David Cronenberg é um realizador que, estranhamente, não recebe os méritos que merece em vida. Sua obsessão autoral simplesmente transformou os filmes de horror e ficção científica nos anos 1970 catapultando algumas ideias que renderiam verdadeiras obras de arte nas mãos de outros realizadores como Alien: O Oitavo Passageiro.
Seu primeiro longa-metragem oficial para os cinemas foi justamente Calafrios que apresenta diversas das características que o tornariam famoso. Cronenberg popularizou histórias sobre mutação humana, infestações de doenças venéreas, o medo da possessão embrionária com vermes que subjugam a vontade dos hospedeiros, além da abordagem destemida sobre a sexualidade impulsiva e doentia.
Eros, Logo Existo
Apesar de Calafrios ser um filme de horror B e nitidamente mal executado em diversos pontos, sua proposta é originalíssima esbanjando potencial. Cronenberg, sem a menor noção de desenvolvimento narrativo, demora uma eternidade para exibir sobre o que se trata a obra. Apresentando o local onde os eventos ocorrem, o diretor/roteirista utiliza toda a sequência de créditos iniciais para apresentar o condomínio Starliner, o mais luxuoso da região possuindo uma infinidade de atrativos, além de um próprio complexo de comércio local para manter os habitantes abastecidos já que o prédio foi construído em uma ilha desabitada.
Com a questão do isolamento já bem definida, o roteirista então elabora um misterioso assassinato ritualístico em um dos apartamentos que posteriormente é justificado sob pesada exposição revelando para o espectador o que ele estará prestes a ver. Um médico insano realizou experimentos de cruzamento genético em vermes parasitas tropicais para gerar a criatura perfeita. Quando adulta no hospedeiro, deixa suas vítimas em um estado completamente selvagem em busca de sexo para conseguir iniciar o ciclo de sua reprodução.
O médico misterioso deseja uma sociedade na qual todo o caos aconteça em uma enorme orgia apocalíptica. Porém, arrependido, tenta eliminar sua criação que, infelizmente, já se alastro em alguns dos habitantes do prédio condenando todos que moram ali.
A linha narrativa realmente é bastante original pela proposta de vermes que forçam estados de êxtase sexual nos hospedeiros, mas o desenvolvimento dessa proposta é uma das mais genéricas e inconsistentes que Cronenberg realizaria em sua carreira. De modo geral, o cineasta apenas mimetiza A Noite dos Mortos-Vivos, eterno clássico de George Romero. Apesar de ser funcional e entrar no rol da infinidade de cópias da obra-prima de Romero, Cronenberg se vale de uma estrutura mais expansiva, já que a maioria dos personagens são descartáveis e igualmente desinteressantes.
Para inchar o longa, o diretor acompanha diversos pontos de vista conforme os vermes se alastram pelo prédio a procura de novos hospedeiros. E, infelizmente, essas sequências geralmente são vergonhosas pela mão pesada do realizador ao exibir os personagens reagindo às ameaças tanto na forma do próprio verme pequenino quanto dos humanos já infectados. Basicamente, quase ninguém reage para se defender, apenas aguardando o doloroso destino enquanto gritam congelados no mesmo lugar. Isso só não ocorre com a figura mais próxima que temos como protagonista, o médico Roger.
De resto, principalmente com as mulheres, temos a mesma repetição cênica toda vez que surge um ataque tornando o filme em uma das experiências mais maçantes possíveis para o espectador. Cronenberg também cai nos vícios de realizar diversas más escolhas com o roteiro ao escrever tantas decisões estúpidas para os personagens que insistem em ficar separados ou ignorar informações já recebidas sobre como se prevenir da ameaça dos parasitas mutantes.
Isso afeta bastante o protagonista que, devido a sua completa burrice – ironicamente taxado como um dos “melhores profissionais do mundo”. Como boa parte dos personagens são desconhecidos e reagem de modo robótico às ameaças – o elenco oferece desempenhos risíveis na maior parte do tempo, não existe o menor senso de ameaça e, por consequência, toda a criação de suspense muito adequada na técnica, acaba não funcionando.
Além disso, Cronenberg tem o péssimo vício de mudar constantemente as regras da infecção. A cada cena, parece que o diretor ofereceu direções distintas para o elenco resultando em reações totalmente discrepantes. Alguns se comportam como zumbis violentos à procura de vítimas para estuprar – isso leva a outro problema de consistência do roteiro, enquanto outros seduzem terceiros de modo plenamente consciente. Na teoria, que de fato é mesmo muito interessante, o parasite envolve atos eróticos, mas não existe erotismo no estupro. Nas cenas que alguns hospedeiros tentam seduzir, de fato, Cronenberg é eficaz em criar certa atmosfera sensual.
As distrações constantes por conta do roteiro ruim repleto de personagens inexpressivos, além do ritmo excessivamente arrastado, acabam ofuscando boa parte do bom trabalho do cineasta na direção de Calafrios. Já tendo trabalhado com alguns curtas e filmes para a televisão, o diretor já não era tão amador enquanto aparenta em algumas cenas péssimas de dramaturgia, mas há certo cuidado excepcional de Cronenberg em diversas áreas técnicas que fascinam o espectador em certos momentos.
O primeiro deles está logo com o tratamento curioso com a câmera que ora se comporta de modo bastante clássico, ora mais livre com a abordagem instável da câmera na mão. Há uma grande preferência em criar tensão através de planos longos com alta profundidade de campo, revelando aos poucos alguém ou algo se esgueirando por trás da vítima, além de certo cuidado maior com a iluminação de cenas realmente sombrias. É um capricho estético que tira o filme da normalidade e mostra que Cronenberg demonstrava carinho com a produção, principalmente com os efeitos práticos impressionantes para os vermes animatrônicos.
Porém, muito de sua direção pode ser encarada com despreparo e mal gosto estético, aqui incluso o efeito horroroso de slow motions incorretos. Boa parte do filme sofre com falta de atmosfera e um olhar cinematográfico mais apurado, se tornando apenas mais uma obra genéria visualmente dentre uma vasta seleção de filmes de horror B da época.
Inspiração para o Amanhã
É um fato que Calafrios não se trata nem mesmo de ser um filme medíocre. É uma obra majoritariamente ruim, brega e pouco divertida. Mas há esse ponto de originalidade na ideia que catapultaria sempre a carreira de David Cronenberg a perseguir e explorar mais seus sonhos absurdos e surreais, além de impulsionar a industria sobre a fascinação com parasitas e vermes que acabariam rendendo toda a franquia Alien e o fantástico O Enigma de Outro Mundo. Ou seja, até mesmo nas piores experiências, é possível achar algumas preciosidades que podem render verdadeiras pérolas.
Calafrios (Shivers, Canadá – 1975)
Direção: David Cronenberg
Roteiro: David Cronenberg
Elenco: Paul Hampton, Joe Silver, Lynn Lowry, Allan Colman, Barbara Steele
Gênero: Terror, Ficção Científica
Duração: 87 minutos.