Deus, ao criar o homem, superestimou a sua capacidade- Oscar Wilde
A partir do fim da Segunda Guerra Mundial, o mundo começou a entrar na chamada Terceira Revolução Industrial, também conhecida como a Revolução tecno científica, que iria trazer diversas mudanças no âmbito econômico e também no social. A principal ideia desse novo processo que surgiu, e que até hoje se faz presente nas grandes empresas do mundo, é o uso em massa de tecnologia na hora da produção. O trabalho humano começa a ser substituído pelo uso de máquinas, com a intenção de fazer com que a produtividade das industrias aumentasse e que os custos diminuíssem.
Com o advento da terceira fase da Revolução Industrial, diversos ramos da ciência começaram a ter um avanço no número de pesquisas. Dois grandes exemplos são a biotecnologia, que tem como ideia a utilização de organismos vivos para modificar a produção de bens e serviços. Também temos a Engenharia Genética, que é o uso da tecnologia para fazer uma recombinação de genes, com o intuito de fazer um melhoramento genético, ou até mesmo criar novos seres vivos.
Mesmo esses avanços na produção e o surgimento de novas ciências terem provido diversos benefícios para o cotidiano, diversas discussões éticas-morais começaram a ser discutidos, e várias perguntas começaram a ser feitas. Seria correto o ser humano usar a tecnologia para tentar brincar de Deus? Quais os efeitos da alta mecanização do sistema capitalista, e quais são seus efeitos na natureza? O homem, cercado por tanta tecnologia, tem perdido sua humanidade e também se tornado apenas um produto mecanizado?
Essas discussões não são de hoje, sendo a muito tempo levantadas. E essas questões também permeiam o grande clássico do diretor Ridley Scott, Blade Runner-O Caçador de Androides, lançado em 1982, baseado na obra Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? de Philip K Dick. Apesar de ter recebido críticas mistas no seu lançamento, com muitos reclamando do seu ritmo extremamente lento, e não ter ido tão bem comercialmente, o filme com o passar dos anos, começou a ganhar um status de cult pelo público. Também se tornou o centro de várias analises de acadêmicos, devido a alta quantidade de temas filosóficos e criticas sociais existentes dentro da trama.
O filme se passa no ano de 2019, a futurista Los Angeles. A industria de tecnologia Tyrell Corporation é a responsável pela criação de seres sintéticos, conhecidos como Replicantes, que são fisicamente bastante parecido com os humanos, mas são mais fortes e inteligentes. Esses seres são usados em sua maioria em trabalhos escravos no planeta terra, e também passam a ser usados para explorar outros planetas, para que sejam no futuro colonizados. Porém, acontece um fato inesperado, e os Replicantes se rebelam contra a raça humana, provocando um motim em uma colônia fora da terra. O fato provoca represálias, e esses novos seres agora são considerados ilegais na Terra, sob pena de morte. Para poder patrulhar as cidades, é criado um grupo chamado de Blade Runners, que tem como função encontrar Replicantes escondidos no planeta, e executá-los, ato que é chamado de ” aposentadoria”. É descoberto pela polícia de Los Angeles, que um 4 grupo robôs conseguiu entrar dentro da cidade, então recrutam o Blade Runner aposentado Rick Deckard, para poder caçá-los.
No visual da Los Angeles futurista, percebemos uma forte crítica feita ao consumismo exacerbado, que estava se tornando já na época do lançamento do filme, intrínseco na sociedade. O crescimento do capitalismo exauriu os recursos naturais, trazendo grandes mudanças climáticas, onde percebemos que é quase impossível você conseguir ver a luz do sol, apenas fortes neblinas e uma chuva que parece não acabar mais.
Não apenas ambientais que foram as mudanças, mas também na fauna do planeta. Animais se tornaram tão raros, que agora muitos começam a ser produzidos, e igualmente aos replicantes, também em sua maioria são sintéticos. O alto dispêndio da sociedade também provocou um aumentos na discrepância social. Os ricos ou vivem em prédios altos, luxuosos, ou decidiram ir habitar nas colônias em outros planetas, para tentar fugir da situação degradante que agora a Terra vive. Podemos ver varias vezes na obra dirigíveis passando e anunciando uma ”nova vida” em outro planeta.
Enquanto isso a classe mais baixa habita o nível mais perto do chão, onde temos prédios em situações precárias, ruas extremamente lotadas e com alto nível de poluição. Vale notar que a maioria dessa ”ralé” são imigrantes chineses e indianos, uma representação da globalização que estava começando a acontecer, e também o fato do boom populacional que esses dois países estavam sofrendo. Para acompanhar a esse belo cenário do filme de Scott (acho que dificilmente vimos um filme do diretor onde ele não soube construir belos cenários), temos a fotografia escura de Jordan Cronenwenth, para dar ênfase ao pessimismo em relação ao futuro. Praticamente as únicas cores que vemos em Los Angeles são dos outdoors em Neon, que estão em toda parte, mostrando o quão consumista é a sociedade.
A fotografia não apenas reforça a temática triste que o filme quer passar, mas também ajuda a dar um tom de Noir para o filme. E podemos encontrar na obras varias características que permitem classificar essa ficção nesse estilo. Deckard, interpretado por Harrison Ford, é quase que um Phillip Marlowe do futuro, um detetive rabugento, que prefere viver solitário ao criar laços sociais. Temos a femme fatale, a Replicante Rachel, que se torna o interesse amoroso de Deckard. Mas o principal aspecto da obra que a faz ser considerada um noir é a moral ambígua, não existindo na obra uma definição objetiva de heróis ou vilões . A polícia é representada na obra como sendo fria, e não tendo quase que nenhuma empatia por aqueles que estão caçando, são quase que um reflexo da sociedade em que habitam. Deckard não é um herói, esta apenas servindo aos interesses da polícia, devido a sua experiência em lidar com os replicantes. Eldon Tyrell, o criador dos robôs, é mostrado apenas como alguém que possui interessex extritamente financeiros.
” O comércio é nosso objetivo aqui. Mais humanos do que humanos”
Ao afirmar isso, mostra o que ele pensava de suas criações, apenas algo que ele podia vender. E temos os Replicantes, que podem parecer vilões, devido aos seus atos de violência, mas se formos pensar, vamos lembrar o fato de que foram abusados pela humanidade, criados apenas para serem escravos. E depois de tentarem reagir a isso, foram considerados como ilegais, e a sua ” aposentadoria” ( é o nome que dão para a execução desses seres) foi outorgada sem pensar duas vezes. A violência foi a única maneira que encontraram para se protegerem daqueles que só pensavam em ser fazer mal, nesse caso os humanos. Existe até uma cena interessante que mostra isso. Deckard encontra um dos replicantes que se esconderam, e luta com ele, e ai então ele diz. ” É doloroso viver com medo, não é?”É quase que uma paródia ao conto da escritora inglesa Mary Shelley, onde a criatura de Frankenstein se tornou violenta devido ao ódio que enfrentou em seu caminho, inclusive daquele que a concebeu.
Entram em cena Roy Batti, aqui interpretado de maneira brilhante por Rutger Hauer, o líder dos Replicantes. Sua aparição vai ser como uma representação dos maiores questionamentos de nós todos. Ele busca um sentido para sua existência, não aceitando ser apenas um escravo, ele vai para a terra em busca de uma resposta para sua agonia. Então Scott faz uma analogia ao cristianismo, onde o Batti vai buscar a solução dos seus questionamentos junto a seu criador, igual quando um ser humano tenta buscar respostas em sua fé. O confronto com Tyrell é um dos momentos mais sublimes, pois nele, Roy descobre que a seu destino não será mudado, apesar de ser uma grande criação, ele não foi feito para durar. Então temos a personificação da filosofia existencialista de Sartre. O francês afirmava que a ” essência procedia da existência”, ou seja, ele considerava a ideia de sermos criados por um motivo, ou por uma força divina, vã e tola, e que nossas ações nos definiam. Roy ao perceber que aquele que seu criador não podia responder aos seus desejos, o mata. O ato é simbólico, pois representa o desligamento da criatura com criador, que não aceita o destino que lhe foi imposto, e quer a sua liberdade dos desígnios divinos.
Toda essa trama, que é a busca dos Replicantes por um sentido de sua existência, embarca na principal questão que o filme aborda, o que define um ser humano? No filme, os homens, como já dito antes, são pessoas frias, quase não conseguem demonstrar sentimentalismo ou empatia, sendo apenas guiadas por um extremo racionalismo. O crescimento da tecnologia acabou gerando a ideia de superioridade, o que levou o homem a achar que a natureza ao seu redor apenas serviria para ser dominada. Com esse mesmo pensamento, é que levou a engenharia genética a outro nível, e fez com que a Tyrell criasse os Replicantes. Esses seres são vistos como inferiores, pois são apenas máquinas, que foram criadas para servir e serem controladas, não conseguem ter emoções, demonstrar sentimentos. Para facilitar esse controle, são implantadas memórias falsas na cabeça deles, e junto a isso são entregues a eles fotos de passados de outras pessoas, para que se sentissem humanos, mais um exemplo de como os humanos em Blade Runner gostam de brincar de Deus.
No começo da trama, visto os atos de violência que os Replicantes estão cometendo, compartilhamos o pensamento de que estes são seres indignos da nossa pena, mas a nossa visão começa a mudar. Percebemos que esses seres sintéticos sentem apreço um pelo outro, são leais aos seus semelhantes, algo que seria impensável, visto a maneira que foram criados. A personagem Rachel, ao descobri que suas memórias são na verdade da sobrinha de Tyrell, chora, sente uma dor, porque agora ela não sabe mais quem ela é, e então se liga a Deckard, constrói um sentimento por ele, na tentativa de construir uma humanidade.
Esse questionamento sobre humanidade fica ainda mais forte na ultima cena, onde Roy salva Deckard da morte eminente, mesmo depois deste ter matado a sua parceira. Batti ao salvar aquele que antes era seu inimigo, demonstrou que tinha a consciência toda vida deveria ser preservada, e que matar não iria mudar o seu destino. Percebemos então que não é o fato de sermos racionais que diz se somos humanos ou não, é o fato de conseguirmos ter sentimentos por tudo ao nosso redor, desde semelhantes até a natureza. Antes de seu destino, Roy solta uma frase que expõe toda a filosofia que envolve a temática do filme.
”Eu vi coisas que vocês homens nunca acreditariam. Naves de guerra em chamas na constelação de Orion. Vi raios-C resplandecentes no escuro perto do Portal de Tannhaüser. Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer”.
O filme anda de maneira lenta, tendo preferência a cenas de teor mais dramático e filosófico as cenas de ação, o que diferenciava a obra das semelhantes ficções da época,e até mesmo foi um dos motivos não ter agradado ao público. Mas as cenas de ação da trama, mesmo poucas, são bem coordenadas por Ridley Scott. A cena da perseguição, onde Deckard tenta capturar a Replicante Zhora, interpretada por Joanna Cassidy, é feita de maneira alucinante, e tem um uso da câmera bem consciente. Temos também a cena de confronto entre o ex Blade Runner e Roy, que também é extremamente bem feita, e causa tanto aflição e êxtase para quem assiste.
A direção de arte do filme é um show a parte. A construção da Los Angeles futurista é bastante competente, conseguindo deixar a cidade dos sonhos e dos anjos. A estética lembra muito a fictícia Metrópolis, cidade futurista do clássico homônimo da ficção, do alemão Fritz Lang, e também traz inspirações do quadrinho NightHawks de Edward Hopper e da revista em quadrinhos francesa Heavy Metal. A trilha sonora do grego Vangelis consegue ajudar na atmosfera construída pelo diretor Scott. Ao mesmo tempo que consegue transparecer o ar futurista da obra, também ajuda a desenvolver o ar melancólico e triste que se faz presente na essência do filme.
Blade Runner não é um filme fácil de ser digerido. Eu pessoalmente não goste muito a primeira vez que assisti, apenas quando na segunda vez que vi o filme consegui captar o quão profunda e inteligente era essa obra de Scott. Mais de 30 anos após ser lançado ainda é um filme bastante atual, e que nos faz questionar como vai ser o futuro da humanidade, merece ser assistido por todos os fãs de ficção e todos aqueles que são fãs de cinema.
O MISTÉRIO SOBRE DECKARD
Existe um mistério que permeia a obra, que eu achei melhor tratar fora da analise do filme. Esse mistério é sobre a origem do protagonista do filme, o Blade Runner Rick Deckard, onde muitos acreditam que ele na verdade é um replicante. Essa discussão foi levantada devido a uma cena que foi exibida na versão do diretor, e que não estava na versão lançada no cinema. Nela, Deckard aparece sonhando com um unicórnio correndo sozinho numa floresta. A primeira vista, parece uma cena sem sentido dentro do filme, mas então, no final da trama, quando Dekcard volta para o apartamento depois do confronto, e acha um origami deixado pelo policial Gaff, personagem de Edward James Olmos, que tem a forma de um unicórnio, o que nos leva a pensar que o oficial conhece o sonho de Rick, e que então suas memórias seriam implantadas. Algumas outros argumentos reforçam essa opinião
. O fato de Deckard possuir muitas fotos em seu apartamento. Replicantes sentem apreço por fotos, pois os ligam com o passado, mesmo que inexistente, e os faz sentir mais humanos.
.Rachel pergunta a Deckard se ele já aplicou o teste Voight-Kampff em si mesmo ( o teste usado no filme para saber se o ser é sintético ou humano), e ele não responde
. Gaff desde o início não mostra nenhuma simpatia por Deckard, algo meio sem sentido. E após o confronto deste com Roy ele diz, ” Você fez um trabalho de um homem”.
. Replicantes são muito mais fortes fisicamente que humanos, então faria muito sentido colocar um Replicante para caçar seus iguais.
Creio que essa questão será respondida na sequência que será lançada essa semana.
Blade Runner, o Caçador de Androides (Blade Runner, EUA/Reino Unido/Hong Kong – 1982)
Direção: Ridley Scott
Roteiro: Hampton Fancher, David Webb Peoples (baseado em romance de Philip K. Dick)
Elenco: Harrison Ford, Rutger Hauer, Sean Young, Edward James Olmos, M. Emmet Walsh, William Sanderson, Brion James, Joanna Cassidy, James Hong, Morgan Paull, Kevin Thompson, John Edward Allen, Hy Pyke
Gênero: Ficção Científica, Drama
Duração: 117 minutos.
Texto escrito por Raphael Aristides