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Crítica | A Cura

De tempos em tempos, certos filmes bizarros brotam nas telas dos cinemas. Obras estranhas que exigem um esforço além do convencional para envolver o espectador e agraciá-lo com uma ótima história. É fácil afirmar que A Cura será um dos filmes que mais dividirá opinião do público neste ano. Aqui, na minha opinião, A Cura simplesmente é a obra-prima da carreira repleta de altos e baixos de Gore Verbinski.

Lockhart, um executivo que avança avidamente em seu ofício em Wall Street, é enviado pela diretoria da empresa que trabalha para um sanatório de repouso para idosos milionários localizado em alguma cidade remota dos alpes suíços. O jovem viaja para tão longe na tentativa de convencer um membro da diretoria, sr. Pembroke, em retornar ao escritório em Nova Iorque para assinar o contrato de fusão do escritório.

Porém, ao chegar lá, contrariando suas expectativas em apressar a saída de Pembroke do estranho lugar, Lockhart sofre um acidente e acaba virando um “paciente”. Em sua estadia, descobre que, entre as muitas rotinas de hidroterapia, há muitos segredos perversos por trás das aparências inocentes dos enfermeiros e médicos do misterioso lugar.

A Cura para a Ignorância

A Cura vem do argumento original de Gore Verbinski com Justin Haythe, que também trata o roteiro. O que é preciso levar em consideração logo que embarcar na história é que não se trata de uma narrativa de terror, mas sim de um bom suspense psicológico que bebe das fontes de clássicos romances góticos do século XIX.

Verbinski e Haythe constroem uma história de mistério que possui magnetismo exemplar. A própria estrutura narrativa é bastante similar de Ilha do Medo, ótimo filme de Martin Scorsese. Porém, isso não é demérito. A Cura tem bastante identidade por si próprio como veremos a seguir.

A maior proeza do roteiro é a honestidade para com o espectador. Enquanto Lockhart tem suas sessões de andanças pelo sanatório, atravessando as camadas de uma cebola linda, mas podre por dentro, temos sugestões de elementos bizarros, de cunho possivelmente sobrenatural, fugindo do discurso realista e cético que acompanhamos pelo ponto de vista de Lockhart.

O discurso sobrenatural, de uma mitologia sombria e amaldiçoada sobre o passado do castelo onde o sanatório funciona, é transmitido assim que o protagonista se dirige para o lugar. Uma história de assassinato e obsessão por pureza de linhagem aristocrática através do incesto que causou a rebeldia da comunidade cristã do lugar que, por sua vez, atacou o castelo o incendiando até suas próprias fundações. Logo, esses ares de “fantasia” permeiam a história inteira por oscilações, como um metrônomo.

Obrigatoriamente, o mistério precisa te prender até o filme se resolver no final e seguir ao clímax. Então, até lá, acompanhamos a investigação de Lockhart. Porém, Haythe usa de um artificio clichê para provocar conflitos internos com o personagem. Todo o elemento sobrenatural ou maligno que sugerem uma real natureza do sanatório, é posto em dúvida por outros personagens ou através de choques de realidade sofridos pelo próprio Lockhart. Com um ponto de vista pouco confiável, o mistério atiça a curiosidade.

Então, com essa narrativa que avança através de linhas côncavas e que parecem redundantes e repetitivas, é provável que o espectador se canse, pois fica a impressão de que as revelações pontuais que surgem a cada nova cena não valham todo o esforço das longas sequências – isso é bem subjetivo: eu achei o filme bastante fluído, mas é possível que ache uma chatice, pois as nuances de ritmo são perceptíveis, principalmente no final.

Acredito que a maior graça seja a sustentação da narrativa em um arquétipo conceituado na literatura e em diversos filmes há muito tempo: a jornada forçada para um ambiente inóspito disfarçado de inocente e puro. Verbenski e Haythe, como disse, bebem muito das influências de romances góticos como Drácula, Frankenstein, O Retrato de Dorian Gray, O Médico e o Monstro e alguns contos de Allan Poe para construir a mitologia “mística e amaldiçoada” que ronda o sanatório e da própria natureza do mistério. Revelar como as obras se encaixam na narrativa, seria um pecado.

Ainda sobre a natureza da jornada, diversas outras referências e similaridades surgem com outras obras consagradas do cinema como Um Estranho no Ninho, O Homem de Palha, Nosferatu (Herzog) e, principalmente, Suspiria, o clássico de Dario Argento. São narrativas similares que, quando compiladas, resultam na maioria das cenas de A Cura. Então o filme é um festival de clichês? Sim e não. Os clichês da estrutura narrativa já experimentada por outros filmes não  é revolucionada aqui. Nem mesmo é a proposta de Verbinski que parecer querer homenagear tantos clássicos. O mistério é original e envolvente o bastante para suprimir os clichês utilizados para sustentar seu desenvolvimento através de muitas características peculiares e sádicas.

Creio que, na verdade, toda essa abordagem de homenagear os clássicos do terror é a maior força do longa. Como dito, ele não se limita apenas nos góticos como O Castelo de Otranto, nem mesmo com filmes de jornada para o conhecido desconhecido, mas também aborda terror “lovecraftiano” de Nas Montanhas da Loucura e até mesmo romances muito mais filosóficos de Thomas Mann como A Montanha Mágica.

Nesse caso, esses dois elementos ajudam a moldar o trato dos personagens. Tomemos Lockhart, o protagonista que é plenamente desenvolvido. O jovem empresário é ambicioso, disposto a fazer todo o possível para atingir seu objetivo ao ponto de prejudicar a vida e liberdade dos outros. Quando o arrogante Lockhart perde suas posições privilegiadas para entrar em uma descida à loucura que provoca catarses de sua fragilidade emocional, é possível delinear diversas comparações de desenvolvimento com os outros dois personagens importantes da trama.

Já ressalto que a linha de desenvolvimento da trindade protagonista conversa bastante. A evolução de Lockhart geralmente corresponde inversamente com a de Hannah, a única paciente jovem da casa de repouso. Já com Dr. Volmer, o diretor responsável, percebemos similaridades assustadoras entre os dois nos momentos finais do longa – embora Lockhart já tenha sofrido certa transformação nesse ponto.

Paraíso Idílico

É difícil falar de A Cura sem soltar qualquer spoiler, pois muitas de suas qualidades se devem às passagens interessantes das investigações intensas de Lockhart. Entretanto, não é somente de roteiro que A Cura consegue provar seu valor. Conforme dito no primeiro parágrafo do texto, esse filme é a obra-prima de Gore Verbinski até agora.

Algo que é inegável – até mesmo para o mais profundo hater, é a beleza visual de A Cura. É um manjar para os olhos que raras vezes aparecem nos cinemas, pois todo enquadramento é meticulosamente pensado por Verbinski. As cores dessaturadas obedecem sempre a paleta da trindade prata, azul e branco acompanhada de um filtro esverdeado nauseabundo estabelecido pelo maravilhoso design de produção. Os momentos mais coloridos e diversos só surgem perto do fim. De resto, é uma experiência sempre tensa e depressiva.

Embora sua encenação em termos de movimentos de câmera deixe a desejar, o trabalho diversificado da decupagem preocupada em mostrar pontos de vista peculiares supera facilmente essa ausência.

Também é possível interpretar esse estilo de filmagem com ênfase na montagem para explorar espacialmente como uma metáfora da dificuldade de locomoção do personagem. Praticamente, no filme inteiro, Lockhart está aprisionado figurativamente ou literalmente e com mobilidade reduzida por conta de um gesso instalado em sua perna.

Um dos principais focos narrativos que Verbinski martela incessantemente é a água. Obviamente, há uma bela simbologia que agrega ao discurso de promiscuidade contemporânea vs. clássica. A razão pela hidroterapia, além de ser peculiar e garantir espaços maravilhosos criados pelo design de produção, favorece uma busca por um ideal, uma cura. Almas velhas, mórbidas e cruéis que buscam redenção através de sessões intensas de uma limpeza que nunca lavará seus espíritos.

Verbinski apresenta muitos momentos valiosos aqui até mesmo recorrendo em criar diversos labirintos entre aposentos e corredores do sanatório. Uma das marcas mais presentes é o uso espetacular da montagem paralelo que consegue criar metáforas visuais estupendas. Outras vezes, insere algum plano detalhe de um objeto de cena com uma pequena ação para refletir um sentimento de Lockhart. Isso acontece já na primeira reunião com a diretoria quando o protagonista é confrontado para buscar Pembroke – uma gota gelada percorre no suor da jarra d’água gelada detonando certo frio na espinha de Lockhart em pensar nas consequências caso falhar em sua missão.

Não somente em questões de montagem paralela, mas também com alguns espelhamentos bem elaborados, além de outros momentos inspirados de foreshadowing em algumas cenas diferentes. Tudo trazido através do poder da imagem sem a necessidade de recorrer a exposição barata. Aliás, essa é uma característica que pode ser uma faca de dois gumes.

Verbinski realmente aposta no poder de suas imagens para contar ou explicar partes do mistério. Somente há um curto diálogo expositivo para explicar a tal “cura”. Logo, certas dúvidas que surgem ao redor do mistério do sanatório nunca são respondidas o que acho adequado para tornar aquele ambiente ainda mais surreal de onirismo de pesadelos. O que realmente é importante para a história está na tela e é suficiente – lembrem-se dos romances góticos, sempre.

Acredito que a maior graça no trabalho de Verbinski seja na mão firme que tem para conduzir a narrativa sempre de modo dúbio, mantendo um suspense kubrickiano – O Iluminado e Laranja Mecânica são inspirações diretas. Verbinski realmente consegue nos fazer entrar em dúvida sobre os fatos apresentados a todo o momento. Importante lembrar que A Cura basicamente veio de toda a inspiração que Verbinski teve para o filme abortado do game Bioshock, portanto, há também um forte clima de um game survival horror quando o protagonista perambula pelo sanatório.

Mas então onde que o diretor se excede? Exatamente em excessos. Não quero ser arrogante ao apontar que o filme “dura/se alonga demais” porque isso é um dos argumentos mais pífios para atacar uma obra. Entretanto, mesmo que eu tenha apreciado o filme em totalidade, há certos momentos que exclamam um déficit de ritmo que incomoda. Essa impressão é reforçada pela certa estrutura do roteiro que inventa diversos clímaces na segunda metade da obra. Outro excesso é o uso recorrente da melodia fantasmagórica de Hannah que pontua muitas cenas, muitas mesmo.

A Cura para o Bem-Estar

Infelizmente, A Cura deve agradar a pouca gente. A sensação das referências pode dar a impressão de que o projeto é apenas um coquetel de clássicos misturados que resultaram em um novo sabor, mas não é. Quem já é fã das obras citadas, certamente terá uma experiência muito melhor de quem não tem bagagem prévia. Ainda assim, isso certamente pode funcionar como perfumaria.

A história por si tem grande magnetismo, boas atuações e personagens interessantes. Além disso, é a oportunidade em ver Gore Verbinski em sua melhor forma criando um filme que deveria ser lembrado pelo seu visual exuberante repleto de simbologias. Apenas sua narrativa pode ter um formato antiquado que cause estranhamento – principalmente quando suas verdadeiras cores são reveladas.

A Cura receberá o ingrato destino de muitas obras visionárias: condenadas ao rodapé da História até receber seu devido valor em algumas décadas. Assim como o mistério que ronda o estranho sanatório sem nome, há muito mais em A Cura do que os olhos podem ver.

A Cura (A Cure for Wellness, EUA, Alemanha – 2017)

Direção:
Gore Verbinski

Roteiro: Gore Verbinski, Justin Haythe
Elenco: Dane DeHann, Jason Isaacs, Mia Goth, Ivo Nandi, Adrian Schiller, Celia Imre
Gênero: Suspense, Thriller Psicológico, Horror Gótico
Duração: 146 minutos.

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Publicado por Matheus Fragata

Editor-geral do Bastidores, formado em Cinema seguindo o sonho de me tornar Diretor de Fotografia. Sou apaixonado por filmes desde que nasci, além de ser fã inveterado do cinema silencioso e do grande mestre Hitchcock. Acredito no cinema contemporâneo, tenho fé em remakes e reboots, aposto em David Fincher e me divirto com as bobagens hollywoodianas.

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