Não é fácil ser o Batman nos cinemas. Certamente um dos personagens que passou por mais transformações ao longo de suas encarnações que vêm desde a década de 60, a icônica criação de Bob Kane e Bill Finger enferrujava em um limbo cinematográfico após o fiasco de sua última adaptação. De uma série de TV camp para uma versão gótica com Tim Burton, o Batman acabara nas mãos de Joel Schumacher, que foi responsável por alguns dos piores e mais vergonhosos momentos de toda a existência do Cavaleiro das Trevas, que atendem por Batman Eternamente e Batman & Robin.
Mas é irônico. Não fosse o festival de breguice e ridículo promovido por Schumacher, provavelmente a Warner Bros não teria voltado para a direção correta de tom com o personagem, que voltaria a seus tempos de glória novamente quando o cineasta Christopher Nolan embarcasse para um reboot sombrio e realista com Batman Begins, que acabou por ser um dos mais importantes filmes do gênero.
Contando pela primeira vez a origem do herói encapuzado nos cinemas, o roteiro de Nolan e David Goyer concentra-se na figura de Bruce Wayne (Christian Bale), que vê seus pais sendo assassinados em sua frente quando criança e assiste enquanto a cidade de Gotham City é engolida por taxas de criminalidade e corrupção aparentemente irremediáveis. Movido por um ideal de combater a injustiça, Wayne viaja pelo mundo e entra em contato com uma misteriosa Liga de justiceiros, onde iniciará o treinamento que lhe dará a força e conhecimento para tornar-se o vigilante conhecido como Batman e salvar sua cidade das mãos criminosas.
Para bem ou para mal (bem, no caso de Batman), é aqui que começa a história de sombrio e realista. Gotham não é mais uma paisagem expressionista com edifícios sinuosos e designs de Fritz Lang (ainda que as influências estejam ali, de forma mais crível), mas sim uma metrópole real que é castigada pelas lentes sombrias e alaranjadas do diretor de fotografia Wally Pfister. O Batman e todos os seus apetrechos são baseados em tecnologia real, e o filme preocupa-se em gastar alguns minutos para nos explicar como cada um desses funcionam, e até o Batmóvel tem uma justificativa consistente para sua existência – além de esmagar carros e perseguir bandidos, claro.
Até os vilões desse universo são inspirados em algo mais real, com os capangas cartunescos e monstruosos das versões anteriores sendo substituídos por organizações mafiosas e instituições corruptas que representam uma ameaça além de trocar socos. Ou seja, é uma abordagem muito próxima à de Frank Miller em seu Batman: Ano Um. E mesmo quando lidamos com algo um pouco mais fantasioso, como uma toxina alucinógena ou uma máquina emissora de micro-ondas, é tudo novamente muito bem justificado e realizado de forma a pertencer a este universo. O Espantalho, por exemplo, ganha uma encarnação completamente diferente de suas ilustrações nos quadrinhos, sendo um engravatado que veste a tenebrosa máscara para provocar medo nos pacientes de seu hospício e manipular conspirações. É uma ótima caracterização que reflete esse mundo mais realista, além de o Espantalho ser uma escolha certeira dos realizadores para uma trama de origem que se debruça sobre os efeitos e o poder do medo.
Mas o grande acerto é mesmo como Nolan e Goyer lidam com a figura de Bruce Wayne e seu alter ego. Não vemos a figura do Batman até cerca de 1 hora de projeção, e isso porque o roteiro da dupla explora muitíssimo bem o desenvolvimento de sua manifestação vigilante e a criação de um símbolo que vise usar seu medo pessoal de morcegos contra seus oponentes. É uma psicologia simples, mas usada de forma muito eficiente e com uma carga dramática muito acima de outras produções do gênero, de forma que, quando finalmente Wayne traja a ameaçadora roupa de Morcego, entendemos perfeitamente e uma poderosa catarse é sentida. Provavelmente não existe melhor história de origem de super-herói do que a contada aqui.
E muitos créditos devem ser dados a Christian Bale. A forma como o ator constrói um Bruce traumatizado e com uma nítida raiva interna esperando para explodir é sensacional, assim como a forma com que divide a personalidade quase esquizofrênica do sujeito, que transforma sua voz ao entrar na máscara ameaçadora de Batman. A confusão de Wayne também é bem explorada a partir de alguns desentendimentos com seu mordomo Alfred e sua falta de experiência com a vida dupla que sua nova carreira exige, forçando-o a criar a terceira persona de “Bruce Wayne, o bilionário”, que vem à tona na excelente cena em que o personagem finge estar embriagado a fim de causar constrangimento em uma festa.
E seguindo à risca o método de Richard Donner no primeiro filme do Superman, Nolan reuniu um elenco estelar para os papéis coadjuvantes. A começar com Michael Caine, que faz de seu Alfred Pennyworth uma figura caridosa, leal e com um senso de humor cínico acertado, sendo a perfeita companhia para o Wayne de Bale. No mesmo padrão, Morgan Freeman surge ótimo como Lucius Fox, responsável pela divisão de engenharia das Empresas Wayne (leia-se, o responsável pelos maravilhosos bat-brinquedos) e Gary Oldman surpreende na figura do incorruptível Jim Gordon.
Liam Neeson ganha a oportunidade de um papel difícil e dúbio na pele de Ra’s Al Ghul, cuja relação de mestre e aprendiz com Wayne rende bons momentos e Cillian Murphy impressiona pela frieza e calculismo de seu Jonathan Crane, o Espantalho. Só Katie Holmes que não convence muito como Rachel Dawes, interesse amoroso do protagonista – mas admito também que a personagem não é das melhores escritas. Não foi por acaso a substituição da atriz por Maggie Gyllenhaal na continuação, pelo visto…
Foi aqui também que Christopher Nolan realizou seu primeiro filme de grande escala. Saído dos thrillers Amnésia e Insônia, Nolan se aventura no espetáculo ao manter os pés no chão e seguir a regra do “tudo de verdade”. Logo, temos diversas acrobacias, trabalho pesado de dublês, perseguições de carro e até miniaturas. Desde a explosão real de um monastério do Himalaia até o colapso de um trem de monotrilho realizado com impressionantes miniaturas, Batman Begins não decepciona no quesito ação. As cenas com o Batman trazem um bem vindo uso de câmera na mão e montagem agressiva de Lee Smith, compreendendo o fato de que o personagem deve ser uma figura que se mescla com as sombras e que mal pode ser visto durante o combate.
Mais de uma década depois, Batman Begins ainda influencia diversos cantos da indústria audiovisual. É uma aula de como se readaptar um personagem e fazer cinema de quadrinhos com qualidade cinematográfica grandiosa e que transcende o gênero. Por incrível que pareça, era apenas o singelo início de uma trilogia inesquecível e de uma faceta épica de Christopher Nolan que só viríamos ver ser aprimorada ao longo dos anos…
Batman Begins (EUA/Inglaterra, 2005)
Direção: Christopher Nolan
Roteiro: Christopher Nolan e David Goyer
Elenco: Christian Bale, Michael Caine, Katie Holmes, Liam Neeson, Morgan Freeman, Gary Oldman, Ken Watanabe, Cillian Murphy, Rutger Hauer
Gênero: Ação, Aventura
Duração: 140 min