O irremediavelmente desconhecido Valerio Zurlini, um diretor italiano de excelente qualidade, sofreu uma queda ainda pior de popularidade após Dois Destinos, seu segundo maior sucesso durante os anos 1960. Experimentando um constante fracasso, mas lidando com valorosos elogios, o cineasta entra nos 1970 praticamente reformulado, mais sábio e mais deprimido.
O primeiro de seus dois filmes nesta década seria o ótimo A Primeira Noite de Tranquilidade que comprova a relevância do nome de Zurlini no Cinema Mundial em conquistar atores repletos de talento para integrar em suas produções. No caso, o galã francês, Alain Delon, que já havia trabalhado com nomes gigantescos do Cinema Italiano como Luchino Visconti, é o protagonista desse filme profundamente melancólico que trazia muito do ar dos dramas noir urbanos que fariam fama na Nova Hollywood nessa mesma década vide o sucesso de Taxi Driver.
Almas Perdidas
Uma década é capaz de mudar profundamente um artista. Zurlini já era conhecido pelo seu ativismo ideológico expresso de modo sutil e elegante em sua arte, mas ainda assim sempre havia um resquício de atmosfera romântica. Embora ela exista nesta narrativa, Zurlini demonstra sua maturidade como roteirista ao centrar sua história de um modo mais compreensível que o visto em outros de seus filmes.
A começar, temos um protagonista mais interessante pela apresentação repleta de minúcias curiosas sobre sua personalidade. Daniele Dominici (Alain Delon), um poeta especializado na literatura italiana, é contratado como professor substituto no Liceu. Apesar de seu nítido desinteresse em tudo que há a sua volta, incluindo o casamento fracassado, o homem cumpre sua rotina como docente até reparar em uma bela jovem estudante, Vanina Abati (Sonia Petrovna).
Ela, namorada de um ricaço local, tem fama de prostituta na escola, mas Dominici não dá ouvidos e acaba se aproximando da moça. Inevitavelmente, a misteriosa mulher e o homem deprimido se apaixonam de modo bastante ambíguo, mas que leva somente a um trágico destino.
Embora tenhamos uma estrutura bem intimista para o romance entre esses personagens, Zurlini se apega ao tempo e ao ritmo lento para trazer retratos realmente humanos dessas duas almas sofridas que entram em sintonia quando finalmente encontram o diálogo que tanto procuravam para dar razão à própria existência.
Enquanto Dominici é um espírito mais livre, não se importando com seu futuro, já que ele não possui nada, vemos como Vanina é uma mulher aprisionada por conta da sua dependência financeira pelo namorado Marcello. Zurlini mostra a relação conturbada que ambos possuem, com o personagem tratando sua namorada como um mero objeto de prazer sexual para ser exibido como um troféu. Tudo é feito através da encenação muito clara de Zurlini que atinge ápices em A Primeira Noite de Tranquilidade sendo facilmente um de seus filmes mais poderosos visualmente.
Na metade do longa, por exemplo, há um trabalho cuidadoso entre planos e contraplanos mostrando Dominici observando Vanina dançar com seu namorado horas depois dos dois terem trocado o primeiro beijo apaixonado em um momento bastante romântico. O diretor quebra o estado mental de serenidade do protagonista com essa revelação perturbadora, além da mulher se comportar de modo mais frio. É uma cena realmente magnética e poderosa que estabelece todo o conflito de intenções que rola nessa triangulo amoroso: o desejo depressivo de Dominici, a sordidez de Marcello em perceber que os dois estão apaixonados e, por fim, a melancolia da bela aprisionada.
Praticamente um ditame narrativo de contos de fada transportado em um realismo perturbador. Zurlini traz novamente um choque de classes, portanto, mas de modo orgânico, já que Marcello também é um personagem foge dos tons mais superficiais que filmes ideologizados tendem a seguir. O cineasta vê o pobre como propriedade do rico e também totalmente desornado quando enfim consegue conquistar sua independência, muito por conta do medo da retaliação pela violência. Nesses níveis, o filme é muito eficiente em não soar pedante, mas sim trágico e poético.
Com o desenvolvimento dos personagens, a mesma excelência é apresentada. Uma pena que, por termos um punhado de outros rapazes, alguns causem certa confusão para o espectador. Mas no que realmente importa, o protagonista e seu triângulo amoroso, é algo bem trabalhado com diversos diálogos de qualidade. Até mesmo a relação com sua esposa, totalmente conturbada, é curiosa pelos nítidos casos de projeção que ele cria através do falso desejo do protagonista.
Zurlini apenas perde a mão no terceiro ato bastante burocrático apesar do início potente culminando no conflito entre Dominici e Marcello por Vanina. Com situações apressadas e despedidas de pouco sentido, além de surgimentos inesperados de outros personagens já claramente esgotados como Spider. Mesmo concluindo o longa preservando o cenário decadente e muito infeliz proposto desde a primeira cena, há muita confusão para Zurlini chegar até ali, perdendo o momentum que havia conquistado pela concretização do novo casal.
Na direção, é curioso notar que mesmo trazendo a atmosfera depressiva, o cineasta ainda maneja as cenas com movimentos de câmera precisos para alterar os enquadramentos em dois momentos, favorecendo a movimentação dos atores posicionados milimetricamente na composição. É um capricho cinematográfico bastante clássico que vai de encontro com a pesada narrativa. Embora haja esse vigor cinematográfico, nem mesmo ele consegue tirar o longa do marasmo provocado pelos minutos finais.
Uma Noite Sem Sonhos
Zurlini prova que, às vezes, o avançar do tempo pode trazer maturidade o suficiente para tratar de obras mais complexas que oferecem diferentes tipos para conflitos há muito experimentados como o caso do triângulo amoroso. A Primeira Noite de Tranquilidade é um dos melhores filmes de sua pequena filmografia e certamente merece ser conferido por um cinéfilo que esteja atrás de nomes injustamente desconhecidos. Zurlini é grande e até hoje é carente do reconhecimento que não recebeu em vida.
A Primeira Noite de Tranquilidade (La prima notte di quiete, Itália – 1972)
Direção: Valerio Zurlini
Roteiro: Valerio Zurlini, Enrico Mediolli
Elenco: Alain Delon, Giancarlo Giannini, Sonia Petrovna, Renato Salvatori, Lea Massari, Salvo Randone
Gênero: Drama
Duração: 132 minutos.