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Crítica | Black Mirror – 3ª Temporada

Finalmente!

Com o anúncio de que a Netflix produziria novos episódios da cultuada série britânica Black Mirror, todos os fãs entraram em frenesi e ficaram colados a seus próprios “espelhos negros” a fim de novidades e muita expectativa. Ainda com a presença de Charlie Brooker, criador e roteirista de todos os episódios da série, a Netflix nos presenteia com 6 novos episódios para a antologia de ficção científica social, com a confirmação de mais uma temporada chegando ano que vem.

Enfim, vamos ver o que a Netflix aprontou.

1 – Perdedor

 

A Netflix precisava mostrar a que veio em seu primeiro episódio de Black Mirror. É uma responsabilidade enorme preencher os sapatos de Charlie Brooker (responsável pela ideia deste episódio), e fico feliz em constatar que o serviço de streaming entendeu perfeitamente o espírito da coisa. Perdedor é um excelente início para a temporada e também, de todos os episódios da série até então, o que traz uma sátira e lição de moral mais relevante e importante para a sociedade contemporânea.

A trama tem início em um mundo onde todas as pessoas são avaliadas por um aplicativo conectado a seu smartphone e a retina. É possível ver todo o conteúdo que determinada pessoa compartilha virtualmente, desde citações, vídeos e imagens, e atribuir a estes uma nota de 0 a 5 estrelas, o que serve para construir a reputação pessoal de cada um: uma pessoa com nota 4.5 é beneficiada na sociedade, enquanto alguém com menos de 3 é praticamente um marginalizado. Nesse cenário movido por bajulação e falsidade, conhecemos Lacie (Bryce Dallas Howard), uma mulher nota 4.2 desesperada para mudar-se da casa de seu irmão, mas que só será possível se sua avaliação subir para 4.5. Assim, Lacie fará de tudo para atingir a nova avaliação.

Primeiramente, isso é genial. O roteiro de Rashida Jones e Michael Schur é tão certeiro em oferecer uma visão deturpada e caricata dos Facebooks e Instagrams da vida que é algo que parecia gritar para ser parodiado. Perdedor representa um dos grandes problemas da sociedade atual, com pessoas desesperada pela aceitação de estranhos e obcecadas em aprovação, onde uma realidade falsa é projetada virtualmente para ocultar os problemas do mundo real: quantas vezes alguém não “força” naturalidade em uma selfie apenas para simular um momento de falsa felicidade? Para a mera aceitação de outros? Perdedor vai muito além nessa discussão, onde praticamente todas as pessoas deste universo esboçam sorrisos forçados e risadas falsas, oferecem elogios gratuitos e gestos de educação exagerada. Não existe mais nenhuma naturalidade, tudo é feito em prol das notas. Ironicamente, muitos dos que trazem avaliações mais baixas são justamente aqueles que não se importam com esse “código da falsidade”, o que resulta em uma cena final extremamente reveladora e catártica.

A trama se desenrola em um arco envolvente onde Lacie é convidada para ser dama de honra no casamento de sua popular “ex-amiga” Naomie (Alice Eve), levando-a a uma jornada intensa onde a performance de Bryce Dallas Howard mostra-se impressionante. É curioso como sentimos repúdio das ações claramente tendenciosas de Lacie, mas somos compelidos a sentir pena de sua inevitável descida no poço. 

2 – Versão de Testes

Junto com Momento Waldo, Versão de Testes é um dos episódios de Black Mirror que menos se parece com Black Mirror. Não que isso seja algo ruim, mas é curioso encontrar essa história compartilhando espaço com as demais, mas também é interessante por nos mostrar o quão diversa a criação de Charlie Brooker pode ser.

Aqui, acompanhamos o aventureiro Cooper (Wyatt Russell), que tenta superar a morte de seu pai ao fazer um repentino mochilão pela Europa. Quando seu cartão de crédito é misteriosamente bloqueado e o jovem se vê sem condições para pagar sua passagem de volta para os EUA, ele aceita participar de uma experiência remunerada para uma conceituada empresa de games, que desenvolve um revolucionário jogo survival horror de realidade virtual. O aparelho realiza uma conexão com neural com Cooper, para descobrir seus temores mais profundos e projetá-los contra ele em uma experiência psicologicamente devastadora.

O que separa Versão de Testes de praticamente todos os outros episódios da série é a ausência de um comentário. Claro, temos uma visão destorcida e assombrosa do que o VR pode vir a representar aos gamers, mas não é essa exatamente o alvo de Brooker neste episódio. Afinal, não temos uma forte sátira sociológica ou sentimental como nos anteriores, sendo mais um episódio de sci-fi com forte inclinação para o terror. E isso não é nem de longe algo ruim, já que a direção de Dan Trachtenberg (revelação do excelente Rua Cloverfield, 10) comanda com maestria o suspense e o pavor que começam a circular o protagonista. O setting de uma casa antiga e solitária é a escolha mais óbvia para um game de terror, mas que funciona muito bem graças ao domínio de Trachtenberg do gênero e sua linguagem, sabendo construir com habilidade a atmosfera pesada e os sustos bem colocados.

Wyatt Russell também é outro fator que torna a experiência tão agradável. O filho do Kurt em pessoa já havia surpreendido com papéis menores em Anjos da Lei 2 e Jovens, Loucos e Mais Rebeldes!! e aqui tem a chance de segurar todos os 55 minutos de duração sem nunca deixar a bola cair. A persona animada e extrovertida de Cooper nos mantém a seu lado durante todo o tempo, e Russell mostra-se um grande ator ao demonstrar a lenta decaída do protagonista a seus terrores mais profundos – e seja no Reino Unido, seja nos EUA, Black Mirror ainda é capaz de nos fazer sentir mal pelas dores de seus personagens.

Infelizmente, é uma pena que essa condução magistral de Trachtenberg perca-se no velho clichê do “final falso”, um recurso artificial e trapaceiro com o espectador, e que acaba repetindo-se mais de uma vez durante a conclusão. Tirando esse deslize, é uma sólida experiência e que comprova mais uma vez que Trachtenberg e Wyatt Russell são dois nomes pra se ficar de olho.

3 – Cala a Boca e Dança

Infelizmente, sempre chega esse dia. É inevitável que uma série trilhe um caminho tão primoroso sem falhas, e Black Mirror encontra em Cala a Boca e Dança seu episódio mais fraco até então. Claro, ainda é um episódio eficiente e com incrível capacidade de chocar e envolver o espectador, mas é definitivamente muito abaixo do nível de Charlie Brooker, que aqui acaba preso a convenções e clichês que prejudicam fortemente a experiência.

A trama nos apresenta ao jovem Kenny (Alex Lawther), solitário e atendente em uma loja do bairro. Certa noite, sua irmã acidentalmente infecta seu notebook com um malware, levando Kenny a buscar um antivírus e se livrar da ameaça virtual. Para sua surpresa, o vírus provocou uma invasão misteriosa em sua webcam, que é controlada por terceiros para espionar o cotidiano de Kenny. Quando este acaba usando o notebook para masturbação, passa a receber diferentes mensagens em seu celular e notebook, onde anônimos ameaçam vazar o vídeo de seu momento íntimo a menos que Kenny faça exatamente o que as mensagens mandarem.

Convenhamos, você já viu essa história um milhão de vezes. Desde o irregular Controle Absoluto até o mais recente Nerve: Um Jogo sem Regras, a ideia de ser forçado a obedecer ordens de alguém escondido por trás de um celular já tornou-se antiga, e o roteiro de Brooker pouco pode fazer para tornar a trama original. Cada reviravolta é tristemente previsível e esperada, então não é nenhuma surpresa quando as ordens indicadas pelos misteriosos chantagistas envolvem atos criminosos, violência e por aí vai. Previsibilidade não é uma coisa que costumo esperar de Charlie Brooker…

Porém, a direção de James Watkins é eficiente ao manter uma tensão crescente e um ritmo ágil. A performance desesperada e apavorada de Alex Lawther também cria uma afetividade forte pelo personagem, mas a situação só fica realmente interessante quando Kenny acaba encontrando Hector (o ótimo Jerome Flynn), outra vítima dos nebulosos chantagistas, e os dois são forçados a trabalhar juntos para terem suas vidas de volta. A dinâmica entre Lawther e Flynn é o ponto alto, sendo capaz de render alguns momentos pontuais de humor em meio ao pânico.

4 – San Junipero

De cara, parecia a decisão mais ousada de Black Mirror: uma história ambientada nos anos 80. É uma proposta que vai contra tudo o que a série vinha apresentando desde então, narrativas distópicas que geralmente enxergam um futuro próximo, nunca o passado. Por isso, é muito estranho quando San Junipero tem início, e demora muito para que finalmente percebamos que esta narrativa de fato pertence ao universo de Charlie Brooker.

A história começa em uma noite de 1987 na cidade praieira de San Junipero, quando a tímida Yorkie (Mackenzie Davis) conhece a festiva e extrovertida Kelly (Gugu Mbatha-Raw) em uma danceteria local. As duas rapidamente se conectam e um pequeno romance se inicia, até o momento em que Kelly some repentinamente e começa a evitar Kelly aparentemente sem motivo.

É muito estranha a sensação dos primeiros 30 minutos ou mais de San Junipero. O texto de Brooker é o mais sentimental e humano do que qualquer outro episódio, mas a estranheza mesmo é causada pela ausência do fator Black Mirror ali. Por alguns instantes até desconfiei que a Netflix tivesse saído da exibição normal e estivesse nos mostrando alguma prévia da nova temporada de Stranger Things. Confesso que pode até tornar-se maçante, já que é um diálogo que almeja pelo naturalismo de um Richard Linklater ou Jim Jarmusch, mas que acaba seguindo sem um rumo claro – o que torna envolvente são as performances centrais de Davis e Mbatha-Raw, ambas excelentes.

Porém, passando pela metade, um dos personagens diz uma coisa que mudou o episódio completamente para melhor. Enquanto procura por Kelly, Yorkie encontra um colega que sugere que ela “a procure em outra época, como anos 90 e 2002”. Não vou estragar a surpresa do que vem a seguir, mas é quando finalmente descobrimos o “elemento Black Mirror” deste episódio e a genialidade de Charlie Brooker vem à tona, trazendo uma ideia realmente original e que serve à história romântica das protagonistas de forma inesperadamente afetiva.

5 – Engenharia Reversa

Depois da doçura de San Junipero, é hora de retornar às trevas do mero ser com Engenharia Reversa, outro episódio que também começa num território estranho para a série, nos apresentando a uma misteriosa “guerra” futurista onde soldados militares são enviados para caçar e matar criaturas conhecidas apenas como Baratas; explicadas ao espectador como seres humanos modificados por um vírus mortal e que tornaram-se se uma ameaça para a população. É quando conhecemos o soldado Stripe (Malachi Kirby), que, durante uma das missões para exterminar as Baratas, é afetado pelo dispositivo de uma delas e passa a sofrer estranhos efeitos colaterais que lhe fazem questionar toda a natureza de seu trabalho.

Não vale a pena revelar a twist do efeito provocado pelas Baratas em Stripe, mas posso dizer que é uma das propostas mais ousadas e corajosas de toda a série. Diz muito sobre a manipulação das massas e a cultura do medo, enquanto traz todo o aspecto de “tecnologia maligna” que Charlie Brooker sabe explorar tão bem, trazendo na figura do personagem de Richard Kelly um antagonista mais assustador do que as tais Baratas que movem toda a trama.

Vale destacar também a ótima performance do desconhecido Malachi Kirby como Stripe, trazendo toda a confusão e dor do personagem de forma crível e envolvente, enquanto a direção precisa de Jakob Verbruggen (mais conhecido por dirigir alguns episódios de House of Cards) é eficaz ao construir suspense durante as cenas de ação que envolvem a caçada dos militares às baratas ou os momentos mais lúdicos, como o programa de computador que permite que Stripe sonhe com uma mulher misteriosa (Loreece Harrison).

Certamente é capaz de provocar reflexões sobre muita coisa presente na política atual…

6 – Odiados pela Nação

Com impressionantes 90 minutos de duração, Black Mirror é praticamente elevado à categoria de longa-metragem com Odiados pela Nação, o ambicioso season finale da nova temporada que agora abraça o famigerado gênero policial para um conto cauteloso distópico derradeiro.

Aqui, somos situados em um cenário aparentemente contemporâneo. Com a exceção do advento de abelhas drone que desempenham um papel útil na sociedade, é um período muito similar com o nosso, especialmente no que se diz respeito à escrutínio online e a cultura do ódio que impera em praticamente todos os setores de comentários da internet. Tudo começa quando uma blogueira influente é misteriosamente assassinada, chamando a atenção das investigadoras Karin (Kelly McDonald) e Blue (Faye Marsay), que percebem que a vítima sofrera uma campanha pesada na internet que praticamente exigia sua cabeça, liderada por uma hashtag que ordenava sua morte. Dias depois, uma celebridade sofre o mesmo destino, também marcado pela presença da hashtag movida por uma campanha  expressiva nas redes sociais.

Exatamente, é um serial killer de hashtags. O jogo sádico idealizado por Charlie Brooker nos apresenta a uma campanha online que decide por voto popular qual pessoa irá morrer no dia escolhido. Certamente é a versão deturpada de todos os trolls e haters de internet, e Brooker os torna mais assustadores ao fazer de Odiados pela Nação um típico filme de mistério e de corrida contra o tempo, ganhando fôlego e suspense pela direção certeira de XX. Traz o clássico clima perturbador e as decisões erradas que tornam Black Mirror tão memorável, e ainda oferece uma metáfora fortíssima que envolve as abelhas drone.

Só peca mesmo pela excessiva duração. Não tem a necessidade de estender a trama para 90 minutos, o que acaba gerando muitas cenas arrastadas de exposição e mais personagens do que o necessário. Mas, no fim, é um season finale digno.

O futuro realmente sorri?

Black Mirror vive novamente na Netflix. Confesso que não se trata do melhor trabalho que traz o nome de Charlie Brooker, mas a nova temporada de sua antologia de tecnoterror traz momentos de verdadeiro prestígio e inspiração. Com a quarta temporada já agendada para o ano que vem, ficaremos no aguardo para mais vislumbres da visão pessimista de Brooker para o futuro.

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Publicado por Lucas Nascimento

Estudante de audiovisual e apaixonado por cinema, usa este como grande professor e sonha em tornar seus sonhos realidade ou pelo menos se divertir na longa estrada da vida. De blockbusters a filmes de arte, aprecia o estilo e o trabalho de cineastas, atores e roteiristas, dos quais Stanley Kubrick e Alfred Hitchcock servem como maiores inspirações. Testemunhem, e nos encontramos em Valhalla.

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