão. Como o pianista do próprio filme comenta: "Há dois tipos de música: a que escutamos e a que não escutamos.". O mesmo deve se aplicar a filmes e temos aqui o exemplo perfeito para o longa que não vemos, apesar das sórdidas tentativas de um diretor histérico e sedento para chamar a nossa atenção.
Week-End à Francesa (Week End, França – 1967)
Direção: Jean-Luc Godard
Roteiro: Jean-Luc Godard
Elenco: Mireille Darc, Jean Yanne, Jean-Pierre Léaud, Paul Gégauff
Gênero: Comédia, Drama
Duração: 105 minutos
https://www.youtube.com/watch?v=dFJLuhVvBPM
Crítica | Masculino-Feminino - Quando Bergman acabou com Godard
Por filmar demais e experimentar ao extremo, Jean-Luc Godard conseguia criar obras-primas memoráveis, assim como tropeços absurdos em sua carreira. Mesmo que muita gente louve Masculino-Feminino, ainda outro drama de romance sobre casais da filmografia do diretor, simplesmente considero esse irritante conto um dos maiores vacilos da carreira do autor.
Trazendo a história de Paul (Jean-Pierre Léaud), um marxista pensador, que se apaixona pela nada ideológica Madeleine (Chantal Goya), uma garota concentrada em perseguir seu sonho de se tornar uma cantora pop. Sem nenhuma razão aparente, além das constantes investidas terríveis de Paul em se aproximar da jovem, os dois convivem atravessando diversas aventuras pretensiosas em Paris.
Até A Chinesa, Godard simplesmente não sabe trabalhar bem questões ideológicas politizadas em seus filmes. Masculino-Feminino é a maior prova disso por conta da completa inaptidão dos diálogos que Paul tem com amigos ou com Madeleine ou através de monólogos longos para si mesmo. Todas as vezes que o protagonista se põe a falar, o espectador é obrigado a acompanhar uma diversidade absurda de verborragia sobre filosofia, política e ideologia.
Como a atuação de Léaud é impassível conseguindo tornar Paul em um insuportável pretensioso, o longa de ritmo já monótono de Godard se torna interminavelmente entediante. Godard pode muito bem sim ter construído uma sátira ao pedantismo juvenil masculino de pseudo intelectual, porém há uma falha que simplesmente destrói o tom cômico completamente: não há conflito. Nunca.
Paul reclama de tudo e traz as conjecturas de Godard, as mesmas de sempre, sobre as guerras da Argélia e do Vietnã indicando um esgotamento criativo do diretor para trazer seu descontentamento do que ocorre para seus filmes. Aliás, esse esgotamento é tão notado que o diretor parece simplesmente ignorar que há algum espectador para a história que ele pretende contar – obviamente, tudo é diluído em quinze cenas aleatórias com pouco ou nenhum encadeamento narrativo.
Testemunhamos então um filme que mais se assemelha a um diário repleto de discursos flácidos prepotentes vomitados em um fluxo de consciência tão maçante que até mesmo os outros personagens simplesmente ignoram – para a nossa infelicidade. Mesmo que Paul consiga elaborar algum questionamento interessante, logo esse é atropelado por mais um caminhão de discursos desconjuntados que não permitem a reflexão atingir o espectador. É a verborragia pela verborragia.
Em Masculino-Feminino, o diálogo é simplesmente uma enorme encheção de linguiça para preencher os intermináveis cem minutos de exibição. Aliás, seria mais apropriado chamar o filme de “Masculino-Masculino”, já que o papel que Madeleine desempenha seja tão irrelevante. Godard não explora os ares das juventudes em uma narrativa típica de guerra de sexos já que, primeiro, o protagonista é um falastrão de esquerda completamente idealizado pelo diretor.
Para piorar isso tudo, o “romance” é tão estéril por conta não só pela falta de química, apesar dos esforços de Goya, mas por conta dos diálogos entre os dois serem pautados em interrogatórios filosóficos sem qualquer refinamento, como se Paul perguntasse o que viesse a sua mente naquele instante. Como Madeleine sempre replica com comentários curtos e nada interessados, não demora muito para Godard fazer uma abordagem sexista na personagem.
Ele a reduz como uma boba sonhadora interessada apenas pelo consumo e acumulação de capital em uma visão realmente misógina: ou as mulheres são “putas” ou são “idiotas” nesse longa – isso é dito em diálogos com os amigos de Paul, já que nunca acompanhamos o ponto de vista de Madeleine quando está distante do protagonista.
O único bom momento que Godard consegue criar alguma atmosfera romântica entre os dois, com Paul ficando bastante desconcertado em se aproximar de Madeleine para dormir na mesma cama, há um momento de silêncio e de delicadeza entre os dois que torna o conflito finalmente honesto. Até que Godard se lembra que precisa se tornar insuportável novamente, interrompendo a bela cena para logo fazer Madeleine recitar uma poesia abruptamente.
Por esses detalhes é praticamente impossível se conectar aos personagens, pelo discurso e pela relação que eles nutrem ao longo de toda a obra. Mesmo com Godard oferecendo um tratamento estético bem rígido e posando a câmera com enquadramentos da linguagem de documentário, para dar a falsa impressão de capturar pessoas reais com dramas reais.
Como o próprio Ingmar Bergman disse sobre esse filme em específico e também da persona de Godard: é um exercício maçante na qual somente o diretor parece estar se divertindo. Godard é um mestre inventor, mas isso não significa que todas suas invenções sejam impecáveis e para todos.
Masculino-Feminino (Masculin féminin, França – 1966)
Direção: Jean-Luc Godard
Roteiro: Jean-Luc Godard
Elenco: Jean-Pierre Léaud, Chantal Goya, Marlène Jobert, Michel Debord
Gênero: Drama, Romance
Duração: 110 minutos.
https://www.youtube.com/watch?v=pRiVKoW18Fw
Crítica | O Demônio das Onze Horas - As Extravagâncias de Godard
Jean-Luc Godard voltaria a abordar a política novamente depois de O Pequeno Soldado somente com O Demônio das Onze Horas, como se fosse uma redenção do diretor pelo trabalho insosso realizado em sua primeira aventura politizada. A mudança na forma técnica seria tão abrupta que Godard até mesmo gastaria muito dinheiro para filmar em Cinemascope e em Technicolor, duas escolhas que certamente rendem melhorias estéticas ferrenhas ao filme chegando até mesmo lembrar o capricho visual de O Desprezo.
Mesmo que não foque inteiramente sobre as guerras da Argélia e do Vietnã, Godard faz questão de mandar suas mensagens ideológicas sem muita cerimônia. Logo, temos o melhor e o pior de Godard como cineasta e roteirista nesse filme que simplesmente se transforma após a marca da primeira hora.
Viagem da Perdição
Por incrível que pareça, O Demônio das Onze Horas possui um dos roteiros mais focados de Godard, conhecido pelas narrativas esparsas bastante diluídas. O fato é a união do estilo peculiar do roteirista com o formato de narrativa muito convidativo para a escrita fragmentada: o road movie. Com ares de Bonnie e Clyde, temos a história de Fernand Griffon, o ‘Pierrot’ (Jean-Paul Belmondo), um homem casado e rico que está entediado da vida de conforto que leva. Quando reencontra uma ex-namorada, Marianne (Anna Karina), decide fugir com a moçoila e encarar uma vida criminosa já sabendo que a mulher é caçada por alguns gangsteres.
A quebra de rotina é sempre muito bem aproveitada pelo road movie que praticamente implora para que suas aventuras tenham pitadas generosas de romance e crime. Nessa junção perfeita, Godard tem tudo em suas mãos para criar uma nova obra-prima. Em primeiro momento, isso de fato acontece.
Os personagens são bastante contrastados, com Pierrot sendo um intelectual maçante que passa dias consumindo cultura para tentar criar suas próprias filosofias – ou seja, as filosofias de Godard já bastante influenciado pelo maoísmo, contra a fascinante Marianne, uma jovem repleta de emoções que só deseja viver o dia como se fosse o último em uma jornada de prazeres.
O romance com os dois acaba funcionando bastante por conta do intenso conflito que surge entre eles quando Pierrot para de atender as demandas criminosas de Marianne, fugindo da adrenalina e se fixando em um paraíso idílico de praias delicadas em constante contato com a natureza. A aventura até ali é bastante agradável exibindo como Godard ainda tem a capacidade de encantar com o bom humor e personagens interessantes.
Isso tem muito a ver por este segmento ser o menos ideológico da narrativa, focando realmente no amor dos dois, nas peculiaridades do tratamento que possuem entre si e nas trapalhadas criminosas de ambos, mesmo que ainda tenhamos a forte presença das leituras de Pierrot. A imprevisibilidade dos personagens em união a algumas conveniências narrativas também funciona para manter a fluidez da trama.
Os problemas surgem a partir de um momento muito bizarro que Godard faz questão de encaixar na vã tentativa de criticar os Estados Unidos sobre a Guerra do Vietnã. A sequência inteira é de um mau gosto completo. O que incomoda, além da insensibilidade artística, é a prepotência intelectual de Godard que demonstra sua soberba com a completa ignorância sobre o tema, apelando aos mais cafajestes dos estereótipos.
A derrocada é iniciada aí, com Godard fragmentando ainda mais a narrativa jogando acontecimentos aleatórios e mudando a índole do casal. Cenas de tortura retornam, além de trechos de violência que simplesmente não casam com que era feito antes. O resto da história se comporta como se fosse um filme totalmente diferente, apesar de possuir uma bela sequência musical que abranda o tom surreal que Godard adota. São diversos erros como a separação do casal, a inserção de novas cenas com monólogos insuportáveis, entre outros elementos que também já tiraram o brilho de outros filmes do autor.
Na direção, surpreendentemente, há um flashback da técnica que apresentou em O Desprezo: refinamento e elegância. Godard é um cineasta de fases que consegue se transformar inteiramente em questão de um intervalo pífio. Justamente por isso que seus filmes são tão fascinantes e diferentes a um ponto que se torna difícil perceber, somente pelo visual, que foram dirigidos pela mesma pessoa.
Apesar de nunca movimentar a câmera fora de seu eixo com travellings ou gruas, o diretor compensa com panorâmicas milimetricamente precisas para manter um equilíbrio invejável nos enquadramentos sempre belos do longa. A explosão de cor, com objetos também selecionados a dedo para oferecer também contrastes absurdos, se torna um festim para os olhos. Como boa parte do filme é centrado em locações repletas de paisagens estonteantes, é difícil não categorizar O Demônio das Onze Horas como um dos longas mais bonitos de Godard.
O tom quadrado do manejo de câmera não impede as outras marcas ousadas do diretor como algumas quebras de quarta parede mais criativas, inserções de letreiros excêntricos, além da montagem sempre muito característica do diretor. A encenação realmente não é um dos pontos fortes aqui, apesar de Godard montar uma piada genial ao final do filme, quase satirizando a si próprio com o intenso papo filosófico.
Aliás, há uma transformação visual digna de nota no começo do filme, na qual acompanhamos Pierrot e sua mulher em uma festa aparentemente insuportável. Para representar a imobilidade da burguesia e da repleta falta de contraste, Godard usa filtros nada sutis jogando os rígidos enquadramentos sob cores monocromáticas de tons esverdeados, vermelhos ou azuis. Com a quebra do confinamento de Pierrot em sua vidinha, a opulência visual do longa se faz ainda mais poética e adequada.
Filme Interrompido
Às vezes a maior ameaça contra uma obra pode ser o seu próprio criador. O tom ideológico de Godard consegue tornar O Demônio das Onze Horas em um filme realmente insuportável em sua hora final, renegando completamente o bom trabalho feito anteriormente que consegue capturar a atenção do espectador, além de gerar empatia com os personagens, em especial com Marianne já que Anna Karina exibe sua melhor performance nessa parceria com o diretor.
Mas não é apenas por conta do cinismo pedante do diretor que o filme se perde, mas pela narrativa que passa a saltar no extremo da fragmentação, quebrando qualquer sucessão de lógica ou coerência apresentada até então. No mais, é um bom filme de Godard, extremamente belo e feliz em sua primeira metade fiel a proposta do longa, mas ainda se trata de uma obra atropelada pelo próprio ego do realizador.
O Demônio das Onze Horas (Pierrot le fou, França – 1965)
Direção: Jean-Luc Godard
Roteiro: Jean-Luc Godard
Elenco: Jean-Paul Belmondo, Anna Karina, Graziella Galvani,
Gênero: Crime, Drama, Romance, Comédia
Duração: 110 minutos.
https://www.youtube.com/watch?v=TVvhJrrgfs0
Crítica | O Pequeno Soldado - O Filme Censurado de Godard
A história sobre a produção de O Pequeno Soldado talvez seja mais famosa que a do próprio filme. Na prática, esse seria o segundo filme de Jean-Luc Godard, filmado poucos meses depois de Acossado que também marcaria a primeira colaboração do diretor com a musa Anna Karina que se tornaria sua namorada em pouco tempo.
Marcando o primeiro verdadeiro filme político da sua carreira, Godard focou a narrativa em uma história de espionagem situada em plena Guerra da Argélia mostrando as problemáticas ideológicas do conflito com a união amorosa de espiões de lados opostos. Como o filme tem níveis de violência gráfica moderados e um discurso que complicava o lado dos franceses do conflito, o longa sofreu com a censura até o fim da Guerra com a França reconhecendo a independência do país em 1962.
Com o fim do conflito, a censura francesa liberou a estreia do filme em 1963. E para quem acompanha a carreira de Godard seguindo os filmes na ordem de lançamento, o choque é tremendo.
Trabalhos Duplos
É um fato conhecido que as narrativas de Godard só se tornam mais consistentes a partir de Viver a Vida. Apesar de não ser tão inventivo quanto Uma Mulher é Uma Mulher, o roteiro partilha as características caóticas da história simpática da comédia romântica de 1961. Com a presença massiva de uma narração over que tenta conferir um tom noir bastante falho já que Godard é péssimo em criar atmosfera aqui, ela mais funciona para aglutinar as esparsas cenas da obra bastante confusa.
A narração em primeira pessoa traz diversas explicações para entendermos como o espião Bruno Forestier (Michel Subor) falha em assassinar um alvo importante e logo é procurado por seus comparsas que passam a duvidar da sua lealdade. Nesse meio tempo, ele se relaciona com Veronica Dreyer (Anna Karina), uma outra espiã do lado oposto do conflito também em missão na cidade de Genebra.
Altamente pretensioso, Godard não dá a mínima para a coesão de sua narrativa, inventando regras absurdas ou saídas milagrosas que fazem pouco ou nenhum sentido. Com a quase inexistência de diálogos, temos diversas sequencias repletas de exposição via monólogos, seja do protagonista em narração ou quando ele exibe seus pensamentos para outros personagens. A presença massiva de leituras de trechos filosóficos ou políticos de esquerda também colabora para tornar a obra ainda mais enfadonha.
Como os personagens não parece reais pelo acabamento rudimentar do filme, não existe muita empatia com o casal ou desprezo pelos antagonistas da trama. Mas Godard acerta algumas boas sequências, principalmente a de tortura. Lenta e pesarosa, o diretor não escolhe lados mostrando como ambos utilizavam métodos grotescos para conquistar novas informações. Mesmo que seja também falha na direção, a cena ganha pontos pela coragem da realização.
Se a história de O Pequeno Soldado é uma grande bagunça incompleta apelando até mesmo para a narração para trazer à tona acontecimentos importantíssimos como a morte de uma personagem, o mesmo pode ser dito da direção de Godard, extremamente problemática e imprecisa. Basicamente, não existe clima no filme inteiro, é um exercício estéril incompleto reunido por uma montagem burocrática que nem chega a permitir que o diretor invente novos recursos fascinantes para a linguagem cinematográfica.
De estética verdadeiramente feia, coisa que até então era uma raridade, Godard não traz uma encenação interessante, não injeta ritmo para salvar o filme do marasmo, apesar de notarmos nitidamente algum esforço do cineasta em aglutinar melhor a obra. Visualmente, é apenas interessante o manejo rápido da câmera em movimentos panorâmicos para mostrar diversos detalhes de uma cena.
Pequeno Entrave
O Pequeno Soldado é mesmo uma das menores obras de Godard por seu caráter burocrático que transmite a incômoda sensação de ser um filme incompleto e todo fragmentado. Godard pode tentar fazer o máximo para trazer suas conjecturas filosóficas e políticas através dos monólogos prepotentes do protagonista espião que se torna um virtuoso intelectual em questão de segundos, mas é bem provável que o espectador não vá encontrar a resposta para todos os conflitos ou indagações transformadoras nesse pequeno filme repleto de defeitos até mesmo para o padrão mais relaxado do diretor.
O Pequeno Soldado (Le Petit Soldat, França – 1963)
Direção: Jean-Luc Godard
Roteiro: Jean-Luc Godard
Elenco: Michel Subor, Anna Karina, Paul Beauvis, Henri-Jacques Huet
Gênero: Guerra, Drama
Duração: 88 minutos.
https://www.youtube.com/watch?v=SS1qNnW3XF8
Crítica | Um Lugar ao Sol - A Morte do Sonho Americano
A Guerra muda pessoas. George Stevens, mesmo já consolidado na indústria antes de 1944, foi um dos diretores que partiram para a Europa a fim de fazer o registro histórico em filme das ações das tropas americanas. Dentro de sua filmografia, há uma nítida diferença entre o antes e depois dessa experiência transformadora na vida do diretor.
Se antes Stevens abordava temas espinhosos através da sutileza do sistema de estúdios com algumas comédias românticas com pitadas de drama, nada seria comparado quando surgissem as poucas oportunidades dele próprio financiar um filme como no caso de Um Lugar ao Sol conseguindo distinguir fortemente seu trabalho do que era feito na época, alcançando uma atenção dedicada a outros mestres como Elia Kazan e Alfred Hitchcock.
Ideias Perigosas
Apesar de já ter sido adaptado anteriormente, a versão de Michael Wilson e Harry Brown sobre a “Tragédia Americana”, romance clássico de Theodore Dreise, é uma das mais eficientes em trazer o cerne da problemática moral do original. A narrativa é focada na enorme desventura de George Eastman (Montgomery Clift), um garoto pobre de uma família muito rica. Sem esperanças de encontrar emprego, parte para a casa dos tios ricaços donos de uma fábrica de maiôs como última tentativa para melhorar de vida.
Pouco sensibilizados pela situação do sobrinho, os Eastman oferecem um cargo baixo na indústria para o garoto conseguir sair da miséria, mas não o adotam como parte da família. Isolado e solitário, George trabalha por meses como embalador na fábrica e nota que certa moça sempre lhe oferece olhares amigáveis. Alice (Shelley Winters) se apaixona por George e os dois começam a namorar, apesar disto ser contra as regras da firma. Com a relação apimentada, ambos dão passos ousados e ela acaba grávida. Isso seria um ótimo sonho para George, caso não fosse a nova paixão que aparece em sua vida, Angela Vicker (Elizabeth Taylor).
Ela, extremamente rica, oferece a oportunidade perfeita para George ascender socialmente e ser aceito pelos milionários de sua família. Aliando o útil ao agradável, tudo poderia ser perfeito se Alice não estivesse grávida. Temendo a miséria novamente, George começa a planejar um modo de se livrar do estorvo que vira Alice.
O tom sombrio da sinopse não é constante no longa inteiro, afinal Stevens e os roteiristas caminham por diversos gêneros ao longo da narrativa. De fato, Um Lugar ao Sol é um filme que engana bastante. Em primeiro momento, trabalham para oferecer a errônea impressão de trazer um drama de questões sociais, com um pobretão se esforçando para ser aceito pela família e melhorar as condições de vida da mãe que mora em um lugar distante. E claro, uma pitada de romance obrigatório para as produções da Hollywood clássica.
A eficiência desse primeiro ato é tamanha que a força de empatia que George gera no espectador é simplesmente impossível de ser quebrada, mesmo nos caminhos mais tenebrosos que a narrativa seguirá posteriormente. Como a empatia com o protagonista é forte, o espectador passa a desejar o melhor para ele. Os roteiristas são espertos em inserir o segundo romance em primeiro momento, com Angela nem percebendo a existência de George enquanto ele era rejeitado pela classe social dos tios.
Somente por uma olhada do acaso que ambos se conhecem, apesar de George já ser vidrado na moça desde a primeira vez que a viu. Como a diferença de abordagem – sustentada pelo talento indubitável de Montgomery Clift, de George com as duas moças, é possível sentir para qual o coração dele pertence. Mesmo que haja sim um maior contraste para revelar o lado sombrio do protagonista após solidificar o romance com Angela, sentimos o crescente pavor do conflito interno que ele sofre: ser feliz e arriscar sua liberdade ou ser infeliz com uma mulher que não e um filho indesejado.
De certa forma, essa disputa mais sombria dentro de um triangulo amoroso, pela abordagem ética do herói e da própria jornada, é possível relacionar Um Lugar ao Sol com o clássico Aurora, grande obra-prima de F.W. Murnau. No caso, temos aqui um olhar repaginado dessa história tão marcante. A evolução dos personagens, principalmente de Alice com George, é crível pelo jogo desesperado que os dois se encontram.
É justamente aqui que temos a abordagem de problemas sociais relevantes que capturam tanto a atenção do George Stevens pós-Guerra. O tema do aborto é uma constante toda vez que Alice e George estão juntos, apesar de nunca ser diretamente mencionado. Há buscas para isso, além da profunda tristeza de Alice notar que George já não está mais conectado a ela, a tratando com indiferença ou repugnância. Exatamente como os ricos o tratavam quando era apenas um operário qualquer, afinal ele só passa a ser notado pela sociedade quando namora Angela.
Isso certamente complica a relação de George com o espectador. Moralmente, ele sempre está errado, mas como o próprio personagem sabe disso, as circunstancias que levam ao terceiro ato ficam ainda mais complicadas. É simplesmente difícil definir uma condenação ao protagonista, afinal ele parece não ter culpa pelo ocorrido, apesar de ter desejado que o pior acontecesse. O segundo ato inteiro envolve esse clima de suspense bastante soturno e como Stevens filma tudo a uma distância complicada, o espectador fica ainda mais perdido para julgar o personagem.
De romance para suspense, Stevens e os roteiristas decidem mudar novamente os rumos do filme, sempre de modo bastante imprevisível, mas muito lógico pelas causas e consequências. O terceiro ato inteiro é concentrado no profundo melodrama por vezes exagerado e em outras, bastante adequado. O gênero do longa é alterado para contemplarmos uma injustiça justa ou uma justiça injusta já que há muita ambiguidade na sombra da dúvida do ato de George. A moral do filme é bastante poderosa não só por conta do texto excelente repleto de diálogos marcantes, mas principalmente pela direção de Stevens.
O Espectador como Testemunha
Stevens faz confidências para o espectador de muitos modos. Acompanhamos cada momento íntimo de George e até mesmo alguns de Angela e Alice. O diretor quer que saibamos mais do que os personagens para infligir maior desespero com o trágico desfecho da obra, já que a dúvida sempre permanecerá na discussão que ele propõe.
Desse modo, da força das relações humanas e de alguns ótimos momentos como a visita de Alice ao “bom doutor” e do desmaio de Angela, Stevens torna esses personagens bastante críveis fugindo do glamour artificial que muitos longas empregavam na época. Também há a diferença de Um Lugar ao Sol ser um dos filmes que o próprio diretor bancou, podendo realizar as extravagâncias autorais que desejava.
O intenso trabalho com locações e cenários mais ornamentados e diversos tornam o filme mais ritmado, além das reviravoltas surpreendentes que alteram a guia de gênero que Stevens trabalha. Seja com qualquer campo que ele toca, há um estupendo trabalho de ideias. Logo no começo do longa, com Eastman conhecendo o resto de sua família, o diretor consegue isolar o protagonista de todos os modos nos enquadramentos afastados para definir a geografia das posições que os atores estão. Não somente o figurino rudimentar o isola, mas o fato de toda a família estar em um eixo oposto a ele, como se tivessem nojo e quisessem evitar o incômodo de sua presença a todo custo.
O drama é bem imposto e sentimentos como o personagem passa a ficar levemente deprimido e sonhar o impossível até se apaixonar por Alice, se contentando com as possibilidades de sua realidade, apesar de ser tão Eastman como qualquer outro da fábrica. A condução dos dois romances é bastante eficaz e repleta de pequenos contrastes. Novamente abordando Aurora enquanto há um romantismo da cidade, com cinemas e parques que Alice e George visitam, com Angela temos a palpitação da aventura exótica com a visita a lagos, passeios de lanchas, extremo conforto, além da companhia de uma mulher bem mais bonita.
Um dos mais poderosos momentos se concentra no verdadeiro primeiro contato de Angela com George. Na segunda visita a casa do tio, novamente o personagem é tratado com indiferença. Stevens faz com todos os figurantes se afastem dele conforme se movimenta no cenário até finalmente ficar isolado, jogando bilhar sozinho.
Quando Angela o convida para dançar, vemos o protagonista resistir em entrar no salão repleto de figurões da alta sociedade, dançando no batente da porta até que a garota o conduz para dentro. A mensagem é sutil e bela, mas bastante clara: somente Angela poderia ter colocado ele como um privilegiado. Tanto que na cena seguinte, em outro jantar elegante, os convidados já até sabem o nome de George. Ele finalmente é adotado pela grife de seu nome e se sente realizado pela primeira vez na vida. Como o sentimento de felicidade é tão genuíno – novamente, Montgomery Clift impecável, compreendemos toda sua motivação para se livrar de Alice, o passaporte de volta para a miséria.
Apesar de estar próxima de ser um sex symbol para a época, Shelley Winters que interpreta Alice se esforçou ao máximo para que Stevens a escalasse para o papel. Para isso, deliberadamente usou roupas nada glamourosas, além de penteados que a envelheciam além da conta. Mantendo o visual idealizado pela atriz, Stevens cria um contraste simpático, mas poderoso entre os dois amores, inserindo mais um item polêmico para as escolhas de Eastman na obra.
Aliás, Stevens optou inteiramente em filmar em preto e branco por conta de uma cena em particular que também é a melhor do filme: a do barco. Em toda a sequência, Stevens prepara o terreno com planos enquadrados de modo bastante fantasmagórico, como se os personagens tivessem adentrado o próprio Estige em um plano sobrenatural. Sob o tratamento mais forte de contraste dos tons cinzentos e uma decupagem simples, o diretor evoca um suspense matador que, apesar de não durar muito tempo na prática, parece uma verdadeira eternidade.
Stevens simplesmente trabalha como um mestre em Um Lugar ao Sol. Sua condução é impecável do início ao fim no vasto esforço de oferecer dinamismo visual, movimentos de câmera elegantes, além de enquadramentos inteligentes que sempre valorizam a profundidade de campo trabalhada com tanto cuidado por ele. Entretanto, ouso dizer aqui que nenhum cineasta americano consegue trabalhar com fusões tão bem quanto Stevens. Os usos vão desde funcionais como uma elipse aliando imagens de Eastman trabalhando intercaladas com passagens dos dias no calendário, até mais poéticas quando o protagonista caminha para seu destino final e se lembra do primeiro beijo, tão terno e mágico em Angela. Há fusões que aliam até mesmo quatro planos diferentes de modo absolutamente impecável. É algo mágico de se ver.
A Tragédia Americana
O cinema clássico rendeu filmes excepcionais e mesmo já bastante “idoso”, Um Lugar ao Sol facilmente é um dos melhores exemplares que os grandes diretores americanos poderiam fornecer. George Stevens soube tornar seu filme em uma peça artística atemporal. Não por conta da linguagem e de seus dilemas morais repletos de problemáticas que jogam o espectador em diversas emoções conturbadas, mas pela eficácia do inegável charme que o filme sustenta. Um romance, suspense e melodrama que com certeza encontrou seu lugar ao Sol.
Um Lugar ao Sol (A Place in the Sun, EUA – 1951)
Direção: George Stevens
Roteiro: Theodore Dreiser, Michael Wilson, Harry Brown
Elenco: Montgomery Clift, Elizabeth Taylor, Shelley Winters, Anne Revere, Keefe Braselle, Raymond Burr, Fred Clark
Gênero: Drama, Romance, Suspense
Duração: 122 minutos.
https://www.youtube.com/watch?v=_Fm6sa_L5_4
Crítica | Bando à Parte - A Rebeldia Apaixonante de Godard
Jean-Luc Godard é um cineasta que está sempre em movimento. O mais fascinante é que não existe uma direção predeterminada para ele. Se resolve se renovar, simplesmente o faz, sem planejar tudo com antecedência ou gerar alguma crise pessoal que seria refletida em um novo filme. De muitas maneiras, Bando à Parte é uma resposta ao cinema anterior de Godard.
Não sobre os pequenos grandes filmes que havia feito como Acossado, Uma Mulher é Uma Mulher, O Pequeno Soldado, entre outros, mas especialmente para seu flerte com o star system e studio system que resultou uma obra-prima desgostada por si mesmo: O Desprezo. Para qualquer diretor, seria natural seguir o caminho das pedras e realizar filmes com orçamentos maiores e repletos de elegância.
Mas Godard não é qualquer diretor. Livre da produção do seu luxuoso filme anterior, já iniciou Bando à Parte como a completa antítese do que havia feito um ano antes. E o resultado é simplesmente único.
Passado Revisitado
Mesmo que Godard traga de volta diversas características de seus filmes anteriores aqui, há diferenças substanciais que marquem essa renovação de estilo do diretor. A começar, Bando à Parte é praticamente improvisado em sua totalidade. O diretor adapta livremente o romance de Dolores Hitchens, Fool’s Gold, com essa simpática história de três jovens: Odile (Anna Karina), Franz (Sami Frey) e Arthur (Claude Brasseur) que “planejam” um assalto na casa dos pais da bela e ingênua moça que compartilhou a valiosa informação de que há uma enorme quantia de dinheiro guardada em sua casa.
Godard ainda dilui a narrativa como de costume, fazendo diversas curvas para chegar ao destino final sem se preocupar em desenvolver os personagens. Visando trazer algo próximo de um film noir com os filmes de crime, ele apresenta Franz e Arthur como uma dupla fissurada por violência e bastante inspirada pelos filmes de assalto que tanto gostam de assistir.
Apesar de serem maliciosos, ambos compartilham a ingenuidade de Odile, agindo como criminosos tanto para atender o desejo inerente de adrenalina da juventude assim como resolver uma pendencia financeira com o tio criminoso de Arthur. Novamente, é bastante fácil ficar perdido nessas minucias do roteiro livre de Godard, já que temos diversas cenas desconexas focadas no envolvimento do trio em um poderoso triangulo amoroso.
Tanto que a apresentação de Odile se dá em uma aula de inglês na qual a professora pede para que os alunos traduzam trechos de Romeu e Julieta, inferindo uma aventura apaixonante para Odile. A abordagem dela com os bandidos é bastante excêntrica, pois claramente ela é atraída pelo perigo que eles representam, da instabilidade completa, mas também teme que os dois machuquem sua família ou lhe tragam miséria.
Essa dicotomia é bem trabalhada e dividida nas figuras de Franz e Arthur, um rapaz mais introvertido contra um rapaz mais violento e impulsivo. Godard insere diversas ironias tornando os personagens reféns da própria imaturidade como a questão sobre organizar um plano para esse assalto desajustado. Negando a necessidade de reagir contra imprevistos, subestimando os donos do dinheiro, o trio passa o tempo se divertindo em bares em cenas muito apaixonantes e memoráveis que colocam Bando à Parte como um filme muito simpático.
Aliás, esse tom leve e simples entra em contraste direto com a atmosfera densa e intelectual de O Desprezo. De muitas formas, essa é uma das obras mais acessíveis de Godard para qualquer espectador. Nessa linha de condução da narrativa, Godard brinca com a descontração dos personagens através de passagens sobre “um minuto de silêncio” na qual todo o som diegético é removido por trinta e seis segundos experimentando mais uma vez com a linguagem cinematográfica, ou com a inesquecível cena de dança “Madison” que evoca toda a meiguice de Odile – cena que também inspirou a sequência de dança em Pulp Fiction, além de um recorde improvável a uma visita ao Louvre.
Esses desvios apenas comprovam como a história do assalto é a tarefa menos importante para Godard em Bando à Parte. O diretor subverte essas convenções ao focar no lado mais humano dos personagens bastante realistas. Se trata apenas de uma jornada de bobos ingênuos que aprendem o sacrifício necessário para realizar sonhos criminosos. Há até mesmo a presença de um narrador over onisciente e onipresente para balancear melhor o intelecto dos personagens, esclarecendo alguns sentimentos que poderiam ficar fadados em uma ignorância do espectador menos atento.
Com esse rumo de improviso tão forte na obra, o mesmo ocorre com a direção de Godard, fugindo ao máximo do que havia feito em O Desprezo. Ou seja, nada de elegância e bastante desleixo. Nesse ponto é que o diretor tenta evitar realizar encenações longas com passeios de câmera muito bem estabilizados, closes e experimentação excessiva com a montagem.
As inovações linguagem estão presentes, mas muito reduzidas, assim como as características quebras de quarta parede. Apesar de ainda dar preferencia para planos longos, Godard interpola mais a decupagem, oferecendo um visual mais fragmentado do que o de costume ao trazer diferentes planos para diálogos ou ações. Já com a câmera, basicamente realiza todo o filme com ela instável, operada na mão, sem se preocupar com a plasticidade equilibrada dos enquadramentos. O que de fato é muito mais experimentado pelo diretor aqui é o uso da profundidade de campo, além de longas sequências que acompanhamos as andanças de Franz e Arthur com o carro conversível pelas ruas de Paris – além de outros trechos totalmente avulsos como uma pequena jornada de Odile para alimentar um tigre.
Ao fim de seu simples filme, para ridicularizar de vez a experiência controlada que teve com O Desprezo, Godard anuncia que seu próximo filme será filmado em cinemascope e technicolor, recursos que havia usado obrigatoriamente com o longa anterior.
Atos de Rebeldia
Bando à Parte é um filme rebelde e provavelmente um dos mais pessoais de Godard. O uso da história desleixada, dos improvisos e do descuido cinematográfico funcionam como um exorcismo do diretor, um grito de guerra e desespero clamando que nunca mais voltará a trabalhar nos moldes que experimentou com uma produção mais cara – e isso de fato acontece.
O verdadeiro Bando à Parte, de jovens deslocados e apaixonados pela aventura e o imprevisível, não é sobre Odile, Franz e Arthur, mas sim o Bando das produções frenéticas do jovem Jean-Luc Godard, o isolado mais criativo do Cinema.
O Bando à Parte (Bande à part, França – 1964)
Direção: Jean-Luc Godard
Roteiro: Dolores Hitchens
Elenco: Anna Karina, Claude Brasseur, Sami Frey, Louisa Colpeyn
Gênero: Crime, Comédia, Drama
Duração: 95 minutos
https://www.youtube.com/watch?v=TM0lC2QCiSU
Crítica | A Mulher do Dia - Um Filme do Passado que veio para o Futuro
O debate do cinema contemporâneo hoje não consegue mais explorar sobre a qualidade dos filmes, de suas histórias, da estética, entre outros elementos que tornam um filme, Cinema. Os espectadores estão preocupados em ver se o longa consegue ter uma moral fixa que não ofenda quaisquer minorias, o máximo possível de diversidade, além do uso sempre positivo de estereótipos de outrora.
É um tanto engraçado notar essa preocupação fiscalizadora de hoje quando um filme de 1942 conseguiu trazer elementos que conseguem atender algumas demandas desse novo “olhar” sobre cinema. A Mulher do Dia, um dos clássicos de George Stevens, é um filme fora da curva para a Hollywood Clássica, um período no qual a indústria era tão apegada em reiterar a superioridade moral do american way of life.
Dias Incríveis
Com o mundo em plena Segunda Guerra Mundial, temendo pela perda de todas as liberdades nas mãos dos nazistas, não iria demorar nada para Hollywood começar a entregar filmes que elevassem bastante a moral americana – mesmo que os EUA só participassem efetivamente da Guerra a partir de 1944.
Mesmo que diversos dramas retratassem com eficiência o sacrifício das vítimas da Guerra, era totalmente incomum que um filme buscasse discutir abertamente o Feminismo – se é incomum hoje, imagine em 1940. O que torna A Mulher do Dia tão interessante é justamente essa característica que o destaca dentre todos os filmes dessa conturbada década.
O trabalho é tão bem-feito que o roteiro de Ring Lardner Jr. e Michael Kanin venceu o Oscar em 1943. Basicamente, como todos os grandes filmes da época, muitas qualidades são concentradas na história extremamente verborrágica com diálogos bem construídos. Aqui, temos a jornada de Tess Harding (Katherine Hepburn), uma jornalista consagrada mundialmente pela qualidade indubitável de seus importantes artigos sobre diversos assuntos, encontrando o amor com Sam Craig (Spencer Tracy), um jornalista de esportes extremamente simples.
A apresentação de ambos se baseia no contraste que segura muito bem o primeiro ato do filme. Craig e Harding tem conflitos intensos sobre o que cada jornalista julga importante em seu trabalho, menosprezando o papel social que ambos têm com o público. Esse choque de ideologias traz o clássico arco que mostra os dois conhecendo as esferas de trabalho de um do outro. Como a comédia é bastante concentrada no primeiro ato, essas descobertas geralmente são constrangedoras, mas sempre para Craig.
Enquanto Harding se diverte e compreende com rapidez as regras dos jogos que Craig a convida, o jovem repórter sofre nas reuniões com diplomatas que conversam em inúmeros idiomas – dos quais Tess domina com bastante fluência, ou nas reuniões sobre emancipação feminina na América. Curiosamente, isso nunca é posto como ridículo pelos roteiristas. Harding é uma virtuosa completa no trabalho e serve como um ícone de inspiração para diversas mulheres buscarem a independência profissional, abandonando o modelo de dona de casa pregado pelo american way of life.
Com uma mulher tão incrível e fascinante, Craig se apaixona, assim como Harding em encontrar um homem que consiga aceitar bem o ritmo frenético de sua vida. Em questão de pouco tempo, eles se casam e os problemas começam a surgir. Os roteiristas já deixam o caminho praticamente pronto para os conflitos que o casal sofre no segundo ato, apenas reforçando como a vida profissional extrema de Harding não a permite viver o casamento de modo pleno.
Logo, há um trabalho fascinante para criar uma antagonista na figura de Harding, sem nunca precisar apelar a qualquer clichê boboca de guerra dos sexos. Com os dois morando juntos, Craig passa a se sacrificar mais pelo casamento, se mudando para o apartamento de Tess, além de respeitar as inúmeras viagens que esposa precisa realizar para o trabalho. A partir de situações absurdas, mas críveis para aqueles personagens, vemos como Tess pode ser uma mulher egoísta, colocando sua glória profissional sempre em primeiro lugar.
São diversas situações que Craig tenta superar até uma discussão final que exibe todo o despreparo de Tess no trato humano com seu marido e com as outras pessoas que a cercam, incluindo a própria família. Aliás, o pai e a “tia” de Tess tem um papel importantíssimo para encaixar uma poderosa catarse na protagonista. A insatisfação de Craig também é tratada com cuidado, evitando demonizar Tess. Apenas vemos que ele está insatisfeito em nunca poder aproveitar seu tempo com a esposa.
Infelizmente, o final do longa é julgado de modo bastante preconceituoso pelos espectadores, o taxando de misógino. Entretanto, é bastante claro que essa interpretação é equivocada por uma característica boba do filme em resgatar o tom cômico do primeiro ato, já que o drama é bastante intenso no miolo do filme. De modo lógico e também bastante justificado pelo filme, vemos Tess tentando se encaixar no modelo de dona de casa perfeita que ela julga ser o que Craig procura – ou seja, a catarse da mulher é bastante única, pois ela não entende praticamente nada do que havia sido dito antes.
Por isso, temos um trecho muito longo exibindo a completa falta de dotes da mulher com a cozinha ao preparar um café da manhã surpresa para Craig. É aqui que a mensagem do filme fica ainda mais forte, explorando como a força do matrimônio pode trazer equilíbrio na vida do casal. Craig não quer que Tess sacrifique sua vida profissional, apenas deseja que ambos consigam ter uma vida normal, dividindo e celebrando as conquistas de cada um. De modo subjetivo, vemos que aquela loucura profissional da mulher não permite nem mesmo que Tess consiga ter uma vida para si mesma, já que tudo é engolido pelo trabalho.
Sem ofender nenhum dos lados, colocando a importância da mulher no cenário profissional, além desconstruir a moral absurda do american way of life, os roteiristas criam uma história simplesmente memorável que nem parece pertencer aos anos 1940 de tão atual que consegue ser. Ainda mais hoje que a vida profissional é sempre colocada em primeiro lugar para ambos os sexos.
Um Mestre Limitado
Não existem dúvidas que George Stevens seja um excelente profissional. O prolífico diretor era um dos favoritos para encabeçar produções importantes, se portando como um ótimo faz tudo que compreendia muito bem as minúcias do sistema de estúdio que imperavam com muita força na época.
Stevens sabia que era limitado por diversos elementos como a problemática do peso da câmera e da limitação dos cenários em estúdios compartilhados. Mesmo que tenhamos algumas cenas externas, o diretor as falseia encaixando os atores em um plano distinto construído dentro de um estúdio. Com o peso do maquinário necessário para montar uma cena, não havia a menor possibilidade de realizar algo visualmente mais atrativo, ainda mais em um filme de orçamento modesto concentrado no talento dos atores na troca de diálogos.
Essa certamente é uma das maiores forças do diretor em unir tão bem os talentos de Hepburn e Tracy que apresentam uma química tão fantástica que gerou uma parceria futura de mais oito filmes. Os dois carregam o filme inteiro com performances espetaculares sem a necessidade de apelar a caricaturas ou quaisquer exageros. O contraste do descontentamento de Tracy com a expressão sossegada de Hepburn é simplesmente impagável.
O curioso é que Stevens tem plena consciência da limitação cinematográfica técnica que atinge seu talento. Nunca podendo realizar um plano reverso, sempre obedecendo a um eixo teatral, movimentando a câmera de modo sempre simples, Stevens oferece uma dinâmica de montagem bastante acelerada para a época trazendo novos planos, sempre com a hierarquia bem definida, em questão de poucos segundos. Tudo isso para dinamizar o ritmo do filme que realmente é bastante fluído.
O único ponto que pesa negativamente para a direção de Stevens é o clímax da obra. Além da piada ser extensa fora dos limites do saudável, a duração da cena, com uma dinâmica cafona, tira muito tempo de exibição que poderia ser aproveitado com outras que mostrassem, enfim, a conquista do equilíbrio por Tess, conseguindo conciliar o casamento com o sucesso profissional. Por conta dessa piada boba, o filme termina de modo abrupto, sem abandonar o clichê do beijo final.
Troca de Papéis
A Mulher do Dia não é a melhor obra de George Stevens, obviamente, mas se trata de um longa simplesmente visionário que conseguiu trazer uma protagonista feminina independente sem apelar para estereótipos pejorativos, respeitando as características da mulher trabalhadora, mas exibindo que o equilíbrio sempre é a solução para salvar todos os relacionamentos.
Muito mais do que um filme de piadas bobas com as infames “trocas de papéis”, temos aqui um clássico esquecido que carrega uma mensagem muito valiosa para hoje e, muito provavelmente, para sempre.
A Mulher do Dia (Woman of the Year, EUA – 1942)
Direção: George Stevens
Roteiro: Ring Lardner Jr., Michael Kanin
Elenco: Katherine Hepburn, Spencer Tracy, Fay Bainter, Reginald Owen, Minor Watson, Dan Tobbin
Gênero: Comédia, Drama
Duração: 114 minutos.
https://www.youtube.com/watch?v=e25EgGHdNnQ
