Dentre tantos movimentos cinematográficos que o Cinema experimentou em seu primeiro século de História, acho o Neorrealismo Italiano um dos mais interessantes tanto pela proposta quanto pelos resultados dos filmes originados. Dentre os cineastas mais famosos do Neorrealismo, está Luchino Visconti que viu sua carreira ganhar muita solidez ao concretizar seu segundo longa-metragem, A Terra Treme.
Como típico do cinema do movimento, há todo o contexto social bastante profundo em tom quase documental ou seja, uma “realidade” dentro da ficção. Entretanto, mesmo sendo um filme pertencente ao neorrealismo italiano e, majoritariamente, de ideologia de esquerda, Visconti ousa trazer uma narrativa que flerta com pontos curiosos, além de apresentar uma estética muito próxima a da linguagem do cinema clássico.
O Mar Dá
Visconti traz uma história de tragédia – algo típico nos filmes neorrealistas, sobre uma família de pescadores em uma cidadezinha da Sicília. Vivendo por anos ganhando apenas o suficiente para comer, o filho mais velho, Ntonio, se rebela pela situação miserável de sua família e da classe trabalhadora que sustenta todo o comércio da vila. Indo contra a sabedoria de seu velho pai, Ntonio e seus irmãos decidem ir contra o abuso perpetrado pelos comerciantes que compram os peixes por preços abusivamente baixos. Porém essa guerra trará poucos louros e muitas desgraças para a família do jovem pescador.
Como Visconti fez um filme para o público italiano, é preciso abrir certas concessões do mesmo modo que o diretor faz com os letreiros iniciais explicando o que veremos ao longo das horas de exibição. Em toda a narrativa, temos a presença de um narrador onisciente e onipresente elaborando a história em italiano, explicando a progressão do filme. Isso, para um público estrangeiro como o nosso, soa absolutamente estúpido e redundante, porém há muito sentido para tal artifício.
Visando não quebrar o tom realista e o propósito fiel ao drama daquelas pessoas, todo os diálogos são falados no dialeto siciliano totalmente estranho para outros cidadãos italianos da época. Logo, para explicar o que acontecia, a narração teve que ser inserida com ares relativamente poéticos, mesmo mantendo o didatismo. Embora seja incômodo, não remove o brilho da história de A Terra Treme.
De fato, ela é bastante simples, seguindo um arquétipo comum de revolta, breve ascensão e profundo declínio para atingir a morte de esperança e resignação – algo também bem comum aos filmes neorrealistas. O que de fato mantém o espectador interessado na longa história é o carisma dos personagens interpretados por não-atores injetando improvisos, gritaria típica e paixões exacerbadas.
Obviamente, não são todos que se destacam e mais servem como exemplos claros da ideologia de cada um sendo Ntonio o mais efusivo e revolucionário da família, se negando a trabalhar contra quem o explora tremendamente, indo contra os conselhos de seu velho pai. Visconti trabalha com bastante tempo para explorar visualmente todo o esforço dos personagens durante o trabalho na pesca, nas discussões contra os mercadores e, por fim, da depressão ao chegar em uma moradia completamente velha e arruinada, com pouca comida para muita fome e vestes desgastadas.
Uma vida realmente sem conforto, mas suficiente para suprir as necessidades básicas. Porém, nosso protagonista ambiciona por mais e isso é totalmente justificável. Tanto que o início do segundo ato envolve toda a jornada de Ntonio se livrando das amarras dos mercadores visando se tornar dono do próprio negócio. O segmento é totalmente pró-empreendedorismo, embora o personagem tenha que fazer um pacto perigoso com o banco para conseguir o dinheiro necessário para comprar seu barco e outros recursos.
Esse segmento é um dos mais bonitos do filme, repleto de otimismo, mostrando o ápice da família e da explosão de acontecimentos bons para cada um deles que conseguem engajar romances, melhores roupas, além do prazer de vencer a tirania virulenta dos mercadores. Porém, enquanto exibem o começo da bonança, não percebem como a comunidade passa a trata-los com certo desdém, negando a oportunidade de uma vida melhor que abre com a revolta de Ntoni.
O Mar Tira
É justamente no meio do segundo ato que o declínio se inicia com Visconti jogando o destino da família a uma questão de azar. Durante uma tempestade, perdem tudo o que conquistaram. Esse é o único momento que temos uma verdadeira ausência do núcleo masculino. Aqui, Visconti elabora o sofrimento das mulheres que aguardam angustiadas pelo retorno de seus homens, empoleiradas e rígidas nas rochas castigadas na costa da praia. É uma das imagens mais fortes que o cineasta traz, valorizando um pouco mais o enquadramento posado, já que geralmente a encenação flui com certa liberdade trazendo o ar “realista” desejado pelo cineasta – destaque para as imagens fantásticas do primeiro dia de trabalho dos pescadores.
Depois do amargo regresso dos personagens, Visconti trabalha a desilusão e as consequências do pacto financeiro, além do abandono completo que a família encara variando os destinos infelizes que os integrantes mais destacados rumam. Aqui sim A Terra Treme vira um típico dramalhão italiano, mas, apesar disto, ainda é contido em expressões realmente humanas, de um luto silencioso e imperfeições morais de cada um deles.
Mas o conflito que mais marca é o confronto entre a família contra os seus antigos amigos, agora totalmente contra eles e torcendo pelo pior, nunca oferecendo ajuda. Estabelece-se então uma racionalidade do oprimido se amarra ao opressor, além da completa morte do sentimento fraterno. A crítica social se torna verdadeiramente forte na conclusão do longa, com Ntoni no fundo do poço se resignando aos mercadores. A encenação é cruel e cheia de piadas nojentas contra o protagonista fracassado, totalmente falho em sua tentativa de se livrar da opressão.
O que de fato se torna um verdadeiro empecilho para Visconti conseguir arquitetar uma obra-prima é a completa falta de dosagem com a duração do filme para uma história bastante simples de personagens fáceis de interpretar. Não que as situações sejam repetitivas, mas há certa enrolação em cenas do terceiro ato, estendendo a duração da obra além do necessário.
Entretanto, mesmo sendo considerado “pai” do Neorrealismo Italiano, é interessante o modo que Visconti usa a câmera e até mesmo o som. O cineasta não usa aquele clichê clássico do movimento da câmera na mão bastante trêmula e de estética rudimentar. Aqui há sim planos grandiosos capturados sempre a uma distância confortável em movimentos de travelling delicados. A decupagem, apesar de ser sempre muito afastada, por vezes apresenta closes em momentos decisivos, mostrando como o diretor não subestimava o poder da expressividade máxima do ator no cinema, pois cada vez que temos um close certamente se trata de uma reação vital dos personagens.
O mesmo se dá com a montagem mais acelerada no começo, repleta de fades, até se transformar na segunda metade da obra, regulando os cortes e prevalecendo longos planos de fotografia ligeiramente sombria para evocar a solidão e desolação dos trágicos personagens.
Cinema que Treme
É bem possível que A Terra Treme seja um dos melhores começos de jornada para qualquer cinéfilo que queira se aventurar nas maravilhas do Neorrealismo Italiano. Profundamente ideológico e, felizmente, muito humano, Visconti consegue veicular mensagens poderosas em seu filme preocupado com problemas sociais pertinentes ao notar o problema em pontos de vista amplos, fugindo de raciocínios reducionistas.
Visconti simplesmente fez um cinema que vibra. Que treme.
A Terra Treme (La terra trema, Itália – 1948)
Direção: Luchino Visconti
Elenco: Antonio Arcidiacono, Giuseppe Arcidiacono, Venera Bonaccorso, Nicola Castorino, Rosa Catalano
Gênero: Drama
Duração: 160 minutos