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Crítica | Ao Cair da Noite

Antes de começar a falar deste filme, farei uma rápida reflexão sobre os perigos de basear sua expectativa para um filme na opinião de outras pessoas e confiar cegamente na visão que outros tiveram para determinada obra. É conveniente que eu toque no assunto neste texto, porque Ao Cair da Noite é um dos filmes mais intimistas dos últimos anos, graças ao seu roteiro que deixa muita coisa subentendida, não entregando respostas diretas ao espectador. Não sei vocês, mas eu sou um dos maiores fãs do terror A Bruxa, que estreou no ano passado. Antes de chegar aqui, o filme foi ovacionado pelos festivais pelos quais passou e inclusive o mestre Stephen King declarou ser um dos filmes mais assustadores que ele já viu na vida.

Pois bem, este ano foi a vez de Ao Cair da Noite ter uma trajetória semelhante. Primeiro vieram os festivais, depois a crítica internacional rasgando elogios, com alguns mais empolgados cravando: é o filme de terror do ano! Então, vieram os trailers. Cheios de mistério sobre uma entidade maligna no coração da floresta e com várias imagens impactantes… Ah, foi difícil controlar a ansiedade. Mas, lembrem-se que enquanto os críticos idolatravam A Bruxa o filme teve uma recepção bem mista perante o público, muito provavelmente não por acharem um filme ruim, mas por esperarem uma coisa sendo que o filme entrega outra.

Curiosamente, Ao Cair da Noite tem o mesmo selo do outro filme citado, a fantástica A24 – que conta também com títulos como Ex Machina e Sob a Pele no seu catálogo. E eu temo que este filme sofra do mesmo destino injusto que A Bruxa sofreu. Ao Cair da Noite não é o filme mais assustador do ano. Ele nem se propõe a isso. Para mim, não chega nem a ser um terror, mas um suspense psicológico envolto em uma atmosfera completamente sombria, lembrando algumas obras do próprio Stephen King. Não é por acaso que Trey Edward Shults, o diretor, declarou que os filmes que mais lhe inspiraram para escrever e dirigir o longa foram O Iluminado de Kubrick, O Enigma de Outro Mundo de Carpenter, A Noite dos Mortos-Vivos de Romero e Inverno de Sangue em Veneza, de Roeg.

É claro que dizer que tal o filme o inspirou não significa automaticamente que tenha funcionado, mas eu realmente senti fragmentos de cada um desses filmes citados na obra de Edward, e tentarei expressar melhor isso no texto mais à frente. Apenas concluindo a minha reflexão, não deixem que o marketing equivocado e trailers montados propositalmente para aguçar sua curiosidade – mesmo que não reflitam a essência da obra – criem expectativas demais e atrapalhem seu julgamento na hora de apreciar um filme. Eu sei bem como isso é difícil, mas vale a pena segurar o hype.

Dito isso, na história Paul (Joel Edgerton) vive isolado em uma cabana na floresta juntamente com sua esposa Sarah (Carmem Ejogo) e seu filho Travis (Kelvin Harrison Jr.). A trama se passa em um mundo pós-apocalíptico onde há um vírus desconhecido infectando e transformando as pessoas em monstros/zumbis. Desde o início, fica bastante claro que o objetivo de Paul e sua família é sobreviver a qualquer custo. Até o dia em que Will (Christopher Abbott) – mais um sobrevivente – invade a cabana atrás de comida e um teto seguro para sua família. A partir daí as duas famílias terão de conviver juntas, confiando uns nos outros sem saber o que vem “ao cair da note”.

Edward Shults já havia se destacado no seu filme de estreia “Krisha”, mas neste filme ele eleva o trabalho com a câmera e criação de atmosfera a um outro nível, o qual não estamos acostumados em filmes do gênero hoje em dia. Ele constrói essa atmosfera enigmática e estabelece o clima de suspense colocando o espectador diretamente no meio da crise, assim como seus personagens. Não há exposição desnecessária e pouquíssima informação para o público. Por meio de uma direção paciente, com planos longos que passeiam pelos corredores escuros da casa, há uma constante sensação de que algo muito ruim está prestes a acontecer. Edward sabe – e aposta todas as fichas nisso – que o medo do desconhecido é uma arma muito eficiente para atingir o público.

Um quadro chama a atenção no início do filme: é O Triunfo da Morte, arte do período Renascentista. Como mencionei que o longa é um dos filmes mais intimistas do gênero, onde provavelmente cada espectador irá tramar suas próprias teorias acerca da história, ao final desta análise farei uma breve explicação sobre o que eu achei que pode ter acontecido, para evitar soltar algum spoiler indesejado. Certamente, a maior qualidade de Ao Cair da Noite é a parte técnica, onde o filme beira a perfeição. Edward volta a trabalhar em conjunto com seus colegas de costume, Drew Daniels na fotografia e Brian McOmber na trilha sonora.

O fato de ser um filme escuro, por si só, não seria um elogio. Acontece que como o filme inteiro é construído em cima desta atmosfera, acaba causando uma desorientação psicológica que acentua ainda mais o medo e a imprecisão daquele ambiente, nos deixando sempre tensos com a situação. Quanto a trilha, talvez não haja nenhum tema tão marcante – com exceção de um tocado durante um pesadelo de Travis -, mas o destaque vai para a forma precisa como ela é empregada. Por várias vezes a trilha também é usada para causar apreensão, mas de repente é abandonada, nos deixando apenas com o silêncio constrangedor da situação.

Infelizmente, Ao Cair da Noite também tem seus problemas, a maioria deles com relação a alguns pontos que o roteiro toca, mas não desenvolve. Pode até ter sido intencionalmente por parte da direção deixar algumas pontas soltas para que o espectador buscasse pensar mais e se envolver melhor com a história. Mas, a sensação que fica é que tirando todos esses elogios técnicos que foram feitos, o que temos é uma história simples de sobrevivência, onde pouco acontece. Talvez sabendo disso, Edward dá muita importância para as sequências de pesadelo do garoto Travis, deixando de lado a oportunidade de se aprofundar em questões importantes como “o que aconteceu com o mundo?”, “a causa e como o vírus é transmitido?”, “há outros sobreviventes?”, etc.

lguns personagens também são subdesenvolvidos, com exceção de Paul, Travis e talvez Will. Aparentemente, Edward estava mais interessado em demonstrar como alguns indivíduos reagem a paranoia e ao isolamento, afetando a família como um todo, do que desenvolver cada personagem de maneira mais profunda para ver como eles agem em sociedade, lidando com outras pessoas nas quais não confiam. Portanto, o sentimento que fica após o término do filme é conflitante. Embora tenha várias qualidades técnicas e estéticas, em termos de profundidade e tema, o filme acaba sendo um tanto superficial. Eu não me espantaria se com o tempo o filme tiver proporcionalmente o mesmo número de adoradores e haters, por exemplo.

Sendo assim, reforço que Ao Cair da Noite provavelmente não vai te matar de medo. Na verdade, a proposta do filme nem é essa. Aqui não há interesse em jumpscares baratos, monstros ou fenômenos sobrenaturais. Acredito que o filme queira provar que dependendo da situação, o próprio ser humano se torna o monstro. Para quem gosta de thrillers psicológicos com mistério e um clima intimista é um prato cheio. Parece que o filme é construído em uma única atmosfera que vai eclodir apenas no clímax final. Apoiado por mais uma poderosa atuação de Joel Edgerton, caso você vá assistir ao filme livre de expectativas e influência de trailers e afins, tem tudo para apreciar provavelmente “o melhor suspense do ano”, porque terror, só se for o psicológico.

Spoilers a Seguir

Como disse anteriormente, o filme deixa várias questões em aberto. Mesmo o final é completamente subjetivo. Paul e Sarah sobrevivem ou não? Eu ainda quero ver o filme mais uma vez para – quem sabe preparado – entendê-lo melhor, mas separei algumas questões que acho que o filme levanta sem a preocupação de respondê-las. Confiram a seguir:

O Triunfo da Morte

O quadro visto na casa de Paul e sua família é “O Triunfo da Morte”, de Pieter Bruegel. Diferentemente de outras fotos do filme, que passam muito rápido, esse quadro é propositalmente focado por Edward logo no início, tomando toda a tela. Por isso acredito que haja nele uma importância muito grande para o significado que o diretor quis atribuir ao filme. Na pintura vemos uma enorme chacina, onde caveiras estão executando muitas pessoas. A Morte parece estar no centro da imagem, montada sobre um cavalo empunhando uma foice gigante. Há o desespero das pessoas pela sobrevivência, correndo em direção a uma passagem com uma cruz vermelha. A julgar pela utilização de cores predominantemente quentes, a passagem pode significar o Inferno.

Um detalhe importante é que entre essas pessoas há homens, mulheres, nobres e religiosos, ressaltando que a morte vem para todos, sem distinção. Bruegel era um pintor de miniaturas, e impressiona a quantidade de informação e detalhes que conseguiu juntar em uma única imagem. Assim como o filme, o quadro tem um cenário apocalíptico, onde a morte está em todos os lugares. Como sugere uma caveira com um relógio de areia no canto inferior esquerdo, é apenas questão de tempo. Sendo assim, minha interpretação do quadro sendo relacionado com o filme, é a de que todos acabam morrendo. Eu precisaria ver novamente para entender a ordem das infecções, mas acredito que quando o garotinho Andrew é encontrado por Travis dormindo fora do quarto, ele entrou em contato com o cachorro infectado, por isso a porta aberta.

Naturalmente, Travis também foi infectado. Quando as famílias decidem se separar e Paul quer ver se Andrew está infectado, seu pai Will não permite que ele entre, provavelmente com medo que Paul descubra a infecção e tente mata-lo. E o pior: Agora Will e sua esposa Kim também estão infectados. Quando Paul finalmente consegue entrar, Will o obriga a tirar a máscara, o infectando também. Não fosse o bastante, Travis começa a dar sinais da doença e sua mãe Sarah lhe diz as mesmas palavras que disse para seu pai infectado no início do filme, para parar de lutar, não há mais volta. Só que com uma diferença, desta vez ela não usa a máscara, também indicando que já estava infectada. Por mais que o filme não nos dê esse final mastigado, a verdade é apenas uma: a Morte triunfa sobre todos mais uma vez.

Quanto ao enigmático título do filme, já que também nunca fica claro o que realmente vem “ao cair da noite”, podemos assimilar com outro aspecto cuja direção de Edward dá muito valor: os pesadelos de Travis. Pode ser frustrante para algumas pessoas (para mim foi um pouco), mas os momentos onde a tensão está mais alta no filme acabam sendo esses pesadelos do tímido e frágil jovem. Após três ou quatro repetições dessa abordagem, você já espera “ah, era apenas um sonho de novo…”. No entanto, pode haver um significado maior ali.

Não sabemos há quanto tempo o vírus se espalhou, mas é o suficiente para que a família estabeleça regras rígidas de sobrevivência e de segurança na casa. O fato de não usarem máscara o tempo todo, dá a entender que o vírus não é transmitido pelo ar, a não ser que se esteja em contato com um infectado. Numa cena rápida, vemos dois galões de água em uma espécie de garagem fora da casa e claramente está escrito “dirty”, ou seja, água suja. Pode ser que Paul tenha descoberto uma forma de descontaminar a água, e a transmissão do vírus seja feita por essa forma. Dois fatos que ajudam essa teoria são (1) quando Will é capturado, ele diz que “tinha ficado sem água” e (2) quando o cachorro se perde na floresta e aparece morto em casa, pode indicar que ele bebeu de algum rio contaminado.

E, para fechar, quando o avô de Travis morre e precisa ser enterrado no início do filme, sua mãe fica visivelmente incomodada com o fato do garoto ter visualizado tudo aquilo. Travis na verdade é tão tímido que realmente parece ser uma criança. Será que o vírus se espalhou há tanto tempo que ele foi criado desde pequeno naquele mundo isolado, sem contato com o exterior? Apesar de ter 17 anos, nos intervalos entre seus pesadelos, ele aparenta estar descobrindo coisas naquele momento, como sexualidade e maturidade, deixando de ser ingênuo. Então no brutal clímax final do filme, onde de certa forma ele é responsável por ter tocado Andrew antes de verificar tudo, ele fica em choque com tudo o que está acontecendo, ao ver que seu pior pesadelo acabou de se tornar realidade. Isso é o que acontece “Ao Cair da Noite”.

Ao Cair da Noite (It Comes At Night, EUA – 2017)

Direção: Trey Edward Shults
Roteiro: Trey Edward Shults
Elenco: Joel Edgerton, Christopher Abbott, Carmen Ejogo, Riley Keough
Gênero: Terror
Duração: 91 minutos

Redação Bastidores

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