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Crítica | Armas Na Mesa

Existem algumas traduções de títulos de filmes que, mesmo sendo boas e condizentes com a obra, não possuem o mesmo poder de síntese visto no título original. Armas Na Mesa é uma dessas traduções. Embora aborde dois elementos importantes da história do filme, como a discussão sobre a questão do controle de armas e o embate de estratégias entre duas agências de lobby inimigas, é um título que não consegue atingir o centro da narrativa como o faz Miss Sloane. Pois, o filme é, acima de tudo, um profundo estudo de personagem. Além disso, o uso do pronome de tratamento “Miss” (senhorita) contém a sutileza de já indicar um dos componentes essenciais da personalidade da protagonista, cuja obsessão pela vitória a transformou numa mulher solitária que negligencia qualquer tipo de interação romântica ou social. Infelizmente, Armas Na Mesa é um título que ignora tudo isso.

No entanto, feita essa ressalva, vamos à trama do filme. Nela, Elizabeth Sloane (Jessica Chastain) trabalha para uma empresa de lobby mais aliada à direita política. Ao receber um convite para comandar uma equipe engajada em aprovar no Congresso uma lei que aumenta o controle sobre o porte de armas, ela enxerga na oportunidade um desafio inédito na carreira. Agora, trabalhando no outro lado do espectro político, Sloane fará de tudo para sair como a vencedora dessa batalha, mesmo que isso signifique sacrificar as relações pessoais e usar os outros como meras ferramentas estratégicas.

Escrito pelo estreante Jonathan Perera, o roteiro de Armas Na Mesa tem o mérito de abordar um assunto polêmico e que costuma polarizar as opiniões – o porte de armas – de uma maneira complexa e madura. O roteirista poderia facilmente adotar um dos lados e pesar a mão no moralismo barato e superficial, mas, ao invés disso, ele apresenta situações que mostram como tanto os argumentos contrários quantos os favoráveis possuem uma parcela de verdade e razão. Embora, ao longo da narrativa, o espectador tenha a impressão de que o filme está ao lado daqueles que defendem um maior controle sobre a venda de armas, na transição do segundo para o terceiro ato há um acontecimento que coloca o filme de cabeça para baixo, engrandecendo-o ao mostrar que o roteirista não teve medo de abordar o assunto de frente, expondo todas as suas contradições e complexidades.

Exibindo essa coragem também na hora de revelar os meandros da política, Perera oferece o mesmo tratamento imparcial aos discursos ideológicos. Ele faz questão de ressaltar como a realidade concreta das operações políticas pouco ou nada condizem com a idealização tão presente nesses discursos. Sejam conservadores, sejam liberais, os políticos quase nunca levam em consideração a sua visão de mundo no momento em que precisam tomar uma decisão. No fim, tudo o que importa são os apoios políticos e financeiros por detrás das leis e projetos. Ao término da narrativa, fica claro que quem comanda o país são os lobistas, que, trabalhando para os seus clientes, “compram”, legal ou ilegalmente, os políticos para que ajam de acordo com os seus interesses. Nesse sentido, a fotografia morna e sem vida de Sebastian Blenkov é perfeita para ilustrar a pobreza espiritual desse mundo.

Também acertando ao investir em diálogos rápidos e irônicos no estilo dos filmes e séries de televisão de Aaron Sorkin para dar urgência à narrativa (os cortes rápidos da montagem de Alexander Berner auxiliam o ritmo desses diálogos), Perere cria algumas das melhores falas dos últimos anos. Como não ficar fascinado com frases como “Eu durmo contigo porque, às vezes, gosto de imaginar como seria a vida que sacrifiquei em prol da minha carreira”?! E como não rir fascinado com a parábola às avessas envolvendo o padre e a freira? Embora a velocidade com a qual a maioria das falas são ditas possa dar a sensação de que as interações são um pouco maquinais ou artificiais, os diálogos são tão inteligentes e sonoros que a reação mais comum será relevar essa aparente artificialidade pelo simples prazer de acompanhá-los e ouvi-los.

No entanto, é mesmo o cuidado com a construção da protagonista que faz Armas Na Mesa deixar de ser apenas um bom filme para se tornar uma obra memorável. Aceitando ir trabalhar numa agência menor não por ser uma defensora voraz da causa (embora ela seja a favor do controle de armas), mas sim pela dificuldade do desafio, Elizabeth Sloane se importa apenas com vencer, e, quanto mais obstáculos estiverem no caminho, mais prazerosa é a vitória. Inteligente, audaciosa e sempre com dois passos à frente dos adversários, ela não se importa de passar por cima dos outros para conseguir aquilo que deseja. Com roupas negras e os lábios e cabelos rubros, ela é, como a viúva negra, uma predadora insaciável e imparável.

No entanto, essa postura não a satisfaz completamente. Viciada em remédios, sofrendo de insônia e com uma vida social inexistente (suas relações sexuais são com um garoto de programa), ela sabe que o estilo de vida que leva é destrutivo, mas, ainda assim, continua se alimentando das vitórias nas batalhas travadas com os lobistas adversários. É só quando as decisões que toma começam a trazer consequências devastadoras àqueles que estão ao seu redor que ela passa a repensar nos seus princípios e a maneira como enxerga a vida. Simbolizada nas roupas brancas vestidas por ela em alguns momentos do filme, essa autoconsciência é perfeitamente trabalhada no julgamento no Senado ao qual ela é submetida, onde é obrigada a enfrentar os próprios demônios na busca pela redenção. Nessa escala quase épica em que a maldade e posterior bondade dela é trabalhada, a personagem vai ganhando contornos shakespearianos (fica fácil entender por que John Madden, diretor também de Shakespeare Apaixonado, exibe tanta destreza neste filme) que a transformam aos poucos numa daquelas personagens maiores que a vida. E o fato de que não é fornecida nenhuma informação sobre o seu passado serve para aumentar ainda mais a qualidade do trabalho realizado por Perere.

Pecando apenas nos últimos minutos (o plot twist final é forçado e muito idealizado) e com uma atuação soberba de Jessica Chastain, Armas Na Mesa é um filme difícil, denso, mas altamente recompensador. Aborda assuntos espinhosos de uma maneira complexa, não procura defender nenhuma ideologia e é protagonizado por uma personagem extremamente rica e profunda. Quem dera todos os filmes políticos fossem assim…

Armas Na Mesa (Miss Sloane 2017 – Estados Unidos, França)
Diretor: John Madden
Roteiro: Jonathan Perere
Elenco: Jessica Chastain, Mark Strong, John Lithgow, Michael Stuhlbarg, Alison Pill, Sam Waterston
Gênero: Thriller, Drama
Duração: 132 minutos

Redação Bastidores

Publicado por Redação Bastidores

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