Fico impressionado com a forma em que o tema da escravidão negra fora tratado no cinema até hoje, quase nula seria uma honesta definição infelizmente. E nem me atrevo aqui a começar incitar uma discussão comparativa de grau humanitário no que se refere a forma em que grandes épocas de tragédias humanas foram tratadas melhor no cinema do que a era da escravidão: Perseguição Indígena x Escravidão ou Holocausto x Escravidão, etc. Mas é inegável o fato de vermos tantos quase inúmeros exemplos de obras que retrataram o Holocausto no cinema por exemplo, que vão desde extraordinários documentários como Shoah; várias versões da história de Anne Frank; dramas sobre o Holocausto sendo muito elogiados até hoje como Filho de Saul e o próprio Lista de Schindler, filme do diretor também em questão aqui.
Agora, quando tomamos nossa atenção para os filmes que lidaram com a escravidão, admito que poucos me vêm a memória. E até os próprios que existem dividem opiniões sobre seu tratamento do tema. Vide Django Livre de Quentin Tarantino que, apesar de ser assumidamente um Western de humor negro, é também dramático ao lidar intrinsecamente com a temática da escravidão em sua trama. Sem deixar de mencionar outros filmes como o ótimo Tempos de Glória de Edward Zwyck, que ainda é criticado por ser uma visão enaltecida branca da história daqueles soldados negros sendo liderados por um suposto líder branco santo e justo.
Claro que a situação não é por total escassa, e ainda encontramos bons filmes sobre o tema como 12 Anos de Escravidão de Steve McQueen que levou Oscar de melhor filme sendo exaltado como talvez o melhor filme a lidar com o tema da escravatura, o que certamente faz de boa e digna forma. Mas… não posso deixar de questionar porque esse filme fora tão exaltado e um filme como Amistad parece ter caído em um esquecimento público. Talvez por exatamente ser outro filme que não escapa desse mesmo julgamento do suposto “embranquecimento” da história graças ao nome de Steven Spielberg presente na cadeira da direção. Mas as grandes (e subestimadas) qualidades desse longa são exatamente por terem esse mesmo nome na liderança.
Principalmente, pois Spielberg consegue fugir de certo convencionalismo dramático envolvendo o tema, optando por ter escolhido contar aqui uma história que, até hoje, é desconhecida no meio público e acredito ser de grande importância e relevância histórica. Não um simples drama que retrata a vida do negro escravo, mas um filme que oferece uma visão política e cultural da cicatriz profunda e cruel que fora a escravatura na história humana. E a história que ele optou para melhor retratar isso foi sobre o navio de Amistad e sua tripulação de homens negros livres, feitos escravos.
Na Costa de Cuba, 1839, dezenas de escravos negros iniciam um violento motim liderados por Cinque (Djimou Hounsou) para se libertarem das correntes de seus captores e assumem o comando do navio negreiro, La Amistad (A Amizade). Mas desconhecendo navegação, o navio é encontrado e tomado por um navio americano, quando desordenadamente navegaram até a costa de Connecticut. Os 53 africanos sobreviventes são inicialmente julgados pelo assassinato da tripulação perante o júri americano, mas o caso toma forma e o presidente americano Martin Van Buren (Nigel Hawthorne), que sonha ser reeleito, tenta a condenação dos escravos, pois agradaria aos estados do sul e também fortaleceria os laços com a Espanha, pois a jovem Rainha Isabella II (Anna Paquin) alega que tanto os escravos quanto o navio são seus e devem ser devolvidos. Mas os abolicionistas, Tappan (Stellan Skasgård) e o ex escravo Theodore Joadson (Morgan Freeman) persistem na inocência e libertação dos negros, onde chamam pela ajuda do advogado de propriedades Baldwin (Matthew McConaughey) com a causa chegando até a Suprema Corte Americana. Este quadro faz o ex-presidente John Quincy Adams (Anthony Hopkins), um abolicionista não-assumido, sair da sua aposentadoria voluntária, para defender os africanos.
Cinema Político
Spielberg nessa época já andava em uma fase de constante diferenciação na sua carreira. Ainda podia se notar o bom e velho Spielberg comercial de sempre com exemplos como sua terceira soberba investida na franquia Indiana Jones e sua tentativa mal recebida de recriar a história de Peter Pan em Hook: A Volta do Capitão Gancho. Mas viu-se exemplos do diretor ao explorar novos gêneros, tons e temas adultos que ele nunca tinha feito antes. Vide os bem sucedidos como o drama de A Cor Púrpura; o drama de guerra com Império do Sol, e a bola fora enorme com o romance envolvendo espiritismo em Além da Eternidade. Mas era notável sua evolução e maturação a cada novo filme. Tudo que já preparava o diretor para o que ele ainda viria realizar no futuro, até hoje.
No que se refere à Amistad, Spielberg já estava mais do que capaz de comandar um filme desse suporte dramático. Mas embora várias positivas, algumas críticas ainda não se mantinham favoráveis ao diretor, questionando se ele foi mesmo capaz de lidar com o tema de forma culturalmente digna e fiel, e não apenas fazer um Lista de Schindler versão escravatura – uma infeliz (e injusta) comparação que já ouvi tantas vezes sendo feita a esse filme.
Embora eu até de certa forma compreenda de onde ela surge. Por coincidência irônica do destino ou um mero deja vu, Spielberg três anos antes havia tido um ano triunfal em 1993 quando lançou seu mega estrondo que foi Jurassic Park e tempo depois sua obra-prima, o ápice do seu cinema “artístico e adulto”, A Lista de Schindler, que angariou 7 estatuetas no Oscar no ano seguinte. E depois em 1997, pouco antes de Amistad, ele lançara a continuação do seu Parque de Dinossauros milionário, O Mundo Perdido: Jurassic Park. De cara dá pra entender daonde parte dessas comparações esdrúxulas vieram, e com certeza um ano divisor de águas para o diretor.
Mas se há uma comparação justa que se possa fazer entre ambos os filmes, envolve, novamente, a forma com que Spielberg busca encarar os eventos atrozes em questão de ambas histórias, a partir de sua visão sempre altruísta. Uma exploração da inexplicável crueldade presente na natureza humana, e mostrando um ato de salvação de homens bons usando das leis legais dentro de um sistema dominado pelo mal, para alcançar a completa salvação de poucos entre muitos inocentes. Isso se refletindo tão fortemente em Oskar Schindler em um filme, quanto no grupo defensor aqui formado pelo advogado Badwin e os abolicionistas, e mais tarde, o senhor John Quincy Adams.
Mas como elucidar um ato justo de salvação por meios legais em uma época onde a mesma legalidade precavia a escravatura dos homens e mulheres de cor?! Para isso, o palco do caso de Amistad se torna perfeito para esse debate, pois se tratava aqui da América pré Guerra Civil, em meados do século XIX. De onde já se erradicava um extenso conflito político interno entre os Estados livres sob quem detinha direitos de terra, dinheiro ou propriedade, como escravos.
Era pleno século XIX, o EUA crescia em poder a cada dia e suas mudanças sociais e culturais eram espalhadas das outras nações rivais e aliadas. Se por exemplo enquanto a Espanha ainda baseava parcela de sua economia no mercado escravo, a Inglaterra já havia a erradicado há anos. E apesar de ainda ser uma cultura predominantemente racista, o governo dos EUA não concordavam legalmente com o tráfico de escravos. Criando – se assim nesse episódio, portanto, um tremendo impasse. Mesmo que de forma implícita, fica claro que a questão econômica é o pilar daquela corte americana julgando a situação.
Com o destino daqueles 53 escravos, se tornando uma questão política ainda mais complicada graças ás disputas constantes entre o Sul escravocrata e o Norte menos conservador e aberto ao abolicionismo. Isso só se comprova pelas frias intenções do presidente Van Buren, que apenas visava ser reeleito se usando da condenação dos escravos pois esta agradaria aos estados Sulistas e fortaleceria os laços econômicos com a Espanha extraditando de volta os negros para seu domínio.
Se o roteiro de Franzoni acerta nessa retratação de época e política, consegue também ousar em acirrados diálogos complexos. Um deles surpreende pela sua dureza e pontada afiada, quando o advogado de acusação contra os negros, Holabird (Pete Postlethwaite – o caçador bad ass de O Mundo Perdido), questiona a legitimidade da escravidão. Apontando que os próprios povos africanos, assim como eles americanos e os europeus, se utilizaram da escravidão como forma de arma contra os mais fracos e para benefício próprio em guerras ou pagamento de dívidas. Um fato mesmo nada inédito que data deste a antiguidade Egípcia e Romana, com relatos de trabalho forçado e servidão. O que claro, não justifica nem tão pouco autoriza moralmente um ato tão vil. Mas que serve para denotar como bom exemplo, como a ideia da escravatura era uma força pensante ainda presente na mentalidade comum como algo de legitimidade e direito político.
Eis que surge a solução politicamente legal que o advogado Baldwin arranja para livrar seus “clientes” réus. Conseguindo provar através do inventário da carga do navio, de que os negros não foram comprados em mercado legal de território Espanhol, e sim eram africanos legítimos da Costa de Serra Leoa, tido sido arrancados e capturados de seus lares e depois ilegalmente traficados no mar caribenho. Sendo assim, se a constituição dos EUA reconhecia a situação de pessoas que prestavam serviços, possuíam direitos e, de nenhuma forma, poderiam considera-los como propriedade de alguém. Mas se fossem considerados como “coisa” ou melhor, bens, não poderiam estar sendo julgados legalmente. A manobra legal que o advogado cético do início, arranja para salvar a vida dos inocentes por meios estritamente legais. Ideologicamente um tanto errado de fato, mas em tempos de desespero, a salvação de uma vida é a que mais vale no final.
Cinema Humanista
Com isto assim posto, Spielberg mostra que quer realmente impor um debate difícil e complexo sobre a quem detém o direito da vida humana, a quem pertence os negros de Amistad. Sobre a que custo legitimamente político é justo ter comando sobre a vida do ser humano. Mas como estamos falando de Spielberg, é claro que temos uma visão e tratamento de ótica bem humanista da situação. E para um dito judeu, Spielberg surpreende por entregar um quadro de provação quase cristã pelo que os negros passam em comparação à tortura física e moral de Cristo, representado belamente na cena em que Cinquen descobre a jornada de Jesus por apenas ver as figuras presentes na bíblia em que lê junto do amigo. Cristo, homem, branco ou negro, todos iguais perante Deus, todos vão para o mesmo lugar, sendo assim, todos julgados da mesma forma.
Mas isso só ajudou para, como sempre, deixar o filme ser criticado e classificado até hoje como piegas e maniqueísta, pela maneira romantizada como o enredo se desenvolve – com a clássica contraposição entre o bem e o mal. Porém acho escuso dizer que tais argumentos para desmerecer Spielberg já estão mais do que datados hoje. E quando um diretor como ele mostra ter um rico uso da técnica em todas as esferas do filme, isso nula completamente qualquer sinal de melodrama ou pieguice barata que podem apontar aqui.
Alguns bons exemplos disso como na forma com que o diretor mostra querer e sabe muito bem ambientar o espectador dentro de cada um dos cenários com um surpreendente uso de teatralidade clássica em momentos centrais da trama. Poupando ao máximo o uso de close ups para só mostrar reações chave e dar ênfase nas expressões faciais dos personagens.
A fotografia de Janusz Kaminski pode não fazer um trabalho visualmente magnífico como em A Lista de Schindler, mas cumpre um belo serviço em denotar a aura dramática de cada fase e cenário em contrapartida aos personagens. A coloração amarelada e calorosa nas cenas com Cinque em sua terra natal; o azul e cépia frio opressivo quando ele está no navio negreiro. Com as cores se repetindo na fase central do filme, com um acinzentado opressivo nas cenas de aprisionamento, remetendo a uma presença nula de esperança. E o calor amarelado volta a aparecer nas cenas do tribunal, triviamente simbolizando que talvez uma força divina está iluminando a garantida vitória e libertação de Cinque e seu povo.
Mas creio que os momentos mais tecnicamente impecáveis e memoráveis do filme se encontram na brutal introdução do filme que mostra o início e desenrolar do motim no La Amistad. Abrindo o filme com uma verdadeira carnificina sanguinária e crua, com direito a uma espada atravessando o estômago de um homem bem em frente da câmera sem corte algum. Momentos que nos fazem questionar se esse é o mesmo diretor de filmes como E.T. – O Extraterrestre.
E o outro, se trata de toda a sequência em flashback que mostra a jornada de Cinque, desde sua vida pacata na aldeia de sua tribo, seguido de sua captura por outros negros traficantes e depois vendido aos Espanhóis, e finalmente sua tortuosa viagem no navio negreiro – uma das sequências mais brutais (e deveras brilhante) que Spielberg já filmou em toda sua carreira. Que demonstra de forma vil e crua, e historicamente fiel, toda forma de tortura e humilhação que passavam os negros durante sua penosa viagem no tráfico negreiro. Cenas que só servem para deprimir ao público, e fazer simpatizar ainda mais pela luta de liberdade que o povo de Cinque passa.
Muiá Ma Muiê
Tudo isso se culmina no clímax com a entrada culminante do personagem de John Quincy Adams na defesa dos negros. Também relutante e até duro em sua desesperança de sucesso. Mas creio que quando ele vê que o caso chegou a Suprema Corte do governo, ele vê a relevância social e histórica que esse caso está para tomar, revelando derradeiramente o verdadeiro ideal americano para com a situação da escravidão. Isso se torna sua inspiração também após um belo diálogo quando conhece Cinque pela primeira vez, e o inocente homem profere a Adams que os seus ancestrais diziam que todos nós somos o resultado da soma de nossos ancestrais.
Fazendo com que assim, Adams em sua defesa se reporta a noção de justiça calcada nos valores da fundação do país. Clamando um resgate dos antigos valores passados, calcadas sobre como todos os homens são criados iguais perante o governo legítimo. Que passa longe de ser uma sacada de patriotismo barato e sim também uma possível reflexão sobre a importância da tradição cívica e valorização humana em um meio político formado por iguais.
Evocando em seu discurso final, exatamente, aqueles princípios proclamados pelos Pais Fundadores como sendo os alicerces dos Estado Norte-Americano. Aqueles negros não eram propriedade de ninguém, nem em Cuba, nem na Espanha, mas sim provinham da Costa do Marfim aonde haviam sido capturados. Tinham os direitos à vida e à liberdade. Desconhecê-los era renegar o passado, era romper com a tradição, era fragilizar a autoridade moral detida pelos continuadores da fundação dos EUA.
Uma sequência inteira que também serve para elucidar o lado drama de tribunal que Amistad também assume para si. Deixando claro as influências de Spielberg que bebe um pouco de filmes como A Mulher faz o Homem de Frank Capra e O Sol é para Todos de Robert Mulligan, esse último que toca até em termos semelhantes que Spielberg mostra se aproveitar aqui.
No final, por esse motivo, a defesa de Adams que foi concedida ao povo de Cinque, além da liberdade alcançada, foram mesmo fruto da vitória dos antepassados de cada bom coração ali. Fruto da justiça que já vinha no sangue de cada um deles, negros ou brancos, mas que pesava em seus valores humanos. Poucos se salvam, mas a escravidão de outros se perpetua, então assim ecoa os gritos do povo de Cinque, “Muiá Ma Muiê”, que gritavam em ambas vitória e derrota. Este fora apenas um passo para algo maior.
Justo ressaltar também que só esta bela sequência final já garante Adams como uma das melhores atuações do soberbo Hopkins, tão injustamente visto hoje como uma caricatura de si mesmo. Que compartilha cena com um elenco surpreendentemente cheio de nomes bem reconhecíveis e todos partilham de um bom tratamento sob a direção de Spielberg, desde Freeman, Skarsgård, um jovem Chiwetel Ejiofor antes do estrelato. Mas destaque fica mesmo entre o até então estreante, e até hoje tristemente subestimado Djimon Hounsou, que dá a Cinque tanta pureza em seus olhares e gestos, um desejo absoluto e irremediável de liberdade, de seu corpo e alma. E junto dele um jovem Matthew McConaughey, também anos antes do estrelato, mas já mostrava aqui sinais do ator cheio de forte personalidade e emoção que ele demonstra hoje.
Um Belo Injustiçado
Um filme para poucos ou outros vão se ater ao argumento que este se trata de ser uma obra tediosa e maniqueísta, que dá uma visão branca de uma história negra. Filme este que nunca se submeteu para ser uma máquina de angariar prêmios, mas sim denotar a coragem de um cineasta em pleno ápice e ainda em constante crescimento, e que buscou aqui elucidar uma brava história esquecida que merecia ser lembrada.
Onde ele a realizou com total apreço à forma, à técnica, à humanidade refletida em cada linha de seu bravo e ambicioso roteiro, que retratou uma época não tão diferente da nossa. Onde pessoas ainda lutavam, ainda lutam para se verem livres nesta terra mesmo que o mal em volta, pregado ou não às leis dos homens, as tente sucumbir. Mais do que apenas um mero e simplório Lista de Schindler sobre a escravidão, e sim uma visão histórica derradeira sobre a escravidão humana, e do sofrimento daqueles que pereceram e lutaram contra ela. Se existe um filme que retratou bem isso, aqui está Amistad!
Amistad (Idem, EUA – 1996)
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: David Franzoni
Elenco: Djimon Hounsou, Matthew McConaughey, Anthony Hopkins, Morgan Freeman, Stellan Skasgård, Pete Postlethwaite, Nigel Hawthorne, Chiwetel Ejiofor, Anna Paquin, David Paymer, Raazaq Adoti, Tomas Milian, John Ortiz
Gênero: Drama Histórico
Duração: 155 min