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Crítica | A Luz Entre Oceanos

Uma história de romance costuma ser previsível. Dois indivíduos completamente diferentes entre si que acabam se conhecendo e, depois de certo tempo, tornam-se perdidamente apaixonados um pelo outro. Claro, obstáculos se colocam entre eles, impedindo que o “felizes para sempre” venha com facilidade, mas o final é bem conhecido: tudo dá certo. Essa é, de forma resumida, a base na qual se finca A Luz Entre Oceanos, filme de Derek Cianfrance, baseado no livro homônimo de M.L. Stedman. Claro que a linha narrativa não se restringiria a territórios tão bem explorados por obras escritas, cinematográficas e televisivas: algumas viradas impressionantes aguardam o público dentro de seus aproximados 120 minutos. Mas quando a tempestade de reviravoltas passa, vem a calmaria – e não digo isso de forma positiva, infelizmente.

Michael Fassbender é um dos protagonistas no filme. Aqui, ele encarna o inexpressivo e amargurado Tom Sherbourne, um veterano de guerra que se torna totalmente mergulhado em emoções destrutivas após perceber a capacidade bélica e derradeira do ser humano. Sabemos que aqueles que conseguem retornar da guerra – principalmente uma tão horrenda quanto a I Guerra Mundial – não voltam como eram. Distúrbios, traumas, sequelas e outros começam a permear suas próprias personalidades, e o ator consegue encarnar todos estes problemas sem cair na tentação do melodramático. Sherbourne viaja até a longínqua cidade de Janus Rock, localizada na Austrália, onde deseja recomeçar sua vida. Para tanto, precisa se afastar daquilo que considera o mal primordial: o próprio homem. Ele aceita o emprego de faroleiro e irá trabalhar na ilha homônima, localizada em alto-mar, na qual receberá visitas a cada três semanas e não terá contato com mais ninguém além de suas memórias e de seus escritos.

Mas antes que possa ser definitivamente efetivado, Sherbourne é convidado por uma família local para almoçar e, chegando lá, com seu rosto nos dizendo que está em constante dor e que tenta ao máximo reprimi-la, ele encontra a sedutora Isabel Greysmark (Alicia Vikander), seu completo oposto. Enquanto Tom é um cara mais reservado e é bombardeado constantemente com lembranças da recém-finalizada guerra, Isabel parece ter vivido à parte disso. Quer dizer, ela tem consciência do que ocorreu mundo afora, mas seu jeito de ser nos parece imutável: ela é crua, carnal, quase primitiva, além de trazer uma doce altivez à cena que contrasta com seu companheiro de cena.

A química entre Vikander e Fassbender é imediata. É quase possível enxergar as fagulhas de um futuro romance incendiando uma belíssima cena de jantar no qual eles trocam olhares silenciosos. Palavras não são necessárias, e talvez esta escolha do elenco seja o ponto mais alto do filme. A narrativa pode até ser clichê, mas vale a pena assistir ao filme pela simples presença comovente e cativante de ambos os protagonistas.

Obviamente o amor não ocorre à primeira vista. A Luz Entre Oceanos, apesar das saídas formulaicas de narrativas do gênero, não é um conto de fadas. Entendemos a fascinação de Isabel por Tom, a qual é a pura simbologia da atração dos opostos. Mas ainda sim, este não deseja se abrir para outra pessoa por medo – e talvez por uma leve repulsa que provém de suas experiências no campo de batalha. Como já dito, a diferença entre os dois é notável: enquanto um traz uma certa escuridão e uma neutralidade para as sequência, o outro brilha em sua vivacidade quase estoica, com tons mais vibrantes e que algumas vezes soam artificiais – não desmerecendo o incrível trabalho de direção de arte de Karen Murphy, que resgata uma época quase anacrônica.

Em dado momento da narrativa, o casal acaba firmando o relacionamento e ambos contraem matrimônio. Tom leva Isabel para morar consigo na ilha, onde ambos viverão numa confortável casa com vista para a imensidão quase assustadora de um oceano. Não há mais ninguém lá e, durante grande parte do segundo ato, os dois vivem em uma felicidade utópica. Até que decidem aumentar a família e encontrar um modo de preencher um vazio incomodante que se alastra pelos quatro cantos daquele território. E é aí que os obstáculos finalmente chovem sobre os dois.

Acontece que Isabel tem dois abortos espontâneos dentro de duas tentativas de ter um filho. A primeira cena é construída de forma magnífica, com ela avançando tortuosamente por entre uma tempestade, caminhando e sendo castigada pela chuva e pelo vento, tentando alcançar o local de trabalho de seu marido. Ele não a ouve, e ela não pode fazer mais nada além de se deitar às portas do farol e esperar que Tom a encontre. Cada segundo transborda pura aflição e angústia, e não sabemos o que acontecerá. Nem mesmo a trilha composta por Alexandre Desplat consegue nos auxiliar neste trabalho, com um épico arquitetado com violinos e violoncelos em uma composição tonal nos arrastando para dentro do mesmo caos dos personagens. A segunda vez em que isso acontece, Isabel está confiante de que tudo dará certo: e num piscar de olhos, ela vê o seu vestido manchado de sangue e logo depois deitada numa relva desbotada olhando para o túmulo de seu filho não nascido.

Até aqui, a narrativa se desenrola de forma dinâmica e atraente. Temos uma linha narrativa, dois personagens muito diferentes marcando uma presença inefável numa imensa ilha. A opção por planos mais fechados para retratar a perda de esperança do casal principal entra em contraste com construções imagéticas mais abertas a fim de mostrar a majestosidade do cenário. Adam Arkapaw faz um trabalho invejável ao dançar com a câmera, navegando pela fumaça dos navios ou pelas ondas da praia, transpondo barreiras para acompanhar movimentos enérgicos e quase irracionais.

E então, como se não bastasse, a própria ilha recebe uma visita inesperada: uma canoa encalha nas praias brancas, com um corpo de um marinheiro jazendo lá dentro e um pequeno bebê chorando de fome em busca de alguma esperança. O casal encontra os dois, enterrando o cadáver numa parte inóspita de Janus Rock, com o devido “funeral”, por assim dizer. E já é de se esperar o que acontece depois: Tom, permanecendo fiel a suas responsabilidades, deveria reportar as autoridades o ocorrido, mas em vez disso adota a criança – uma linda menina loura -, tornando realidade o sonho de sua mulher. A partir daqui, a composição das cenas é quase angelical: tudo vai de acordo com as regras das histórias de romance, e observamos o crescimento do bebê em cortes ritmados – cujas mesclas entre tons verdejantes e dourados contribuem para o tom pacífico do final do segundo ato.

A Luz Entre Oceanos poderia ter acabado desse jeito? É claro. Os obstáculos já haviam sido apresentados, apesar de poucos, e os personagens já alcançaram a tão desejada paz. Entretanto – e isso é um problema do próprio romance -, a narrativa resolve explorar as consequências de decisões imorais e antiéticas, adentrando um território antropológico e quase filosófico da irracionalidade humana. Tudo bem, estes conceitos emergem com os protagonistas, incluindo a dualidade entre o primitivo e o progressista, o traumático e o sã. Mas esta nova subtrama teria que ser muito bem pensada para funcionar com o tom novelesco do filme – e não é isso o que acontece.

O próximo obstáculo a ser enfrentado vem personificado por Hannah (Rachel Weisz, em talvez uma de suas atuações mais verdadeiras e mais contidas), uma mulher em completo desespero que perdeu a filha e o marido para os perigos do mar, peregrinando todas as manhãs de sua casa no centro comercial de Janus até o cemitério onde duas lápides simbólicas marcam a perda dos seus entes queridos. E é aí que o choque entre o que é certo e o que é justo mais uma vez pincela a narrativa principal: Tom acaba cedendo a seu lado moralista e envia cartas para esta mulher, dizendo que a criança está a salvo – um ato nobre, diga-se de passagem, mas que desperta uma fúria sem precedentes em Isabel. Querendo ou não, Lucy (Florence Clery) foi criada pelo casal, apesar de ser filha biológica de Hannah.

O longa, em determinado momento, não sabe mais por que caminho seguir. Nem mesmo a química entre o elenco consegue ofuscar a saturação exacerbada do roteiro, que mistura tantos gêneros fílmicos a ponto de se transformar numa mixórdia mal-resolvida. A quebra do voto de fidelidade entre Tom e Isabel se funde com o passado conturbado e com a falta de expectativas para o futuro de Hannah. Tudo isso corrobora a profusa saída que o roteiro encontra para finalizar – mais de uma vez – uma história cansativa. Temos três pontas distintas de um mesmo triângulo que lutam pelos holofotes e acabam destoando de maneira trágica.

A Luz Entre Oceanos funciona em partes. Até o final de seu segundo ato, a maestria com a qual Cianfrance conduz as lamentações e as aspirações dos personagens é admirável. Mas a narrativa deixa a desejar quando o maior dos antagonistas – a consciência – aparece em cena e acaba sujando de forma espalhafatosa um verdadeiro romance psicológico.

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Publicado por Thiago Nolla

Thiago Nolla faz um pouco de tudo: é ator, escritor, dançarino e faz audiovisual por ter uma paixão indescritível pela arte. É um inveterado fã de contos de fadas e histórias de suspense e tem como maiores inspirações a estética expressionista de Fritz Lang e a narrativa dinâmica de Aaron Sorkin. Um de seus maiores sonhos é interpretar o Gênio da Lâmpada de Aladdin no musical da Broadway.

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