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Crítica | Animais Noturnos

Certos diretores talentosos de cinema não necessariamente surgem já na sétima arte. Boa parte deles faz o clássico caminho do videoclipe para o cinema como David Fincher, Marc Webb ou Spike Jonze. Porém, nunca tinha visto um diretor vir do mundo da moda dar seus pitacos como cineasta. Em 2009, tivemos a grande estreia de Tom Ford, renomado estilista, para o mundo cinematográfico com o excelente Direito de Amar.

Depois da celebração de sua estreia, o diretor entrou em hiato até agora. Sete anos depois recebemos um filme especial: Animais Noturnos. Longa que, aliás, conversa bastante com sua vida por conta de retratar temas muitos inerentes ao ambiente texano.

O roteiro de Ford adapta o romance Tony e Susan escrito por Austin Wright. Ao contrário do livro, Ford optou por uma narrativa não linear que certamente favorece o modelo cinematográfico de storytelling. Acompanhamos a vida de Susan Morrow, uma curadora bem-sucedida de um museu de arte pós-moderna. Entre cortejos, festejos, riqueza e um casamento fadado ao fracasso, Susan leva sua vida entediante dia após dia. Até que recebe um pacote em sua casa.

Seu ex-marido, o escritor Edward Scheffield, envia a cópia de seu novo livro, Animais Noturnos, batizado em homenagem as insônias constantes de Susan. Intrigada, Susan começa a ler a obra inspirada nela, mas o que encontra escrito nas páginas conversa diretamente com a problemática história regressa dos dois. Conforme a história do livro fica mais violenta, Susan relembra do passado com seu ex-marido, repensando ações equivocadas.

O thriller diabólico

A escolha da narrativa de Animais Noturnos certamente é seu maior diferencial. Temos uma característica das mais difíceis de serem realizadas no Cinema: a ficção dentro da ficção. Ou seja, a história do livro de Edward também é adaptada para o longa. E para gostar por completo de Animais Noturnos, é preciso compreender os personagens e a atmosfera de cada espaço temporal dos três que o filme aborda. Além de ter certo conhecimento extra-filme para poder apreciar por completo.

A tom do texto de Ford é crítico e ácido quase extrapolando no cinismo. Animais Noturnos é um filme cínico sobre a natureza humana mais comum: a crueldade. Seu início aborda o casamento frio e opaco de Susan com o marido rico, galante, mas chato e entediante. Sua vida segue a rotina pré-definida, estável e sem aventura alguma. Até receber a bendita cópia do livro do ex-marido.

O texto, até então silencioso e de conflitos mornos, adapta toda a monstruosidade descrita nas páginas sangrentas de Animais Noturnos. Nessa narrativa, vemos a tragédia de Tony Hastings, um homem que viajava com sua família pelo interior do Texas até ser abordado por um grupo de caipiras de índole pervertida. Com a filha e a mulher sequestradas pelo grupo, Tony fará de tudo para reaver sua família no meio terra desolada.

A narrativa do livro, obviamente, atrai mais o espectador por conta de a história possuir mais conflito e personagens carismáticos ante a narrativa do tempo presente de Susan. Como sempre temos transições entre três linhas temporais, a narrativa do livro, por vezes, é um pouco apressada, possuindo diversas elipses que condensam até mesmo anos podendo causar certo estranhamento.

Porém, o conflito que o protagonista passa é exemplar para comprarmos sua dor, além de Jake Gyllenhaal estar estupendo neste papel. Basicamente é uma história de faroeste moderno que carrega toda a decadência moral e social que ocorre no Texas contemporâneo sobre o modo que o ambiente afeta a vida de homens bons e maus.

Nisso, há o excelente personagem de Michael Shannon encarnando o xerife local Bobby Andes. Um coadjuvante digno de atenção por sintetizar um pessimismo latente sobre toda aquela terra. Seu desenvolvimento impressiona também por ser muito coeso. Há uma transformação que consegue tocar o espectador a ponto de mudar a primeira impressão que tivemos do personagem que corrobora toda uma impressão inicial do arco de Tony: o fato de ninguém expressar muita vontade em querer ajudá-lo a reencontrar sua esposa e filha.

Metamorfoses

O roteiro de Ford, além de conseguir contar competentemente três histórias, é extremamente eficaz em conectá-las. Assim que Susan começa a ler o livro do ex-marido e sacar que toda a história de vingança e sofrimento que o protagonista sofre é uma elaborada metáfora da vida regressa do casal, a terceira narrativa em flashback surge.

Temos então uma Susan completamente distinta da que protagoniza o tempo presente. A narrativa acompanha o relacionamento de Susan com o ex-marido Edward – também encarnado por Jake Gyllenhaal que consegue criar camadas distintas e similares para cada personagem. Aqui, há todo o começo do relacionamento dos dois, ainda jovens, aspirantes a sonhadores. O conflito é muito pertinente, pois ele é originado através de outro flashback excelente de Susan com sua mãe – performance destruidora de Laura Linney, enquanto almoçam.

Para quem estiver atento, o cerne da mensagem do filme está nesta cena. A partir disso, temos dois núcleos narrativos com excelentes conflitos em contraste com a vida insossa que Susan leva no presente. Só o fato da leitura do livro despertar essas memórias na protagonista, já torna a história muito mais instigante do que ela é. A grande eficiência de Animais Noturnos não está centrada no roteiro e no desenvolvimento pleno dos personagens, mas sim na excepcional técnica que Ford possui em conduzir o longa.

Corte e Costura

A abertura de Animais Noturnos – que, inclusive, foi censurada em alguns países, já sintetiza boa parte da vida de Susan e da subversão de beleza que o filme aborda. As mulheres obesas, idosas e nuas que dançam na abertura já trançam uma ironia pertinente ao filme inteiro sobre a lembrança de uma terra em completa decadência, seja estética, moral ou ética.

Todo o figurino e adereços utilizados pelas senhoras são os mesmos que várias mulheres “fantasia” jovens e voluptuosas vestem para celebrar o feriado de 4º de julho, independência americana, em festivais ou paradas urbanas. Ou seja, todo o bastião da liberdade de outrora representando pela famosa beleza americana é subvertido – o que se prova por todas as ações dos protagonistas e antagonistas que vão contra a moral vigente para diversas classes da sociedade americana.

A maior ironia se concentra justamente quando é revelado sobre o que se trata aquilo tudo: de uma peça de arte pós-moderna. O ranço de Ford pelo movimento é expressado pela síntese da chatice ególatra prepotente com exposições estúpidas e pseudo-intelectuais que Susan é obrigada a conviver e curar diariamente. Até mesmo alguns diálogos abordam esta questão de modo incisivo e direto. É um excelente paradoxo essa sequência inicial em criar uma encenação que agregue tanto ao filme enquanto sua função narrativa exibe o gosto artístico decadente de Susan.

Esse niilismo da personagem é refletido pela atuação quase robótica de Amy Adams que vai se transformando em humana novamente conforme lê o livro do ex-marido. Se imagina que tudo isso é construído através de muitas simbologias inteligentes, saiba que acertou. O filme carece de desenvolvimento pautado através de diálogos, pois Ford praticamente te obriga a interpretar o filme. Caso não faça isso, apenas terá visto um bom filme que, na verdade, é excelente.

As metáforas são fáceis de captar e de interpretar a partir do momento que o espectador sacar que toda a jornada de Tony no romance espelha todo o sentimento nada amistoso que o autor sente pela ex-mulher – sentimento este muito bem justificado em uma reviravolta grotesca do longa.

Novamente, é impossível não sacar isso por conta de Ford sempre orientar o montador Joan Sobel em realizar cortes com imagens muito parecidas entre as linhas narrativas. A competência de raccords visuais de Tom Ford é invejável por conseguir costurar essa metáfora com perfeição através das imagens impactantes. O diretor muitas vezes usa a semelhança física entre Amy Adams e Isla Fisher, que interpreta a esposa de Tony na ficção, para colar esses paralelos de ódio, desespero e violência presentes no discurso.

Como muita gente espera, Animais Noturnos é um deleite visual. Um esteta explícito, Ford consegue criar imagens estéreis para a vida presente de Susan, sempre muito monocromática, limpa, sombria e sem graça, mas de profunda beleza pela composição dos enquadramentos – referência direta aos desejos de riqueza supérflua que a personagem almeja; enquanto abusa nos contrastes das imagens saturadas da narrativa do livro e das cenas que Susan se recorda do casamento com o ex – estas, muito mais softs e românticas.

A jornada texana começa completamente escura e tenebrosa, condizente com os eventos traumáticos que abrem o livro. Porém, passada as tensas cenas do sequestro também encenadas com proeza, Ford e o fotógrafo Seamus McGarvey apostam na paleta mais saturada a fim de transmitir a diegese clássica texana. Ao longo do retorno dessas cenas, as cores são minimizadas através de um filtro que contrasta maiores níveis de preto na imagem já refletindo o crescimento da sede de vingança de Tony.

Ford cria imagens belas e duras que raramente transmitem afeto amoroso. É um trabalho visual que visa sempre isolar os personagens em um estado de paranoia obsessiva ou alienação intensa. Repare que os enquadramentos conjuntos são postos em contrastes para a narrativa de Tony. Antes, tínhamos o homem enquadrado junto com sua família e captores enquanto, progressivamente, Ford o isola nos enquadramentos finais de sua narrativa.

Em alguns enquadramentos pontuais, o diretor também expressa simbologias mais evidentes. Elaboradas, mas de fácil compreensão. Vejamos três exemplos. O primeiro deles é um enquadramento que emoldura uma caixa com os dizeres “frágil” com Susan na profundidade de campo. Um belo foreshadowing para quebrar a primeira impressão de mulher forte e decidida que temos da protagonista. Depois, com o cadáver de uma moça, Ford deixa o colar dourado com um crucifixo amassado e impotente em evidência – novamente, um método de reforçar a mensagem da decadência da moral texana, um dos estados mais cristãos dos EUA. No último exemplo, depois de Susan ter lido os trechos mais violentos do livro, Ford enquadra a personagem ao lado de um enorme quadro com os dizeres Revenge. Ao mesmo tempo, enquanto Susan parece voltar a se apaixonar pelo ex, o espectador tem a consciência da ignorância da mulher em não perceber que o livro nada mais é do que uma peça de vingança contra ela. É um manifesto do desafeto, do desapego e do escape de violência que Edward deseja infligir contra Susan. 

Outro foreshadowing potente se dá no momento que Susan abre o pacote com a carta e o livro escritos pelo ex. Ao cortar-se com o papel, praticamente temos uma dívida de sangue selada entre os dois, além de marcar o começo da vingança de Edward consumando um desejo de violência física através de um objeto frágil. Mal sabe Susan, naquele momento, que a agressão do ex-marido será consolidada através das ideias, com imagens violentas apenas descritas por palavras. Paradoxo.

Com Susan, há o mesmo entre a alternância dos flashbacks de seu passado com o presente. Ford não decepciona ainda que não arrisque nunca em movimentar sua câmera para criar uma encenação mais envolvente. O diretor trabalha com a linguagem clássica dos anos 1950, mas com o ritmo da montagem moderna para criar a tensão necessária sem ter que recorrer à movimentação do aparato.

Além da montagem, o que torna Animais Noturnos tão magnético é a performance estupenda do elenco. Apesar de Adams e Gyllenhaal tomarem a dianteira no trabalho criativo conseguindo criar personagens complexos somente através do exuberante contraste de momentos da atuação, Michael Shannon e Aaron Taylor-Johnson dão um show em suas cenas dedicadas. Mesmo que o personagem de Shannon incorpore estereótipos e clichés do faroeste, o ator consegue conferir um grau de insanidade e passividade assustadora para o personagem por conta de olhares ora obtusos, ora flamejantes.

Já Taylor-Johnson encarna o hillbilly perfeito. Sua apresentação é fantástica por conta da subjetividade das ações do personagem. Mesmo que saibamos que a índole do antagonista seja cruel, Johnson mantém o personagem no limiar de uma loucura que busca gentileza e agressividade. A cena do sequestro só se torna tão eficiente por conta desse trabalho muito interessante de Johson que mantém esse cinismo camaleônico da moralidade até o fim do filme. Seu personagem é a síntese do animal criado pelo meio implacável capaz de fazer tudo para sobreviver.

Beleza Putrefata

É muito compreensível que Animais Noturnos não seja um filme que caia no gosto de todos. É outro caso de “ame ou odeie” por conta das tonalidades artísticas e da narrativa do filme pesar tanto na estética e na direção para que consiga ser desenvolvida de modo pleno e eficaz. Não é um filme difícil, mas ele exige sua atenção e senso artístico para esmiuçar todas as imagens que Ford traz em tela. Sem abordar o filme desse modo, é bem possível que ele se torne bastante chato após a meia hora inicial, afinal há uma troca de gênero.

Passamos de um thriller repleto de violência que promete uma história de vingança explosiva para então se tornar um drama psicológico humano sobre relações amorosas fracassadas e o luto do abandono. Porém, a graça de Animais Noturnos é justamente essa: em flertar com o ser e não ser, em se metamorfosear em um filme paradoxal extremamente simples, mas ao mesmo tempo complexo e exigente. Delicado e cruel, apaixonado e incrédulo, altivo e mortal.

Para fechar o ano em grande estilo, eis que Tom Ford confere uma obra estupenda, muito inteligente, que deve agradar bastante àqueles que procuram um filme completo em todos os sentidos, incluindo sua trilha musical maravilhosa, romântica, idílica e leve. Uma música que emana toda a beleza moral nunca alcançada por seus míseros, infelizes personagens.

Animais Noturnos (Nocturnal Animals, 2016 – EUA)
Direção: Tom Ford

Roteiro: Tom Ford (baseado no romance de Austin Wright)
Elenco: Amy Adams, Jake Gyllenhaal, Michael Shannon, Aaron Taylor-Johnson, Isla Fisher, Ellie Bamber, Armie Hammer, Karl Glusman, Laura Linney, Michael Sheen
Gênero: Suspense
Duração: 117 min.

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Publicado por Matheus Fragata

Editor-geral do Bastidores, formado em Cinema seguindo o sonho de me tornar Diretor de Fotografia. Sou apaixonado por filmes desde que nasci, além de ser fã inveterado do cinema silencioso e do grande mestre Hitchcock. Acredito no cinema contemporâneo, tenho fé em remakes e reboots, aposto em David Fincher e me divirto com as bobagens hollywoodianas.

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