Sem a menor dúvida, os irmãos Coen são marcos cravados já na História do Cinema. Também originados da onda indie dos anos 1990, os Coen são uns dos poucos a conseguirem moldar a indústria a seu favor – um feito originalmente inaugurado por Woody Allen. Formando seu nicho fiel de público, os dois deitam e rolam em Hollywood. Tem a carta branca para fazerem seus filmes de baixo custo que sempre atraem os olhos de estúdios ávidos por filmes que terão alguma chance nas principais premiações da sétima arte.
Afastados das telas e da comédia desde Inside Llewyn Davis, os Coen retornam com uma proposta metalinguística ácida que caçoa e “homenageia” o fim do studio system e suas figuras excêntricas já no fim dos anos 1940, começo dos 1950. Ave César está para o cinema assim como A Era do Rádio foi, obviamente, para o rádio, porém aproveitando de sua estrutura para enterrar a fé e os dogmas que os Homens tomam para si com religiões, tabloides e, principalmente, ideologias e as inúmeras hipocrisias de seus praticantes.
A proposta é extremente simples, aliás o filme inteiro é, acompanhar apenas um dia na vida do produtor “faz tudo”, Eddie Manix, católico inveterado e pecador assumido enquanto resolve diversos causos das diversas produções do estúdio Capitol – a.k.a. MGM. Além de lidar com muitos egos, consultas criativas, aprovar os dailies, acompanhar as produções de perto, Mannix é pego de surpresa quando o super astro Baird Whitlock é subitamente sequestrado em meio as filmagens finais do blockbuster do ano, o épico Ave César. Nisso, acompanhamos as idas e vindas do protagonista ao tentar resgatar seu ator principal e concluir a produção.
Para apreciar de fato a totalidade do texto auspicioso dos irmãos Coen aqui é preciso conhecer bem a história de Hollywood e seus diversos artistas daquele momento. Desde diretores, atores e até montadores. Caso não tenha certa bagagem, afirmo com absoluta certeza que o filme não será nem um pouco atraente para o espectador desavisado. As piadas não envolvem temas alheios a isso. Tudo é incorporado dentro da sátira sagaz dessas personalidades, das funções de cada carreira envolvida com produção de filmes, além de possuir um escopo político e religioso extremamente cínico.
A começar, centrado nesse curtíssimo espaço de tempo, a narrativa não pertence somente ao ponto de vista do protagonista. Os Coen constroem seu filme explorando diversos personagens em curtas passagens sendo algumas delas esquetes cômicas assumidas como a filmagem de um melodrama de Laurence Lorentz sendo forçado a lidar com um ator caipira acostumado com westerns leves, Hobie Doyle. Ou seja, também é um filme que foge dos padrões ao desenvolver sua história nesta aparente narrativa fragmentada, muito embora eu tenha interpretado como rapsódias originárias da agenda lotada de Mannix.
Apesar dessa narrativa que explora uma quantidade expressiva de personagens, os Coen se dedicam de fato com dois arcos que guiam o filme inteiro: o do protagonista e o de Baird Whitlock. A tirada política repleta de ironias e inocência útil vem com Whitlock e seus sequestradores que se denominam como O Futuro. Infelizmente, para explorar a perspicácia que os Coen têm aqui, eu teria que revelar um ponto intrigante da narrativa. O que posso dizer é que se trata de uma provocação bem fundamentada que termina em um desfecho muito imprevisível e memorável.
Já com Mannix, apesar do escopo enorme, trata-se de um drama do homem comum imbuído de significados belos. Cansado da vida de produtor faz tudo e abafador de causos das estrelas histéricas, ele fica em dúvida se deve aceitar uma proposta de emprego onde trabalharia menos, ganharia mais e teria mais tempo para aproveitar sua família, mas fazendo um serviço nada ético. Os momentos de dúvida se dão através das confissões de Mannix para com o padre da igreja de seu bairro, porém os Coen não poupam ninguém, como de costume. Durante as confissões, ele somente apresenta pecados menores como um cigarro escondido do olhar preocupado da esposa ou uma surra dada em um artista.
Há certa hipocrisia do protagonista aqui por conta de nunca confessar os verdadeiros crimes espirituais: encobrir os pecados de seus empregados, figuras públicas, a fim de não manchar a reputação do estúdio, além de fazer concessões nada corretas com figuras de papéis importantes na ordem social. Aliás, nessa via de bom cristão de Mannix, os Coen conseguem tecer mais outra crítica à religião em uma cena impagável onde quatro representantes de igrejas distintas discutem entre si.
A partir desses episódios paralelos, eles abordam diversos gêneros do cinema como musicais, westerns, melodramas e épicos religiosos. As referências são tão nítidas que é possível depreender de quais filmes se tratam. Não só os filmes, mas também a grande maioria de seus personagens encarnados por um elenco estelar.
Praticamente todos são representações de figuras que participaram daquele período em Hollywood. O próprio Eddie Mannix, retratado por um Josh Brolin muito inspirado, representa um produtor de longa data da MGM, E. J. Mannix. A personagem de Scarlett Johansson, DeeAnna Moran, é a atriz especializada em musicais aquáticos Esther Williams misturada em um drama vindo da vida de Loretta Young. Baird Whitlock de George Clooney, bem caricato e canastrão, é uma mistura de Robert Taylor com Charton Heston, ambos atores envolvidos em épicos religiosos como Quo Vadis e Ben-Hur. O sapateador vivido por CHanning Tatum é inspirado em Genne Kelly. As irmãs jornalistas de tabloides encarnadas por Tilda Swinton nada mais são que representações de Hedda Hopper.
Personalidades como Howard Keel, Carmen Miranda, o diretor Vincente Minnelli, roteiristas parceiros de Trumbo e a montadora Margaret Booth também são encarnadas com muita competência por Alden Ehrenreich, Rakph Fiennes e Frances McDormand. Aliás essa cena inspirada em Minnell, sua pompa e métodos de direção é espetacular pela insistência em uma frase que se revela um verdadeiro paradoxo na boca de Hobie Doyle. Ver o elenco claramente se divertir ao representar figuras tão polêmicas é algo verdadeiramente particular de Ave César.
Ainda trabalhando com essa vertente de quebra de máscaras para escancarar a hipocrisia de seus personagens, os Coen sempre conseguem demarcar bem os contrastes entre as atuações metalinguísticas com a verdadeira face dessas personagens, egoístas, estúpidas, mentirosas, invejosas, manipuladas até mesmo quando acreditam que estão manipulando. Personagens transformadas nos próprios produtos estereotipados, ridículos e caricatos que encarnam nas produções fictícias dentro da narrativa do longa. Como sempre, os Coen provam mais uma vez que são escritores geniais, pois a verdadeira genialidade reside, creio, em tornar o complexo em algo simples. Tudo isso acompanhado de uma verborragia impecável apresentada pelos diálogos refinados.
Como de costume, os Coen não são apenas escritores exímios, mas também diretores excelentes – embora eu considere sua escrita mais inspirada que a técnica da direção. Em Ave César, os dois parecem ainda mais inspirados. Isso se dá inclusive pela excelente metalinguagem de trabalhar o cinema com o cinema, ainda mais um tão característico como o dos anos 1950. Algum clima noir é sugerido pela narração over onisciente, mas o gênero não é relevante para o resto da fita. Nos enquadramentos, muitas vezes buscam pela sua centralidade trabalhando até mesmo a partir de uma ordem de filmagem simples resolvendo cenas com poucos planos.
Com isso, eles exploram um ótimo exercício de ponto de vista. Em diversos segmentos do filme acabamos assistindo um trecho de filme dentro dele mesmo. Não se limitando a esse olhar multiplicado, em uma cena em particular, os diretores formam quase toda a decupagem a partir do ponto de vista dos sequestradores.
Também a fim de frisar piadas, características já autorais marcam presença através de efeitos sonoros humorados ou quebras de atmosfera a partir do uso inteligente da comédia slapstick. Ou até mesmo pontuadas por uma repetição vinda pelos diálogos. Os Coen ainda trabalham bem a sugestão de metáforas ou em oferecer informações relevantes vindas através de seus cenários como o contraste da casa ornamentada dos sequestradores com a morada singela de Mannix.
Outro ponto relevante a se comentar são as ótimas coreografias dos dois números musicais que revelam uma vertente inédita do compositor Carter Burwell. Uma delas, impagável, sugere diversas conotações homossexuais entre marinheiros. Aliás, toda a trilha musical é muitíssima bem pensada repleta de melodias angelicais, poderosos hinos soviéticos e tons repletos de mistério inspirado em composições sofridas vindas de suspenses hitchcokianos – inúmeras referências também ao trabalho do mestre diretor. A edição de som também se destaca no número musical de Tatum.
Saindo de projetos complicados como Skyfall e Sicario, Roger Deakins esbanja talento em esquemas mais simples de iluminação. Aproveitando a diegese de 1950, o fotógrafo volta, enfim, a filmar abandonando um pouco sua predileção por câmeras digitais. O tratamento da luz busca o naturalismo, mais suave e difuso, quando o filme não retrata outra produção. Porém o melhor de sua fotografia acontece justamente na reconstrução do tão belo jogo de iluminação de três pontos repleto de altas luzes duras, pontuais que não tem vergonha de suas sombras declaradas ou de seus cenários totalmente iluminados típicos da Era de Ouro hollywoodiana. O grão presente é sofisticado a ponto de ser pouco notado. Por vezes, há o óbvio flerte com a cinematografia noir, mas de vertente muito delicada – um resultado belíssimo destinado à cena com Jonah Hill.
Como os Coen assumem todo o aparato cinematográfico em cenas dedicadas aos bastidores, é um deleite para o espectador ver como Deakins pensa na posição de seus fresneis e brutes encaixados em barracudas anexadas aos cenários. A cor também acompanha os gostos da época, bem saturada puxada para tons mornos. Porém não é apenas Deakins quem brilha aqui. O design de produção desse filme é maravilhoso trazendo vida à elementos que não costumamos ver em longas de época: aparatos cinematográficos. Nisso, temos os já citados fresneis, mas também câmeras Mitchell gigantescas, chassis blimpados, microfones, dollys, gruas, moviolas, megafones, cadeiras, objetivas, salas de projeção, luminárias, venezianas, entre diversos outros elementos pertencentes à produção cinematográfica daquela época.
Ave César é uma aula de História do Cinema com suas referências a diversos artistas envolvidos com a criação de filmes no fim da Era de Ouro hollywoodiana. Somos presenteados com a cinematografia absurda de Deakins que simula com perfeição as luzes rudes de 1940/50 assim como explora as tendências naturalistas que ele tanto gosta. Porém, muito além disso, Ave César funciona como filme por si só para àqueles que procuram uma boa comédia que tange elementos polêmicos de política, religião e bons costumes – elementos vindos de filmes como Fargo e Um Homem Sério. A jornada de Mannix e Whitlock é muito significativa apresentando algo a mais do que uma simples história, mas sim a transformação completa da justificativa de não apenas de sua existência, mas a afirmação das fábricas de sonhos e ilusões dessa arte chamada Cinema. É preciso somente um pouco de fé, mesmo quando ela falhe em aparecer na tomada definitiva.