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Crítica | Altered Carbon – 1ª Temporada: A Netflix Mergulha no Cyberpunk

Diante de uma nova obra cyberpunk, é praticamente inevitável compará-la aos excelentes exemplos do subgênero que vieram antes. Akira, Ghost in the Shell (o anime ou mangá, não o recente filme com Scarlett Johansson), Blade Runner, todos foram essenciais para a popularização dessa temática primeiro explorada por autores como William Gibson (Neuromancer) e, claro, o próprio Philip K. Dick. Ao assistir Altered Carbon, nova série da Netflix, portanto, não podemos deixar de olhar para o passado – não a fim de dizer qual é melhor ou pior e sim para observar como o cyberpunk evoluiu desde suas primeiras abordagens na literatura e cinema.

Baseado no livro, de mesmo nome, de Richard K. Morgan, de 2002, a série foi originalmente concebida como um filme por sua criadora, Laeta Kalogridis. Por se tratar de um material R-Rated (o equivalente à classificação indicativa para maiores de 18 anos, no Brasil), contudo, a tarefa de encontrar um estúdio que comprasse a ideia não provou ser nada fácil, isso sem falar que era preciso tempo para explorar as diversas temáticas levantadas pelo romance original. Eis que, de longa-metragem, Altered Carbon passou para o formato de série televisiva, sendo comprada pela Netflix.

Como é bastante comum se tratando do cyberpunk, a obra estabelece uma atmosfera noir, com direito desde a ambientação mais escura, até a clássica voz em off do protagonista. Somos jogados em um universo no qual o corpo se tornou um mero receptáculo da mente, que pode ser transferida de uma “capa” para outra, permitindo que, aqueles que tem o dinheiro para comprar um novo corpo, possam viver para sempre – a morte real somente acontece quando o HD contendo a mente da pessoa é destruída.

Nesse futuro distópico, acompanhamos Takeshi Kovacs (Joel Kinnaman), um ex-mercenário que, após ter sua capa destruída, acorda 250 anos depois em um novo corpo. Kovacs é contratado por um matusa (os mais velhos e mais ricos do mundo), Laurens Bancroft (James Purefoy), para descobrir quem o matou em sua própria casa e acaba descobrindo que há muito por trás desse assassinato.

Por se tratar de um mundo completamente diferente do nosso (em tecnologia pelo menos), é de se esperar que exista aquele período de ajuste, para que possamos, de fato, entender o que está acontecendo. Similarmente à obra seminal de K. Dick, Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas?, Altered Carbon nos joga direto nesse cenário distópico e apresenta as peças chave dessa história prioritariamente através da própria imagem ou de diálogos, que não caem na armadilha de serem forçadamente didáticos ou expositivos. Entendido, porém, como funcionam as “capas” e todo o conceito da morte real, o restante se torna bastante simples, podendo ser resumido ao visual e, evidentemente, os desdobramentos dessa tecnologia da possível vida eterna.

Evidente que, conforme progredimos na trama, mais elementos começam a ser introduzidos, como inteligência artificial, tortura virtual, dentre outros aspectos. O foco, porém, sempre se mantém em Kovacs e em sua investigação, que acaba se tornando algo maior do que simplesmente achar um assassino, similarmente à estrutura narrativa de Blade Runner e sua sequência, Blade Runner 2049. Dito isso, questões como a discussão religiosa sobre o processo de ressurreição tecnológico funcionam como catalisadores do enredo, além de ajudarem a construir o universo como um todo, garantindo a ele maior profundidade, podendo ser enxergado como algo, de fato, vivo. Não cabe, portanto, abordar a fundo tais questões em detrimento da trama geral, algo que sabiamente evitam, fazendo uso desses aspectos pontuais somente quando devem.

Mesmo as subtramas apresentadas, essas, sim, desenvolvidas ao longo dos dez episódios dessa primeira temporada, dialogam diretamente com a situação de Kovacs. Bom exemplo disso é a busca por determinado criminoso pela policial Kristin Ortega (Martha Higareda), que começa como algo um tanto desconexo do restante da trama, mas que acaba a impactando consideravelmente antes da metade da temporada – nesse quesito, a criadora da série acerta ao não deixar tudo para o final, espaçando os pontos de virada, que aparecem de maneira orgânica, sempre captando nossa atenção novamente.

O único ponto fora da reta é o arco de Vernon Elliot (Ato Essandoh) e sua filha, traumatizada depois de ter sua “capa” destruída de forma violenta. Claro que isso funciona a fim de demonstrar os danos psicológicos sofridos nessas constantes trocas, além de revelar o impacto da morte na vida da pessoa. Existe, claro, o subtexto de doenças psicológicas, abordando de maneira enfática questões como a síndrome do pânico, TEPT e a própria depressão, mas nada que justifique constante interrupções na narrativa principal, o que acaba fazendo com que toda a investigação do protagonista pareça ser, por vezes, algo secundário, o que claramente acaba prejudicando o ritmo da obra como um todo.

Ao menos, presente nessa subtrama, temos uma atuação maior do personagem Poe (Chris Conner), uma inteligência artificial, dona de um hotel, que age e se veste como Edgar Allan Poe, um belo toque adicional, não presente no livro original, que garante maior riqueza à série. Aliás, é interessante observar como a figura de Poe é usada, em determinados trechos, para alavancar a narrativa, oferecendo alguma informação ao protagonista, como o velho assistente que permanece no esconderijo o tempo todo – algo que ele próprio acaba mencionando em determinado momento.

Claro que tudo acaba girando em torno de Takeshi Kovacs, interpretado na medida certa por Joel Kinnaman, que entrega o típico forte e silencioso, mas que, sob a superfície, claramente carrega traumas passados. Kinnaman não é exatamente o auge da expressividade, mas cumpre seu papel de forma precisa, funcionando tanto nas violentas sequências de ação, quanto nos momentos de maior drama, principalmente aqueles envolvendo seu passado – contado prioritariamente através de bem inseridos flashbacks – e sua relação com a detetive Ortega, com quem, desde cedo, apresenta grande química, por mais que seu personagem seja extremamente grosso na maior parte do tempo.

É interessante observar como o ator consegue expressar o desconforto inicial de seu personagem em estar em um novo corpo – tendo morrido de forma violenta, ele demonstra essa sua dor em cada aspecto de sua linguagem corporal, algo que vai nitidamente se alterando conforme progredimos na narrativa. O texto também acerta ao saber trabalhar seu estranhamento a certos pontos desse mundo que ele encontra 250 anos depois. Os princípios básicos são os mesmos de seu passado, mas os detalhes são gradualmente apresentados a fim de causar o desconforto no protagonista, que, claro, dialoga com nossa própria percepção desse universo distópico.

James Purefoy, como o matusa que contrata o ex-mercenário, por sua vez, não cansa de impressionar, sempre deixando bem claro, pelo simples modo de falar, o poder que seu personagem carrega. Diversas vezes sentimos em seu olhar e seus movimentos que o personagem, de fato, é tão velho quando o texto diz que ele é a forte presença do sangue na imagem acaba gerando a relação desse ser ancião com vampiros, especialmente pela forma elitizada que o personagem se apresenta – há um ar de nobreza, como se a sociedade tivesse, de fato, regredido, ponto utilizado para explicitar toda a desigualdade social, que já é exposta pelo contraste entre sua imponente morada com as ruas escuras e sujas, tipicamente cyberpunk, do “mundo de baixo”.

Aliás, chega a ser um grande choque quando partimos desse visual mais “clean”, acima das nuvens, da casa de Bancroft, para a violência da cidade abaixo, que jamais é ocultada pela direção, que não exagera na violência explícita, mas a utiliza quando necessário. Apesar dessa dosagem certa, nas sequências de ação, vemos mais do lugar comum, subaproveitando as boas coreografias, especialmente quando há vários atores em tela. O resultado final são cenas de ação que apenas pontualmente impressionam, em geral mais fruto da atuação de Kinnaman do que do desencadear das ações em si.

Não há como negar, porém, o imersivo visual construído para a série, com bom uso do neon e da mistura de tecnologia avançada com elementos antigos para criar algo nitidamente vivo, que não soa tão distante do concebível. Em outros momentos, porém, há de se notar um claro exagero na repetição de determinados trechos, especialmente em um capítulo determinado que faz questão de exibir o mesmo plano inúmeras vezes ao longo de sua duração. Felizmente, o recurso falho não é usado muitas vezes mais na temporada, minimizando seus efeitos negativos em nossa percepção da obra como um todo.

São deslizes como esses que impedem que Altered Carbon atinja o grau de qualidade que merece, caindo no velho problema da trama dilatada, podendo ser resolvida, claramente, em menos tempo. Ainda assim, toda a construção de seus personagens e do universo como um todo é capaz de nos fazer mergulhar nesse futuro distópico cyberpunk, mantendo nossa atenção, que somente é dispersada ao término da temporada. Sendo assim, a Netflix acaba de ganhar uma ótima série, que, mesmo com seus defeitos, não deixa de nos impressionar positivamente.

Altered Carbon (EUA, 2018)

Criado por: Laeta Kalogridis
Direção: Uta Briesewitz, Peter Hoar, Nick Hurran, Andy Goddard, Alex Graves, Miguel Sapochnik
Roteiro: Brian Nelson, Steve Blackman, Laeta Kalogridis, David H. Goodman (baseado no livro de Richard Morgan)
Elenco: Joel Kinnaman, Martha Higareda, James Purefoy, Ato Essandoh, Chris Conner, Hiro Kanagawa, Kristin Lehman, Alika Autran, Waleed Zuaiter, Byron Mann
Emissora: Netflix
Episódios: 10
Gênero: Ficção científica
Duração: 50 min. cada episódio

https://www.youtube.com/watch?v=D7wDY0lJWwA

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Publicado por Guilherme Coral

Refugiado de uma galáxia muito muito distante, caí neste planeta do setor 2814 por engano. Fui levado, graças à paixão por filmes ao ramo do Cinema e Audiovisual, onde atualmente me aventuro. Mas minha louca obsessão pelo entretenimento desta Terra não se limita à tela grande - literatura, séries, games são todos partes imprescindíveis do itinerário dessa longa viagem.

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