É interessante observar o nascimento de um fenômeno. Um ícone. São eventos raros e que aparecem de vez em quando no cinema blockbuster americano, onde temos a improvável mistura de conceitos elaborados e bem segmentados com o espetáculo de ação que Hollywood é tão caprichada em oferecer. Provavelmente, o primeiro Matrix seja um dos exemplos mais expressivos desse tipo de cinema, oferecendo em 1999 uma revolução em seus efeitos visuais e técnicas de câmera (a popularização máxima do bullet time) com uma história cheia de referências e influências de filosofia e literatura. A perfeita combinação de cinema para a grande massa com entretenimento pipoca e grandioso.
Em meio a essa revolução, o cineasta Christopher Nolan fazia sua transição de um cinema mais introspectivo e independente para as produções de grande escalão, com a Warner Bros tornando-se sua casa após a bem-sucedida adaptação americana de Insônia e Batman Begins – outro filme que merece seu lugar como um dos mais importantes blockbusters dos últimos tempos. Com a recepção extremamente positiva de sua abordagem ao Cavaleiro das Trevas, o estúdio conferiu uma daquelas raras oportunidades para a carreira de um diretor: um roteiro original, sem ser adaptado de qualquer propriedade ou filme, com um orçamento gigantesco e uma abordagem, ainda que com ressalvas, autoral.
Dessa forma, nascia o sucessor digno do fenômeno Matrix: A Origem, o blockbuster mais original do século XXI.
A trama nos apresenta a um mundo onde é impossível extrair informações da mente humana através dos sonhos, dando origem a um ramo de negócios oculto onde ladrões trabalham com espionagem industrial para roubar planos e ideias da mente de seus concorrentes. Nesse cenário, Cobb (Leonardo DiCaprio) é um habilidoso extrator assombrado pela memória de sua falecida esposa (Marion Cotillard), e que tem a oportunidade de se redimir à família quando o misterioso magnata Saito (Ken Watanabe) lhe propõe o inverso de seu serviço: implantar uma ideia, ao invés de roubar uma, no caso, persuadir o jovem Robert Fischer (Cillian Murphy) a dissolver a poderosa empresa de seu pai, grande rival de Saito.
O Parasita Mais Resiliente
Como qualquer filme que constrói um universo, A Origem não pode fugir da pesada exposição que seu roteiro traz. São conceitos complexos e elaborados que o filme toma boa parte do filme para explicar e ilustrar, e o único problema mais grave da produção é a forma pouco sutil que o texto encontra para oferecer informações – diálogos expositivos sempre foram o ponto mais fraco da carreira de Nolan, isso é inegável, basta observar o momento em que o personagem de Joseph Gordon-Levitt está no meio de uma acalorada discussão, e acaba tendo que explicar o conceito de Limbo enquanto grita, algo que não soa nada natural e que gera um conflito de intenções.
Porém, a estrutura bem definida do longa é um dos fatores que ajudam a tornar essa gigantesca “aula” sobre esse mundo de subconsciente algo suportável, e que evite didatismo puro. Apostando fundo na variante do heist movie, Nolan usa esse elemento para transformar a inception de Robert Fischer em um golpe, no melhor estilo Onze Homens e um Segredo. Dessa forma, obviamente temos o personagem novato que age como avatar do espectador para conseguir informações e aprender sobre as regras, aqui tendo a arquiteta Ariadne (Ellen Page) como representante dessa função, ainda que a personagem cresça muito mais do que isso com a progressão da trama – seu nome é o mesmo daquela que ajudou Perseu a escapar do Labirinto do Minotauro, na mitologia grega, e daqui instantes veremos como isso se tornará relevante para sua relação com Cobb.
Voltando à estrutura do heist film, a primeira hora de A Origem é toda dedicada a nos explicar e ilustrar os conceitos daquele universo, assim como apresentar os personagens principais, suas habilidades e dramas pessoais. Partindo dessa variante, Nolan felizmente torna o jogo mais dinâmico ao apostar em montagem paralela, uma trilha de Hans Zimmer sempre presente e interações diversas entre o grupo, oferecendo todos os conceitos que se tornarão importantes na metade final da projeção. A primeira aula de Ariadne é um exemplo majestoso disso, e já aprendemos bastante sobre a jovem quando, ao realizar um teste de raciocínio com Cobb, troca as páginas quadriculadas de um caderno pela contracapa lisa, desenhando ali um labirinto desafiador o bastante para seu “professor”, sendo também um clássico exemplo do “pensar fora da caixinha”, literalmente.
A montagem de Lee Smith é tão sutil nesse momento, que acompanhamos o diálogo dos dois na universidade de Paris, ao mesmo tempo em que os cortes nos mostram Arthur preparando cadeiras e o equipamento de sonho compartilhado em um galpão. Sem ao menos percebermos, Cobb revela a Ariadne que os dois estão sonhando, abordando de um fenômeno real para justificar a confusão da jovem, clamando que “é impossível se lembrar do início de um sonho, você sempre se dá conta no meio dele”, além da cena resultar na espetacular explosão do café parisiense, ilustrando o desequilíbrio do sonho quando o sonhador tem ciência de seu estado; algo que rende algumas das melhores set pieces da produção.
E por mais que tenhamos toda a explicação verbal mais direta ao espectador, é de se admirar o fato de que Nolan coloque todos esses conceitos em prática antes de nos explicar, durante a fabulosa sequência da primeira extração. Apenas em imagens, vemos os diferentes níveis onde Cobb, Arthur e Saito se encontram, no castelo japonês, o apartamento abandonado e o trem bala em Quioto. Não temos muita explicação para o que está havendo ou como tudo funciona na primeira visita, mas é um ótimo exemplo de visual storytelling ao representar como as ações afetam cada nível de sonho, desde o tapa que Cobb leva (que o faz cair no nível abaixo) e a enchente que preenche o castelo japonês quando o personagem é jogado em uma banheira de água – no mais elaborado e dinâmico sistema de despertador que você já viu.
Gosto também como o processo de elaboração do heist acaba tornando a exposição divertida pela clara comparação com o processo criativo; não por acaso, muitas pessoas enxergam A Origem como uma alegoria para o próprio fazer do Cinema. Cobb, Arthur, Ariadne e o bem-humorado Eames (Tom Hardy, no ano em que tomava Hollywood de surpresa) passam muito tempo elaborando o tipo de catarse que ocasionará na mente de Robert Fischer, e o grupo literalmente precisa criar uma narrativa que inspire a ideia de desmantelar a corporação de seu pai. Quase como roteiristas criando uma história, a equipe sabiamente opta por criar um sentimento positivo, de certa forma manipulando a percepção do jovem para alcançar seus objetivos, transformando uma proposta comercial em uma surpreendentemente tocante história de pai e filho. Nolan pode não ser o mais emotivo dos cineastas, mas ele definitivamente acerta nisso.
Outro aspecto muito fascinante nessa construção de universo é quando Nolan puxa o tapete e surpreende o espectador logo no início da inception: ao chegar no primeiro nível de sonho, toda a equipe é atacada pelas Projeções do subconsciente de Fischer, e então descobrimos que sua mente foi treinada por um extrator para atingir um sistema de defesa militarizado (mas que ideia brilhante), colocando em perigo a vida de todos ali – visto que, se morrerem, serão jogados no nível mais fundo do Limbo, já que o sedativo fortíssimo os impede de acordar.
Diante dessa situação mais perigosa, Cobb sugere que a equipe siga um método muito perigoso e divertido, que acaba renegando – de certa forma – tudo o que havíamos aprendido até então: Sr. Charles. Cobb fala diretamente com Fischer no segundo nível de sonho, e ao invés de seguir a farsa de que aquele é o mundo real, vai na direção oposta e tenta convencê-lo de que tudo aquilo é um sonho e que há extratores tentando invadir seu subconsciente; com Cobb clamando que ele mesmo é uma de suas projeções, o chefe da segurança conhecido como Sr. Charles. É uma jogada genial de roteiro que ajuda a tornar a trama mais dinâmica e imprevisível, e quase metalinguística ao colocar seus conceitos de ponta-cabeça; culminando na ótima solução de se criar uma intriga entre Fischer e seu tio (um eficiente Tom Berenger), para que a equipe inicie o terceiro nível de sonho em uma projeção do sujeito – dessa forma, Fischer ajuda Cobb e sua equipe a invadir sua própria mente, sem ter ciência disso.
Desenho do Subconsciente
Uma das reclamações mais frequentes – e idiotas – a respeito de A Origem é como a visão de Nolan para os sonhos não é lúdica ou surrealista o bastante, passando bem longe das estéticas de cineastas como David Lynch e Tim Burton. Bem, não é a proposta do longa em momento algum apostar em imagens psicodélicas ou uma experiência mais sensorial, visto que o roteiro do filme nos dá a ótima sacada de ter um arquiteto desenhando e projetando cada sonho visto na história, já que a intenção do grupo é justamente simular o mundo real, a fim de enganar seus alvos e facilitar a extração de informação. Não ser despirocado não é um “erro” do filme, é uma decisão narrativa, e perfeitamente justificável em seu conceito.
A ideia de se ter o arquiteto como membro chave da equipe é um poço de originalidade. Sendo necessário para aqueles que assumem essa equipe buscar os mínimos detalhes de textura, composição e saídas alternativas dentro de construções gigantescas, isso permite que Nolan possa se divertir com diversas reviravoltas e soluções visuais. Por exemplo, é genial que Saito perceba estar em um sonho quando sente a textura do carpete de seu apartamento e percebe que o material do mesmo é diferente, fazendo-o ter ciência da farsa e a intenção de Cobb – demonstrando ao espectador como o mais mínimo dos detalhes pode acabar com todo o trabalho.
Dessa forma, o designer de produção Guy Hendrix Dyas merece aplausos por seu trabalho sobrenatural no filme. Ainda que o visual passe longe da psicodelia, todo o design se inspira nas artes de M.C. Escher em seus momentos mais surreais, especialmente no que diz respeito a arquitetura paradoxal, incluindo a famosa escadaria infinita de Penrose, loops e outros conceitos cíclicos – agindo como os “bugs” de cada sonho criado pelos personagens, e até mesmo como arma, vide a ótima cena em que Arthur engana uma Projeção ao usar o paradoxo da escada para correr ao seu redor. A imagem da cidade de Paris se dobrando de forma espelhada, um dos poucos usos de efeito visual pesado na produção, é outro momento de “surrealismo” orgânico e respeitoso à proposta mais realista do filme.
De forma similar, quando os personagens chegam ao tão mencionado Limbo, o nível de sonho onde todos os vestígios de construções anteriores ficam deixados para trás, temos algo que respeita a proposta desse universo, oferecendo um tipo de surrealismo que respeita a referência na arte de Escher: uma fileira de prédios com baixa opacidade, quase desaparecendo em meio ao céu sem nuvens, e que representam também um trabalho incompleto. Alie isso ao fato de que temos diferentes casas e estilos arquitetônicos no local (já que o espaço fora um quadro branco para que Cobb pudesse experimentar suas habilidades como Arquiteto), e temos um palco memorável e digno de um subconsciente abandonado.
Considerando que a grande maioria dos efeitos do longa são práticos, Dyas e sua equipe tiveram um trabalho absurdo ao conceber e construir cada espaço e ambiente que preenchem os diferentes sonhos. Do design impressionista do castelo japonês no primeiro ato, passando pelo luxuoso hotel do sonho de Arthur até a base militar na neve durante um dos clímaxes do filme, é formidável a variedade de ambientes e locações presentes durante a história, e gosto muito também como pequenos detalhes como os números da combinação do cofre de Fischer acabem virando placas nos quartos do hotel.
Vale destacar também a inteligência de Dyas ao criar paralelos com o mundo dos sonhos e a realidade. Por exemplo, estamos sempre comparando as construções dos arquitetos com labirintos, e quando Cobb acaba em uma perseguição por um vilarejo em Mombasa, uma câmera alta revela os muros e paredes assumindo uma forma similar à de um labirinto; simbolizando que Cobb está sempre fugindo. Nos sonhos, de projeções, e na realidade, pelas organizações nebulosas que estão a seu encalce.
O Arquiteto
Não é tarefa fácil assumir a dupla tarefa de diretor e roteirista, algo que Christopher Nolan faz com frequência. Ainda mais difícil e assumir um trabalho desses sozinho (é o primeiro crédito de Nolan como roteirista sem seu irmão, Jonathan) e de uma escala tão grande, seja pelo tamanho das ideias ou das set pieces. Saído de um trabalho tão requintado e primoroso como O Cavaleiro das Trevas, é de se impressionar com o nível técnico atingido por Nolan aqui.
Mas antes de irmos a fundo nas conquistas mais grandiloquentes do diretor, é justo falar sobre seu subestimado trabalho nas “coisas simples”. Com toda aquela exposição do primeiro ato descrita acima, Nolan sempre procura manter sua câmera em movimento e oferecendo jogadas para tornar a experiência mais dinâmica, como panorâmicas ao redor da equipe enquanto discutem a criação das camadas de sonhos e até planos mais longos de walk and talk para as aulas de Ariadne. Em certo ponto desse bloco, o diretor aposta até mesmo em planos POV, literalmente colocando o espectador nos sapatos da jovem arquiteta, e garantindo uma imersão maior naquele universo.
Quando chegamos às grandes sequências, é quando testemunhamos a maestria de Nolan como condutor de espetáculos. Fã confesso dos filmes de James Bond, temos uma introdução digna de Sean Connery quando Cobb vasculha o castelo japonês atrás dos segredos de Saito no primeiro segmento do filme, com as luzes noir de Wally Pfister acompanhando essa sequência de tiros silenciosos e arrombamentos em cofres ocultos. No momento em que tudo falha e o sonho começa a literalmente se desmoronar, a ação paralela de Lee Smith tem início, e esse é um efeito que acompanhará o espectador pelo resto do filme. De maneira similar, a câmera lenta é usada de forma orgânica e que faz sentido dentro da história, já que o tempo é mais devagar a cada subnível de sonho.
Ainda sobre 007, Nolan traz uma gigantesca referência a A Serviço Secreto de Sua Majestade ao apostar em uma ambiciosa cena de ação na neve, onde a equipe precisa invadir uma base militar localizada em congelantes montanhas glaciais. Temos um espetáculo envolvendo tiroteios, perseguições de ski e até outros veículos de guerra que ganham adaptações formidáveis para o cenário frio, e Nolan e Smith merecem aplausos por conseguirem manter equilíbrio e ritmo durante todos esses pequenos momentos – que dividem-se entre Eames distraindo os veículos, Saito e Fischer invadindo a instalação e Cobb e Ariadne livrando o caminho com um rifle sniper. Temos, novamente, um uso de dublês e efeitos práticos absurdo, com explosões de veículos, esquiadores armados com metralhadoras e até uma avalanche que foi realmente provocada com explosivos durante as filmagens.
Mas a cena mais famosa do filme é aquela que envolve variações de gravidade. Elevando o conceito de uma ação interferir na outra dentro do sonho, quando a equipe está dormindo em uma van em movimento, todo o sonho começa a ser afetado pelas derrapadas, acelerações e, especialmente, uma série de capotagens. Ao mesmo tempo em que Arthur luta com projeções no corredor do hotel, o veículo capota e, por consequência, todo o corredor começa a lentamente acompanhar o movimento do carro, fazendo com que Arthur e as projeções subam pelas paredes.
É uma sequência tão incrível que é feita em um take só, sem corte algum. Basicamente, o mesmo sistema de cenário rotatório usado por Stanley Kubrick em 2001: Uma Odisséia no Espaço é utilizado aqui, onde todo o cenário está girando constantemente, mas com a câmera acoplada e acompanhando o movimento; dessa forma, a impressão é que os objetos e elenco estão reagindo à rotação, e que o cenário está completamente intacto. Uma jogada genial de ambos os diretores, mas se Kubrick a usou para simular uma simples caminhada pelo espaço, Nolan coloca dois atores para lutar, se jogar e sair na porrada em um ambiente com gravidade variada.
Não, Não me Arrependo de Nada
Nesse viagem maravilhosa por cenas de ação, sonhos e a mente humana, um dos elementos mais poderosos de A Origem é sua trilha sonora original. Marcando a terceira colaboração entre Nolan e o compositor Hans Zimmer, a música aqui acabou virando um meme pela trombeta grave, infelizmente invalidando o trabalho absurdamente majestoso para o filme. A começar pelo próprio tema principal, é genial – repito, genial – que as trombones com efeitos sintetizados representem a seção instrumental da canção Non Je Nen Regrette Rien, de Edith Piaf (música que os personagens usam como despertador) com velocidade reduzida, sendo um elemento que transita entre diegético e não-diegético constantemente. O fato de que o filme tem introdução com essa fanfare densa e ameaçadora é o primeiro indício da imersão do espectador nos sonhos.
Essa sensação intensa e que parece pegar o espectador pela garganta é sentida durante boa parte do longa, especialmente durante as cenas de ação paralela. Cirurgicamente amarradas pela montagem de Smith, todas as diferentes sequências na van, hotel, neve e limbo ganham fôlego graças à excelente música de Zimmer, que aposta em cordas, batidas e os trombones discutidos acima. Nesse quesito, o Oscar garantido ao filme pelos trabalhos de edição e mixagem de som são mais do que merecidos, já que a trilha está constantemente interferindo nos efeitos sonoros, assim como estes transformam-se em relação ao que se passa na tela; quando temos a entrada de slow motion, por exemplo, o som ganha uma distorção apropriada e muito orgânica.
Outra novidade musical aqui veio de inspiração de (quem diria) Ennio Morricone, quando Zimmer optou por usar uma guitarra como tema central. Equipado com uma guitarra de 12 cordas, Johnny Marr – do The Smiths – foi convidado pelo compositor para a criação desse tema, que ouvimos pela primeira vez em Dream is Collapsing, onde a guitarra é suave e quase radical, que vai sugerindo uma sensação de estranheza cool que definitivamente ilustra com fidelidade o universo criado por Nolan e fornece o sutil toque de James Bond que o diretor almejava; sendo uma calma antes da tempestade na cena em questão, durante a primeira extração no sonho de Saito. Vale apontar também o surreal trabalho de bateria e percussão visto em Mombasa, faixa que acompanha a alucinante perseguição de Cobb durante sua passagem pela África.
Mas o trabalho de Zimmer aqui não é só espetáculo. A relação de Cobb e sua esposa falecida Mal rende um estilo de música em Old Souls que é muito mais sereno e, graças às cordas distorcidas, surreal e estranho. Zimmer transmite também uma certa nostalgia através dessa serenidade, com as cordas indo e vindo como a marola do mar, algo muito apropriado para o arco de Cobb. Paradox também abraça a suavidade, servindo como um ótimo contrapeso à força da orquestra nervosa para o momento em que a equipe enfim desperta da missão, oferecendo ainda um violoncelo misterioso para o passo final da jornada de Cobb para resgatar Saito do Limbo.
Porém, o toque final de Zimmer vem com Time. É uma lindíssima peça de piano que toma conta de toda a paisagem sonora dos minutos finais, quando Cobb acorda e retorna com o resto da equipe para o mundo real – ou é o que parece, teorias da conspiração à parte. As notas curtas vão crescendo junto com a orquestra, que adota sopros, cordas e a guitarra de Johnny Marr para um hino de vitória e superação que torna simplesmente impossível não se emocionar com a ação, principalmente quando o protagonista tem a visão de seus filhos.
Almas Velhas
Mesmo com toda essa pirotecnia impressionante, o mais importante núcleo de A Origem está na relação de Cobb com sua esposa falecida, Mal (Marion Cotillard). Como o protagonista é incapaz de esquecê-la, ela está constantemente invadindo seus sonhos e atrapalhando a missão da equipe, garantindo a Mal um papel tanto como desenvolvimento de personagem como artifício para trazer reviravoltas na narrativa. Nesse lado mais melancólico e emocional acerca dos sentimentos de Cobb, é onde encontramos um Nolan raiz, muito próximo de seus primeiros filmes.
Através de flashbacks conduzidos pelo protagonista, vemos que ele e sua esposa estudavam o conceito de sonho compartilhado, e também do profundo nível do Limbo. Horas transformavam-se em dias ali, e o casal acabou ficando o equivalente a 50 anos imerso em seu mundo de sonhos experimental, praticamente construindo uma nova vida através de memórias antigas e design de prédios futuristas. É até forte quando Cobb usa o termo de “almas velhas” para descrevê-los, pois como é possível que uma pessoa viva por 50 anos sem ter algum tipo de envelhecimento, seja da mente ou da alma, como diz o extrator?
É quando, sem trocadilho, A Origem realmente sente-se mais profundo. Temos a noção de um mundo completamente novo e sem limites coexistindo com o real, e sem limites para mortalidade ou… qualquer coisa. O drama começa quando Cobb não consegue mais aceitar aquela realidade falsa, e, como Mal se recusava a sair, secretamente faz uma inception nela; implantando a ideia de que aquele mundo não era real. Porém, a ideia é tão forte que acaba dominando a mente de Mal mesmo na realidade, forçando seu suicídio para “acordar” daquela realidade. É uma ironia dramática das mais intensas e provocadoras da carreira de Nolan, e a decisão de guardar apenas para o final a revelação de que Cobb era o responsável pela inception oferece a solução para o dilema do personagem, e finalmente entendemos o real motivo de Mal invadir seus sonhos e agir de forma tão hostil: não é apenas uma saudade, é a culpa de ter causado sua morte que realmente o assombra.
Dando vida a esse personagem perturbado, temos uma das performances mais fascinantes da carreira de Leonardo DiCaprio, que se esforça para conter o temperamento explosivo e desesperado de Cobb através de um ar suave e trêmulo. Sempre que DiCaprio contracena com Cotillard, sua performance muda pra algo muito mais frágil e desesperado, com o seu olhar intenso sempre passando a impressão de estar diante de algo que lhe é incrível e delicado, e a forma como ele a toca em alguns momentos, é como se Cobb temesse que sua esposa evaporasse e sumisse ao vento.
Quando os dois tem um diálogo mais decisivo no clímax – que é, nada mais nada menos, do que Cobb conversando com ele mesmo – a grande catarse é Cobb aceitando a morte de sua esposa, e a responsabilidade de tê-la provocado, e o fato de DiCaprio se esforçar para evitar olhá-la nos olhos quando finalmente revela sua traição é mais um traço de sua atuação primorosa. E é justamente Ariadne, agora fazendo jus ao nome, quem ajuda Cobb a superar isso e, por fim, tirá-lo deste labirinto mental que é a sombra de Mal. Bem, ao menos essa é a versão mais evidente pelo filme, mas há quem discorde, o que nos leva ao próximo e mais polêmico tópico.
O Final
Trabalho com crítica cinematográfica há quase uma década (literalmente, em fevereiro do próximo ano marcarei 10 anos dessa empreitada), e nesse meio tempo vi sites surgirem, blogs se fortalecerem e também como as discussões na internet mudaram muito. Nesse intervalo de tempo, de 2008 pra cá, posso garantir que nunca vi nada ganhando a proporção do final ambíguo de A Origem. Se eu pegar as estatísticas de meu blog desativado, não me surpreenderia se o breve artigo que fiz em 2010 ainda estivesse sendo acessado hoje, 7 anos após sua estreia.
É aquela velha dúvida que intriga cinéfilos até hoje: Cobb está sonhando ou no mundo real quando os créditos começam a subir? Com o sucesso da inception, o extrator enfim consegue voltar para os EUA e reencontrar seus filhos. Sua felicidade é tamanha que ele precisa usar seu pião para confirmar que está mesmo no mundo real, mas ele corre para ver os filhos antes, ignorando o resultado de seu totem. Temos um caloroso abraço entre pai e seu casal de filhos, com o sorriso satisfatório de Michael Caine ganhando um plano próprio. Mas quando a câmera volta para a mesa, vemos que o brinquedo ainda está girando, mas com sinais claros de um possível desequilíbrio.
Mas essa é a questão. O pião não importa. O pião é apenas uma forma de Nolan distrair o público, da mesma forma como em O Grande Truque insistia para que o espectador olhasse com atenção, e entregava as respostas literalmente em nossa face – sem nos dizer nada. Pra começar, Arthur nos alerta no começo do filme que cada totem é intransferível: ninguém pode tocar no objeto além de seu dono, e sabemos muito bem que o pião de Cobb pertencera a Mal, o que já coloca sua credibilidade em jogo. Se isso não for o bastante, temos também a primeira cena do filme, onde o envelhecido Saito pega o pião de Cobb e diz em alto e bom som (talvez nem tanto, dada sua dicção idosa) que sabe o que é aquele objeto, e até mesmo o faz girar.
O pião não é o totem de Cobb, e talvez nunca tenha sido. O verdadeiro totem de Cobb é sua aliança de casamento, mesmo que ninguém nunca fale a respeito dela. É uma teoria que tem fundamentos, visto que o anel sempre aparece quando o protagonista está em um sonho (nos níveis da inception, nas aulas de Ariadne, o castelo japonês), mas que nunca está presente quando temos cenas no mundo real. Quando Cobb entrega seu passaporte para o agente do aeroporto no final do filme, antes de regressar à casa, vemos que não há anel algum em seu dedo, já reforçando a forte possibilidade de que Cobb está, sim, no mundo real. Além disso, as crianças de Cobb estão diferentes desde sua últimas aparições, mas o figurinista Jeffrey Kurland sabiamente usa tons e acessórios parecidos para confundir nossa percepção; o xadrez da camisa de James é diferente, assim como os sapatos de Phillipa também trocam de cor.
Da mesma forma como Cobb fez com Mal, ao colocar o pião girando dentro do cofre de seu subconsciente – criando a ideia de que o mundo não é real – Nolan literalmente faz a mesma coisa com o espectador. Ele coloca o pião rodopiante em nossa frente, e acaba criando a ilusão de que o protagonista realmente não está no mundo real, e todos saímos do cinema com essa falsa impressão. É uma inception do mundo real, literalmente. O 4D mais imersivo que alguém poderia imaginar.
A Origem é um filme único. Um blockbuster que parte de uma ideia original, misturando conceitos de ficção científica, cinema de terror e um profundo thriller psicológico, há muito o que se admirar no mais ousado e elaborado filme de Christopher Nolan, sendo impressionante o domínio do cineasta para criar mundos complexos e explorar seus limites mais extremos e desafiadores, transitando diferentes gêneros para alcançar um resultado difícil de se colocado em palavras.
Um filme de sonhos, de fato.
A Origem (Inception, EUA – 2010)
Direção: Christopher Nolan
Roteiro: Christopher Nolan
Elenco: Leonardo DiCaprio, Ellen Page, Joseph Gordon-Levitt, Tom Hardy, Marion Cotillard, Cillian Murphy, Ken Watanabe, Dileep Rao, Tom Berenger, Pete Postlethwaite, Michael Caine
Gênero: Ação, Ficção Científica
Duração: 148 min
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