em ,

Crítica | A Chegada

Obs: texto enorme. É um dos maiores do site. Análise contém spoilers significativos.

Há certos desafios na vida de qualquer jornalista que se aventure pelas bandas da crítica das artes. Decerto existe muito conteúdo mastigado e facilitado que até mesmo podem condicionar nosso pensamento para níveis mais empobrecidos. A baixa qualidade cinematográfica deste biênio quase que consegue nos vencer pelo cansaço.

Felizmente, tanto em 2015 e 2016 tivemos obras do cineasta mais promissor dessa década, o canadense Denis Villeneuve. E sempre, em todos seus filmes, é um enorme desafio escrever sobre as obras, pois exigem um conhecimento extra fílmico ferrenho para compreender suas diversas simbologias.

Mesmo tendo acompanhado sua carreira há alguns bons anos, só fui analisar uma parte de sua filmografia no ano passado com o texto de Sicario, um filme de roteiro razoável que foi salvo pela direção exímia de Villeneuve.

Agora sem Deakins como parceiro na fotografia, é chegada a hora de ver se Denis Villeneuve não é apenas uma breve sensação. Para quem ainda duvidava de sua competência exemplar, A Chegada extermina qualquer limiar de dúvida. Estamos presenciando mais um clássico contemporâneo para a renascença da ficção científica de qualidade.

Afirmo isso com a maior tranquilidade possível. Tendo a gratificante oportunidade de rever ao longa em uma pré-estreia, fui preparado para absorver muito mais do que havia visto na cabine. Um velho hábito retornou: levar meu caderno de anotações para a sessão, a fim de colher o máximo possível das excelentes imagens que havia visto na cabine, mas que corriam o risco de sumir entre diversos pensamentos corriqueiros.

Então aviso agora, o texto será longo, pois não gostaria de perder a oportunidade de destrinchar o excelente filme que A Chegada é. Encare esse texto mais como um enorme artigo do que uma crítica propriamente dita. Como um Tudo que nós pudemos decifrar de A Chegada, mas com pitacos inerentes a uma análise cinematográfica. Caso só queira a recomendação, tenha a plena segurança de encontrará uma daquelas pérolas cinematográficas que, com sorte, temos uma vez a cada ano de lançamentos.

Mas se está a fim de embarcar em um texto minucioso que tenta explicar efetivamente o porquê de A Chegada ser uma excelente obra, lhe convido para dividir essa experiência sensacional: falar sobre o melhor longa desse ano.

A História da sua vida

A Chegada, na verdade, é uma adaptação do conto Story of Your Life escrito em 1991 por Ted Chiang, um romancista consagrado de ficção científica. Quem fica a cargo de trabalhar na adaptação é Eric Heisserer, um ótimo roteirista para oferecer a liberdade criativa tão necessária à Denis Villeneuve para brincar com simbologias cada vez mais complexas. Aliás, digo que a adaptação de Heisserer é mais feliz em contar a história do que o próprio conto original. Muito do conteúdo é inédito, pinçando apenas alguns conceitos e conflitos da história de Ted Chiang.

Acompanhamos a história da linguista Louise Banks que é chamada de supetão pelo Coronel Weber para ajudar na comunicação com seres alienígenas que chegaram à Terra. Com a escalada crescente da neurose, caos e desconfiança da humanidade e entre as nações, Louise e seu colega cientista, Ian, precisam correr contra o tempo para conseguir encontrar métodos de comunicação escrita e verbal com os misteriosos visitantes e descobrir o verdadeiro propósito dessa assustadora visita.

Sempre digo que é dez vezes mais difícil elogiar um bom trabalho do que criticar de fato. O roteiro de Heisserer é justamente um desses casos brilhantes de alta complexidade. Há sempre duas vertentes dentro de qualquer história de ficção científica que envolva contato extraterrestre. Uma é a tradicionalíssima do pessimismo cósmico – filmes como Enigma do Horizonte, Enigma do Outro Mundo, Alien, Prometheus são exemplos claros de mensagens sobre como tudo pode dar errado quando há contato imediato com inteligências externas ao planeta.

A outra, da linha otimista, define filmes como E.T. O Extraterrestre, Contato e Contatos Imediatos de Terceiro Grau. Em A Chegada, as coisas tendem a ser mais complicadas, pois orbita muito no suspense se é uma grande história de aniquilação ou elevação – daí a grande eficiência do horror construído nas primeiras sequências por Villeneuve.

Todo a proposta do longa circunda a questão da índole dos alienígenas e essa é justamente a grande vantagem do texto de Heisserer: a pluralidade de opiniões. Isso é dividido através dos poucos núcleos da obra que podem ser categorizados em “comunicação, ciência e militarismo”. Os personagens se comportam de acordo com suas funções narrativas nunca transgredindo o espaço um do outro.

Mesmo que haja a escolha óbvia de favorecer o discurso da protagonista, representante máxima do diálogo e opositora ferrenha da resposta militar, sempre há outro lado para criar o tão necessário atrito para o drama mover-se. Então, assim como diversas outras obras, A Chegada aposta em dramas de escopo humano e em conflitos de escopo global.

Aliás, Heisserer é brilhante em capturar tão bem a essência geopolítica do conflito gerado pela invasão. Ele taxa atitudes muito plausíveis sobre certos países, mantendo os ocidentais e o Japão como os mais receptivos e abertos ao diálogo com as criaturas. A Chegada, surpreendentemente, rende uma ótima aula de geografia.

Isso é colocado com inteligência pela estrutura nada convencional do roteiro do longa. E como já foi avisado, o texto conterá muitos spoilers e eles começam já no próximo parágrafo.

A descrença de começos e finais

O começo do filme trabalha a partir do poder da síntese. Louise narra sobre sua percepção do tempo. Claramente trata-se de uma voz over com a personagem já situada em um espaço futuro às imagens apresentadas. Ali é fundamentado um conflito que nos leva acreditar ser sobre um backstory da personagem, seguindo a linha clássica e clichê do personagem que perdeu tudo e que só lhe resta o trabalho para seguir em frente, com aparente niilismo como companheiro.

É eficiente e compramos o drama da morte da filha de Louise. De fato, cremos que se trata da introdução do drama que provavelmente levará Louise a uma catarse ao fim do longa – como ocorre em diversos outros filmes. Dois exemplos claros de começo dramático para gerar catarse na resolução são Up e Guardiões da Galáxia, filmes populares para ilustrar a sua linha de raciocínio.

Heisserer cria essa cortina de fumaça por conta da inserção do conflito majoritário logo depois dessa introdução. Uma professora que vive isolada em sua rotina centrada que nem mesmo se altera depois da chegada dos alienígenas – como se vivesse em um período pós-traumático. Com a vinda do convite do exército para Louise liderar a equipe tradutora, a personagem deixa o isolamento pela primeira vez.

Chega a ser bastante engraçado notar como o roteiro é extremamente simples – assim como o de Sicario, mas melhor elaborado. Ao pegar uma premissa tão forte, obviamente que há a sedução completa do interesse do espectador.

Há sequências inteiras que dependem somente da competência de Villeneuve em transformá-las na tradução perfeita em termos de linguagem visual – exemplo: A equipe entra na nave dos alienígenas. Essa rubrica de ação é revertida em uma sequência de quase dez minutos silenciosos dentro do filme.

Também, por isso, é impressionante a pouca quantidade de diálogos para desenvolver os personagens, pois muitas das coisas são sintetizadas pela eficiência visual. Nisso que também há o mérito de Heisserer: ele não duvida da inteligência do espectador com exposição intensa. Somente uma vez que há uma explicação didática de Louise para o público compreender de sua escolha em se comunicar através da escrita em vez da fala.

Mesmo tirando Louise do isolamento de sua rotina, a personagem é jogada novamente para o isolamento do campo militar anexado às proximidades da nave. Heisserer e Villeneuve trabalham bem nesse conceito de isolamento em contraste da especialidade profissional de Louise se centrar na comunicação. Nos poucos diálogos que temos entre a protagonista e Ian, há alguma reflexão do paradoxo.

Depois de estabelecer os primeiros contatos e sessões com os alienígenas, Heisserer apresenta o conceito que define o longa: os “flashbacks” que na verdade se tratam de visões, de flashforwards. Eles são inseridos cirurgicamente na trama, aparecendo somente depois que Louise faz contato com os heptapods sem a roupa protetora de contaminação, removendo uma das barreiras que dificultam a comunicação. É uma subversão da consciência sobre a narrativa comum, linear, que todo o espectador carrega.

No modo que é apresentado, facilmente o espectador se confunde, acreditando que se tratam de flashbacks de Louise se recordando de momentos-chave no convívio com a filha que já fora apresentada na introdução do filme. Por isso, quando ocorre a virada brutal no terceiro ato, que é provocado o choque ao entendermos que Louise, na verdade prevê o futuro.

Isso pode parecer um conceito jogado para quem não viu a obra, mas na verdade se trata de uma construção muito apurada de narrativa.

A cada nova sessão ou momentos que a dupla continua o trabalho no QG, Heisserer insere as visões, já as utilizando para resolver algumas dificuldades de Louise com o trabalho da tradução. Em outro sonho, apresenta outra didática ao espectador de que diversos idiomas moldam o raciocínio silencioso e, portanto, Louise estaria se aproximando do raciocínio dos heptapodes conforme aprende mais sobre sua linguagem, ganhando outra percepção do tempo. Uma percepção não-linear.

Também importa citar que o sonho gera, propositalmente, interpretações falsas para induzir o espectador ao erro em crer em um possível desfecho previsível e clichê como colocar o testemunho de Louise em cheque inferindo insanidade ou de que a mulher fará alguma loucura por alguma espécie de domínio da mente exercido pelos alienígenas – assim como em Body Snatchers.

Heisserer torna o conto de Ted Chiang mais cinematográfico, encaixando clímaces e conflitos. Para favorecer o discurso constante sobre a dualidade da linguagem, seja como instrumento unificador representado pelo núcleo Louise, Ian e os heptapódes, ou como arma de destruição e incitação ao ódio. Portanto há sim um antagonista para ilustrar a dicotomia.

Este é representado pelo capitão Marks, um dos militares que acompanham os cientistas durante as sessões. As únicas cenas que abandonam o ponto de vista de Louise são destinadas para justificar a motivação de Marks em agredir os pacíficos alienígenas. São dois breves momentos. Acompanhamos uma ligação com sua mulher em prantos e aterrorizada com a chegada dos invasores e também da desordem social. A outra ocorre mostra Marks e um comparsa assistindo a um discurso de um jornalista independente que incita a violência contra os alienígenas.

Graças a animosidade causada pelo terrorismo de Marks em explodir a câmara dos encontros, o mundo entra em caos encerrando a rede de comunicações e colaboração para dividir o conhecimento adquirido nos encontros das onze naves restantes. Então,a China declara guerra. É justamente aí que entra o fator mais divisivo na análise desse roteiro.

Heisserer usa a “arma” dada pelos alienígenas, o vocabulário extraterrestre que oferece as premonições, para resolver o clímax do filme. Mas como a estrutura é muito bem definida anteriormente, não é adequado desqualificar taxando o recurso como um deus ex machina, afinal já é justificado na narrativa, seja com o encontro final catártico com o heptapod ou pelo uso das visões anteriores.

O que pode incomodar é o modo abrupto que a resolução é apresentada, como se os outros personagens que Louise interage nas visões já tivessem consciência de sua habilidade. Porém, não fosse essa conveniência, dificilmente a cena teria o mesmo impacto.

Uma fraqueza do texto é o personagem Ian, encarnado com competência por Jeremy Renner. Ian seria o lado racional da trama, explorando a ciência que as criaturas poderiam oferecer. No conto original, Ian é mais proativo nas sessões, tentando descobrir como funciona a ciência dos alienígenas, das leis matemáticas e sobre o planeta dos seres. Mas aqui, esse lado cientifico fica em total escanteio. Ao menos, é fácil sentir empatia pelo personagem por servir sempre como apoio de Louise, além dele ter um papel fundamental para definir o propósito dos aliens na Terra.

Aliás, Heisserer é totalmente original em desenvolver essa grande cadeia de ação e reação, oferecendo respostas concretas sobre o motivo das naves terem chegado ao planeta – algo inexistente no livro.

Nesses quesitos da escrita de Heisserer é possível analisar separadamente. Já o resto clama por uma interpretação maior das excelentes simbologias que Denis Villeneuve apresenta em seus enquadramentos, na sua direção nada menos que exemplar e histórica com A Chegada.

A consagração de um gênio

Se analisar o roteiro de Heisserer já é complicado, imagine discorrer sobre a direção de Villeneuve, um diretor já conhecido por suas profundas marcas autorais e de forte presença criativa na concepção visual das suas obras.  Na verdade, assim como em Sicario, o roteiro de Heisserer depende muito da competência de Villeneuve para funcionar de modo eficiente.

Então, a partir disso, o diretor trabalha com conceitos chave que guiarão toda a análise que faremos aqui: amor, destino, ignorância, sagrado, divino, elucidação, caos, ódio, isolamento, união, medo, dicotomia da comunicação, linguagem escrita, corporal, falada e, principalmente, cinematográfica.

O que espanta, especialmente quem já conhece Villeneuve de outros filmes, é uma grande reformulação de sua marca autoral. Na teoria e na concepção de um longa, sempre martelamos que o primeiro plano de seu filme tem de ser um dos mais importantes. Como se trata de Villeneuve, é correto afirmar isso, pois o principal discurso de transformação reside no plano de abertura.

Através de um travelling, o diretor captura o teto de uma sala enquanto, lentamente, inclina a câmera em direção a uma enorme janela cuja estrutura forma algumas molduras. Através dela, vemos um longínquo horizonte. Na narração, Louise afirma sua descrença sobre começos e finais – já a maior pista da não-linearidade do filme. Importante lembrar sobre esse enquadramento, tão importante que já deixo a imagem aqui, pois fará parte da principal simbologia do filme:

Depois, há a sequência sintetizando a vida da filha de Louise. É uma mudança extremamente abrupta para a fotografia e para o estilo de direção que ele está acostumado. Toda a sequência evoca as técnicas de Terrence Malick em A Árvore da Vida, mantendo cores levemente saturadas, com câmera bastante móvel e curta profundidade de campo.

Tudo isso confere o ar onírico, sagrado e pouco natural desse segmento. Aliás, na conclusão, antes de inserir um fade out, já temos outra metáfora visual que conversará com as discussões sobre tempo que guiarão o terceiro ato do filme. Na imagem, Louise caminha com passos trôpegos e desolados em um corredor circular, no sentido horário, passando por diversas portas que podem representar a marcação das horas.

A mesma introdução marca Louise em estado de libertação, fora da barreira representada pela janela. A filha liberta Louise. E a composição romântica de Max Richter, On The Nature of Daylight ajuda a demarcar isto, pois é uma peça paradoxal: bela e fúnebre ao mesmo tempo.

Eficiente na confusão mental sobre a natureza desse segmento, Villeneuve casa as cores monocromáticas, pálidas e cinzentas do luto para a chegada de Louise na faculdade e sua completa indiferença à agitação provocada pelos noticiários e dos alunos amontoados nos corredores. É uma excelente encenação para mostrar que a protagonista é, de certa forma, uma pessoa infeliz e isolada. Somente após diversas interrupções dos poucos alunos em sala de aula que ela finalmente descobre que o mundo está mudado para sempre.

Não levará muito tempo para o diretor começar a dar os acenos de respeito para alguns cineastas consagrados na ficção cientifica. O primeiro é para Spielberg com um breve plano sequência de Louise se dirigindo até seu carro.

Quando ela retorna à casa, novamente o plano de abertura do filme estampa a tela. Dessa vez, vemos Louise emoldurada nas divisórias que demarcam o centro da janela e do enquadramento. É possível tirar múltiplas interpretações para a função das molduras. A mais coerente é a demonstração gráfica de aprisionamento e isolamento da personagem que sempre observa o horizonte, mas nunca o transgrede.

O mesmo enquadramento da janela aparece pela última vez nesse ato no momento que o coronel Weber aterrissa o helicóptero militar nas proximidades da casa de Louise para levá-la até a concentração. Finalmente a ordem natural da rotina é quebrada. Vemos o helicóptero trespassar as molduras da janela indo em direção ao horizonte. É o começo da mudança completa que a protagonista sofrerá na jornada.

A Chegada

Assim que o helicóptero chega nas proximidades do acampamento, novamente Villeneuve faz um oner homenagem a la Spielberg. É um plano aéreo revela a concentração de curiosos que, além de ser separada dos invasores pela barreira militar, também é dividida por uma espessa névoa. Depois, temos o oner propriamente dito, mostrando para o espectador pela 1ª vez com clareza a nave invasora, a “concha”.

Novamente, ali, temos outro vislumbre sobre como Villeneuve é um cineasta completo, se equiparando com David Fincher, Christopher Nolan e Quentin Tarantino – os três que conseguem fazer a melhor união entre o cinema mainstream com a pureza artística. A encenação é brilhante.

Explico, a câmera paira justamente sobre um bendito vale que é parcialmente encoberto pela mesma névoa que desce das montanhas. A névoa que encobre o vale e parte da concha é branca e pura já servindo de foreshadowing da atmosfera esbranquiçada onde os heptapódes habitam. Conforme o Villeneuve movimenta o plano, circundando o acampamento, a névoa torna-se mais sombria e espessa. Ou seja, enquanto direcionada para a nave, infere uma atmosfera suspeita, mas que é tranquila, pacifica pela coloração branca. Quando estampa o terceiro plano do enquadramento do acampamento humano, é sombria, portanto, refletindo toda a ignorância, medo e propensão à violência da humanidade em um momento tão estressante.

A nave estar estacionada sobre um vale também não é mero acaso. Assim como muitas coisas, há um propósito bem definido, buscando evocar uma simbologia. O vale, simbolicamente, é o complemento das montanhas – que sobem em direção ao divino. Já o espaço côncavo/plano de um vale é um receptáculo natural para o vem do céu. Em uma correlação ainda mais simbólica, é onde a alma humana se encontra com o Divino para gerar revelações e catarses místicas, sagradas – segundo o Livro dos Símbolos. E é justamente isso que acontece no decorrer do filme.

Logo, todo o ambiente iluminado, ainda que ameaçador, do vale entra em contraste direto com a escuridão dos interiores das instalações militares. É um dos grandes usos metafóricos da excelente iluminação do diretor de fotografia Bradford Young que honra o cargo deixado pelo ilustre Roger Deakins.

A partir dali, após um breve estabelecimento do núcleo humano no acampamento que ao mesmo tempo representa o escopo global do conflito e também do drama intimista, Villeneuve se prepara para apresentar uma sequência aterradoramente simples, mas fantástica: o 1º contato dos protagonistas com a nave e com os alienígenas. Isso é dividido brilhantemente em duas partes: o ingresso à nave e a chegada dos heptapódes.

Quando o grupo se aproxima, descobrimos que a nave levita, nunca encostando ou danificando o solo. Para entrar nela, é preciso o uso de elevador. Novamente, outra simbologia poderosa. O divino, representado pelos alienígenas, não facilita o acesso para a humanidade, se comunicando como iguais. Ao contrário, a humanidade, representada obviamente pelo núcleo dos cientistas, precisa elevar, ascender, evoluir para entrar em contato com outra inteligência.

Novamente, nessa dilatação temporal, Villeneuve busca proclamar o sagrado ao enquadrar em plano detalhe o toque de Ian na casca externa da ‘concha’. É um plano que pede para ser comparado com A Criação de Adão, a obra máxima de Michelangelo na Capela Sistina. Mesmo que o plano seja para mostrar o deslumbramento entre um contato sagrado entre a ciência e a crença de Ian, há um flerte cínico do diretor quando o tato é interrompido no momento que a plataforma é alinhada com a abertura da nave. Ali, brevemente, o dedo divaga no vazio misterioso, sombrio, jogando o personagem para a cruel realidade.

Com os planos azimutais, o diretor novamente emoldura os personagens entre enquadramentos que mostram o conhecido e terrestre em contraste ao desconhecido, muito iluminado, extraterrestre.

Na suspensão da gravidade, a protagonista quebra a ordem natural pela 1ª vez. No que antes exigia a elevação, se transforma em um túnel com o fim iluminado – ordenamento sagrado novamente.

É justamente nessa excelente dicotomia do ser ou não ser que Villeneuve arregaça as mangas e mostra o verdadeiro poder catártico da trilha musical do sempre excelente Johann Jóhannsson. A música simplesmente reflete o estado de espirito e ebulição psicológica dos personagens. Repare, toda vez que o plano é centrado nos personagens, a música é mais calma, porém assim que o diretor insere o contraplano, exibindo o fim do túnel, Jóhannsson explode a trilha com tons assustadores, magnéticos e desagradáveis.

Enquanto estamos no porto seguro, no conhecido, refletido pelo Homem, a música se comporta. Já ao mirar o desconhecido e possivelmente perigoso, ocorre a excitação instrumental. Simples, eficiente e inteligente. Por isso que o roteiro do longa é uma peça de análise um tanto complexa, pois Villeneuve utiliza diversos recursos simbológicos para expressar os personagens sem recorrer ao uso de palavras, de exposição.

Importante lembrar que essa é a cena de maior espírito Kubrickiano que veremos no longa. Difícil não relacionar com o embate final entre Dave e HAL em 2001: Uma Odisseia no Espaço.

O Contato

Quando finalmente os personagens ingressam na câmara que ocorrem as reuniões com os extraterrestres, o diretor faz questão de esclarecer que ordenamento natural continua quebrado, afinal os personagens estão de ponta cabeça, usando o teto como piso. O próprio design da câmara evoca essa dimensionalidade confusa, pois qualquer canto da sala pode ser tomado como teto ou piso.

É justamente nessa cena que ocorre a grande metáfora do filme inteiro, sobre o amor ao cinema. Aqui é necessário o resgate, na memória do espectador, do primeiro enquadramento que Villeneuve apresenta: o centralizado, da janela e suas molduras. Coloque em contraste direto com a similaridade do enquadramento, também centralizado, do vidro que separa o lado onde ficam os humanos e o lado onde estão os heptapódes.

O lado de lá, é branco, emoldurado por um enorme retângulo de bordas arredondadas. No enquadramento, Villeneuve pega, por enquanto, parte das paredes negras do teto e do solo. Eis que, nessa comparação, o cineasta cria uma metalinguagem. O vidro preenchido pela fumaça branca vira um anteparo, assim como a tela do cinema, brincando com a razão de aspecto do filme, gravado em cinemascope e, portanto, contando com a presença do letterboxd para mostrar a imagem completa.

Ou seja, as bordas negras que emolduram a tela branca remetem diretamente às bordas da correção de aspecto da sala de cinema que você provavelmente assistirá ao filme. Nessa correlação, ele torna tanto os personagens em espectadores e vice-versa. Afinal, é o momento-chave do primeiro ato. É a chegada dos alienígenas, da revelação de sua biologia pela 1ª vez para todos nós, seja na diegese quanto no espaço extra fílmico.

Mas o que isso tem a ver com o enquadramento que abre o filme? Muito, como veremos conforme o longa progride. Durante as três primeiras sessões que acompanhamos Louise e Ian, Villeneuve evita diversificar sua decupagem e encenação. E assim como tudo em A Chegada, existe um propósito simbológico para tanto.

A encenação dos primeiros contatos é centrada no receio amedrontador. Os personagens, encapsulados e isolados pelos trajes, mal se movem e não se aproximam do vidro onde os alienígenas estão. Então, naturalmente, os enquadramentos são afastados, bastante abertos. O diretor apenas se rende aos closes e planos detalhe para valorizar a majestosa atuação de Amy Adams e de suas diversas expressões: primeiro de medo para seguir até a alegria reconfortante – onde vemos a personagem sorrir pela primeira vez no filme ao estabelecer uma forma de contato com as criaturas.

Ao contrário da janela da casa de Louise, onde o diretor a emoldurava separando-a do resto e do horizonte, o vidro da câmara não possui nenhuma estrutura que emoldure ou isole a personagem, muito embora ela esteja isolada do contato físico com as criaturas. Aos poucos, Villeneuve passa a enquadrá-la entre os heptapodes. A personagem, enfim, perde a grande amálgama do isolamento que emanam dos seus enquadramentos.

Isso ocorre a partir do terceiro contato. Nele, Louise já está mais à vontade com as criaturas, abandonando a escuridão que permeia o fundo da sala onde a equipe se concentra – como se julgassem a distância como porto seguro.

Ela caminha em direção a Abbott e Costello – os alienígenas, para justamente o lado que emana a luz. Nesse sentido, outra simbologia toca o filme. A escuridão demarca a ignorância e a iluminação branca é justamente o conhecimento, da elevação do estado de consciência que afetará Louise.

Uma apresentação apropriada

Villeneuve demarca somente no visual a decisão de Louise em retirar o traje, de remover uma condição limitadora de isolamento. Tudo é baseado no canário que é trazido nas sessões. Para que o espectador entenda o uso narrativo do pássaro, o diretor exige certo conhecimento histórico. Em épocas de revolução industrial e das escavações nas minas de carvão, canários eram utilizados para sinalizar qualquer gás tóxico não identificado pelo olfato humano. Por conta dos pequenos pulmões, morriam mais rapidamente, avisando a todos mineiros de um vazamento de gás venenoso.

No filme, a função é a mesma. Louise, antes de remover o traje, observa o mesmo canário que acompanhou todas as visitas. Percebe que ele está perfeitamente normal e toma a decisão libertadora.

Livre do medo a das amarras do traje que também restringiam sua visão, Louise caminha até encostar no vidro. O heptapóde faz o mesmo estabelecendo o contato mais pessoal até agora. Nisso, Villeneuve finalmente abandona o jogo centralizado que mantinha na decupagem das cenas do encontro. Mimetizando diretamente outro plano apresentado no começo do filme, da janela da casa, constrói um plano lateral exibindo o “aperto de mãos”. É um passo cinematográfico importante para estabelecer a relação de proximidade da protagonista que finalmente tem vontade de estar do lado de lá, tentando atingir o horizonte que antes era limitado pelas molduras de sua janela.

 A partir desse encontro que Villeneuve e Heisserer começam a jogar as visões na tela. A primeira delas acontece logo depois desse encontro próximo e “humano”. No devaneio, só é possível observar a nuca da criança que virá a ser a filha de Louise observando uma criatura negra e distorcida – que lembra a anatomia dos aliens, na profundidade de campo totalmente desfocada.

Além dos encaixes das visões sempre serem bem estabelecidos no roteiro, Villeneuve faz questão de elaborar mudanças visuais para cada uma das diversas que permearão a obra até sua conclusão. A primeira é a mais confusa. A segunda já é menos, mostrando a menina mais nitidamente embora os planos recortem partes da cena enfatizando as brincadeiras da garota com instrumentos que remetem também à biologia do aliens, seja na cor ou nos membros.

Na terceira visão, ocorre o primeiro diálogo. E assim por diante até que Louise entenda que as visões estão diretamente ligadas com a evolução das traduções da linguagem alienígena.

Quando Villeneuve destina sua decupagem para criar tensão, nós sabemos que teremos um verdadeiro aprendizado em linguagem. Quem não se recorda das tensas torturas de Hugh Jackman contra Paul Dano? Ou da excelente sequência em Juarez de Sicario? Aqui ocorre em dois grandes momentos.

O primeiro é baseado no contraste das ações de Louise e de Marks – consciência vs. Ignorância. O que torna a cena da explosão tão especial é justamente a contraposição das ideias, além de afirmar a perfeita sintonia entre o heptapóde e Louise, já que ambos escrevem juntos, no idioma alienígena, pela 1ª vez.

Villeneuve enquadra com inteligência inserindo Louise justamente entre Abbott e Costello enquanto permanece no meio da imagem do ideograma. Na mesma cena temos a união que a missão tanto procurava, mas que ao mesmo tempo causa a profunda ruptura. Aliás, somente com o trabalho em áudio, o diretor traça o destino estúpido de Marks. Motivado a salvar sua família, o soldado acaba morto no tiroteio e esquecido na narrativa.

A partir da destruição de parte da concha, do súbito isolamento na comunicação entre os países agora dominados pelo medo, da iminência da guerra provocada pela ignorância e falta de visão, Villeneuve arquiteta a maior simbologia do filme, ainda remetendo à primeira imagem da janela na sala.

Quando Louise atende o chamado de sua visão e parte para a cápsula da nave, o diretor encaminha bons enquadramentos no momento de sua chegada. Dois planos close do rosto de Amy Adams mostram a cápsula se abrindo simbolizando, enfim, uma mente “aberta”, sem limites.

É justamente nessa cena que Louise finalmente passa a ver o “todo” e não somente uma parte dele como era condicionado por: as molduras de sua janela e, posteriormente, pelas bordas que limitavam o lado de lá, nunca mostrando as verdadeiras formas dos heptapódes. Com o todo, Louise atinge o horizonte, ela finalmente está diante das molduras, não mais atrás delas ou dentro de outros enquadramentos limitadores. Está totalmente imersa no grau de consciência representado pela cor branca que preenche todo o enquadramento entrando em contraste direto com o alienígena.

Nisso, temos a revelação de todo o corpo gigantesco de Abbott e ali, Louise começa a compreender o “todo”, conseguindo enxergar o tempo de modo não-linear. Nas visões subsequentes, ela ganha o domínio de sua consciência no futuro, podendo alterar uma realidade presente.

Na conclusão de seu trabalho, Villeneuve ainda emplaca uma simbologia mais clichê, com uma única tela de notícias dando origem à diversas outras para sugerir a consolidação de que o mundo estava unido de novo. Porém o mais belo é terminar o filme com a exata mesma sequência e trilha musical de seu início configurando o tal do palíndromo, em licença poética, que fora referenciado quando a filha de Louise pergunta por que recebeu o nome Hannah.

Como já vastamente discutido nesses trechos dedicados à direção de Denis Villeneuve, é impossível não afirmar o grau de excelência que o diretor alcançou neste trabalho. Ainda há diversos outros detalhes menores como a concepção do vocabulário alienígena, da concepção visual das criaturas, dos diversos contrastes criados pela montagem e até mesmo dos figurinos que referenciam outras obras clássicas de ficção cientifica. Porém, caso eu fique explorando tudo isso, o texto, já imenso, não terá fim.

Na guerra não há vencedores. Apenas viúvas.

Com A Chegada, o Cinema ganha mais uma valiosa adição para o gênero de ficção científica. Seu discurso constante sobre libertação e linguagem é tão valioso que transcende até mesmo sua forma ao conseguir expandir a sala de cinema como uma figura de comunicação ativa na obra. É um tipo de experiência única que merece sua atenção enquanto está em cartaz, pois Villeneuve torna essa obra excelente na sua assinatura máxima como cineasta completo.

Um filme que salva um ano tão fraco como de 2016 no quesito de lançamentos comerciais oferecidos por Hollywood. De longe, A Chegada é o filme de melhor qualidade que o cinema norte-americano conseguiu nos oferecer nesse ano, chegando como fortíssimo concorrente para a disputa do Oscar.

Assistir A Chegada produz exatamente o mesmo efeito que Louise Banks experimenta em seus contatos imediatos com os alienígenas. Há, com certeza, um efeito de elevação de consciência devido às exigências do longa em nos fazer decifrar tantas simbologias inteligentes ordenadas pela encenação. É pureza e beleza cinematográfica como há tempos não se via.

Avatar

Publicado por Matheus Fragata

Editor-geral do Bastidores, formado em Cinema seguindo o sonho de me tornar Diretor de Fotografia. Sou apaixonado por filmes desde que nasci, além de ser fã inveterado do cinema silencioso e do grande mestre Hitchcock. Acredito no cinema contemporâneo, tenho fé em remakes e reboots, aposto em David Fincher e me divirto com as bobagens hollywoodianas.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Crítica | O Quarto dos Esquecidos – Um suspense fraco

Crítica | De Palma