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Crítica | Capitão Fantástico

Ah, a vida no campo. O contato com a natureza. Viver com o verde, livre das amarras das leis, livre da poluição da cidade cinzenta e do estresse do trânsito. Esse sonho por Pasárgada é antigo. Porém foi em 1950, em contexto pós-guerra, que uma nova filosofia de vida, remetendo aos sonhos idílicos surgiu. Eis a geração beat: os beatniks. O termo foi cunhado por Jack Kerouac, um dos símbolos máximos do movimento. Pregavam a subversão do materialismo, da fuga dos afazeres cotidianos castradores do ciclo escola-trabalho-futuro-vida doméstica.

O movimento ressuscitou com força o naturalismo de Thoreau, dessa busca intensa de contato com a natureza, de viver em nomadismo e fugindo e condenando totalmente a sociedade capitalista. No contexto dos beatniks, o consumo de drogas, desobediência civil, anarquismo, ecologia, as caronas, os cafés e a vida desregrada lançaram esse novo modelo de vida. O curioso é que essa ideologia anti-capital, gerou exatamente o efeito contrário: apenas reforçou uma nova indústria de produtos para esse nicho de pessoas que, querendo ou não, consomem muito.

Capitão Fantástico é justamente um desses produtos sedutores de venda de sonhos idílicos, afinal a geração e o movimento beatnik ainda não morreram. Vez ou outra, temos filmes que abordam o tema. O mais famoso deles é Na Natureza Selvagem, um dos longas favoritos de muita gente assim como esse deve se tornar. E não é por mero acaso. O movimento seduz pelo imaginário popular em crer em uma vida mais saudável, natural e feliz no campo.

Porém este filme é muito mais do que apenas um elogio ao modo naturalista de viver. Ele aborda questões cruciais ao fazer um jogo inteligente.

Estudo de natureza

O roteiro do também diretor Matt Ross segue o caminho inverso de Na Natureza Selvagem. Não partimos de um homem cansado da vida da cidade seguindo caminhos perigosos em direção a natureza, mas sim uma família inteira que vive isolada na floresta sendo confrontada ao chamado da cidade.

A história gira em torno de Ben, um homem que vive com seus seis filhos completamente isolado da civilização. Ben e sua esposa construíram um paraíso para sua família. Vivem longe de qualquer centro comercial. Tudo é construído por eles mesmos, comem o que a natureza provê seja na plantação ou na caça. Porém viver em um paraíso não é fácil.

Ben faz com que seus filhos estudem filosofia, ciências diversas, história, geografia e literatura. Não somente o treinamento intelectual é importante, mas como os exercícios físicos diários que o homem submete nas crianças. É uma criação implacável. Porém, com a morte de Claire, a mãe das crianças, Ben é confrontado com a realidade de ter que partir em uma jornada para o velório de sua mulher.

Recluso por tantos anos e com as crianças que nunca tiveram qualquer contato com a civilização, Ben terá que tomar escolhas difíceis que revelarão o verdadeiro sentido da paternidade.

O que Ross faz é o mesmo tipo de narrativa que mais acomoda o espírito beatnik: é uma narrativa de viagem, um road movie. O roteirista faz tudo didaticamente para explicar como funciona aquela família nada convencional, sobre seu modo de pensar e do respeito sobre a pluralidade de ideias dos diferentes integrantes. Porém, ao mesmo tempo que o protagonista ensina diversos elementos importantes de educação, fica nítido que ele não tem o menor traquejo social ao dar a notícia do falecimento da mãe dos garotos.

É justamente ali que começa a fundamentar os conflitos que permeiam o longa em sua totalidade – mesmo que muitos deles se provem completamente artificiais na conclusão do terceiro ato. São seis filhos e basicamente, apenas dois criam os conflitos que movem a trama. Bo, o mais velho, tem interesse em ingressar nas faculdades que ele foi aceito. Já Rellian discute que odeia a vida “natureba” que a família leva, quer participar de um círculo social mais padrão, uma sociedade capitalista para poder ir à escola, jogar videogame, fazer coisas que crianças normais fazem.

São conflitos genuínos que forçam o estudo do personagem de Ben, afinal Ross não oferece muito backstory para a vida regressa do casal. O que interessa ao roteirista é o aqui e o agora. O protagonista tem completa aversão à civilização do modo que nós conhecemos, além de abominar feriados religiosos – o alvo é o Cristianismo, como sempre. É um personagem problemático, com certeza. E assim como em Na Natureza Selvagem, o filme tenta construir um discurso que mostre o quão egoísta é o personagem ao suprimir a vontade dos demais.

Além dos conflitos com os dois filhos – as demais crianças praticamente não servem para muita coisa até o clímax do filme, Ben entra em colisão contra seus sogros sobre o modo que farão o cortejo fúnebre de sua ex-mulher. Para piorar sua situação, os avós Jack e Ellie decidem que querem a guarda das crianças, as tirando do modo de vida considerado impróprio.

O curioso é que Ross nitidamente constrói um discurso favorecendo o lado do protagonista, da vida idílica e perigosa no ermo. Para não ofender demais a base com o pedantismo do personagem, o diretor tenta criar esse jogo de “extremos” entre os dois lados: o selvagem vs. doméstico.

Civilização vs. Natureza

O jogo de opostos é óbvio. Porém, o diretor, explicitamente, através dos diálogos, favorece o discurso naturalista anti materialista do protagonista. Enquanto as pessoas que vivem em civilização são detestáveis, burras, egoístas, ignorantes, obesas, indelicadas ou falsas, a família de Ben é educada, muitíssimo inteligente, culta, sabem diversos idiomas, apta a sobreviver na selva pelo rigoroso treinamento militar, em forma e possui diversas habilidades com diferentes artes.

Para nivelar o jogo, Ross indica que os filhos de Ben, mesmo lendo sobre tudo, são extremamente alienados com o convívio social. Porém, como disse, isso nunca é feito de modo degradante ou para firmar conflitos importantes entre os integrantes da família. Quando a alienação surge, geralmente é feita para injetar comédia no filme. Nunca como um fator limitador. Seja durante o flerte de Bo com uma garota normal ou das crianças se espantando com alguns jogos violentos.

O interessante do roteiro de Ross é tirar o protagonista da zona de conforto. Enquanto a história pode ser óbvia e ter viradas clichês, incluindo sua catarse, o estudo do personagem protagonista vale o ingresso. Há uma jogada inteligente com a personagem de Claire, a esposa morta. Devido algumas informações da narrativa, o roteirista põe em cheque tudo que os pais da moça e Ben dizem a respeito de suas vontades no testamento.

Então a narrativa conspira contra todos deixando ao critério do espectador o que tomar como verdade, pois a todo momento as ideias dos dois lados entram em conflito devido às ações tomadas pela mulher antes de morrer. O legal do desenvolvimento de Ben reside em sua enorme resistência em defender a sua ideologia e modo de viver, apesar das inúmeras investidas que tentam provar o quão errado ele está.

Como o personagem é bem desenvolvido, ocorre a clássica transformação ao final, porém de modo light, afinal o diretor não quer detonar o discurso do filme – é um morde assopra.  Entretanto, enquanto o terceiro ato completa o personagem, ele é extremamente covarde ao arruinar todos os conflitos criados até então, infelizmente.             

Digamos que ele tenha exatamente o mesmo problema do final de O Quarto de Jack. Resolve um conflito muito complexo de modo banal, praticamente um deus ex machina. A diferença é que Capitão Fantástico não é narrado a partir do ponto de vista de uma criança. Já sobre o tratamento com outros personagens, sejam as irmãs ou com as crianças mais novas, é uma metáfora inteligente da disputa dos irmãos mais velhos com o pai pelo domínio do grupo – assim como em diversos grupos de animais selvagens como hipopótamos ou leões.

Direção indie, mas nem tanto

Matt Ross é um diretor estreante de longas metragens. É um ator de seriados muito famoso, por sinal. E a partir desse contato com tantos diretores e diferentes linguagens, mostrou um trabalho promissor – ainda que o filme clame por uma indicação ao Oscar. Ross pega muitos conceitos da direção de filmes independentes. Toda sua encenação exala esse nicho cinematográfico e realmente é algo bem feito.

Seja no trabalho criativo dos atores mirins, da liberdade de linguagem com técnicas coerentes ao tipo de narrativa retratada – câmera na mão, contemplação, trilha musical característica, montagem ritmada, atmosfera excêntrica, etc – Ross realiza um bom trabalho. Pensa nos detalhes dos figurinos de cores vibrantes, da maquiagem e do nome dos personagens para torná-los essencialmente únicos.    

Infelizmente, Ross tem a mão pesada demais para saber dosar a mensagem bastante enviesada de seu filme. Porém, mesmo assim, o diretor tem seus lapsos de genialidade.

Isso ocorre através do contraste inteligente entre imagens diferentes sobre uma mesma ação. Na primeira, temos Ben tomando um banho nas cataratas que praticamente castigam seu corpo. Mesmo com a tremenda força da água, Ben não se resigna. Ele demonstra sua força diante a natureza. Já próximos ao fim do filme, o diretor retoma. Vemos o protagonista tomando um banho por um chuveiro, com águas tranquilas, gentis, civilizadas. Porém, devido diversos acontecimentos, temos o personagem já curvado, com o espírito fraco.

É uma boa síntese para marcar pontos-chave para interpretarmos o personagem.

Capitão Interessante

Capitão Fantástico é mais um filme derivado de fantasias naturalistas que ressuscitam o espírito de Thoreau e Jack Kerouac. Para quem gosta desse tipo de narrativa e sonha com uma vida idílica na natureza, certamente é um prato cheio. Não se trata, obviamente, de um filme de comédia, apesar da presença tímida de humor. O longa é um drama bastante ideológico de discurso consideravelmente enviesado.

Porém, ao ignorar a mensagem do filme e reconhecer os esforços de Matt Ross em tentar nivelar a balança dos extremos, é capaz de encontrar um ótimo filme sobre estudo de personagem: de um homem que precisa remover seus filhos – e si mesmo, da Caverna de Platão que ele mesmo criou.                                              

Ironicamente, a obra de Ross consegue ser justamente o que seus personagens mais abominam. Durante um diálogo sobre Lolita, Ben pede uma análise para a filha que classifica o clássico como “interessante”. O homem, enfurecido, a repreende dizendo que interessante não é uma classificação decente para qualquer coisa.

Bom, Capitão Fantástico é um filme interessante.                                                                                                                                         

Capitão Fantástico (Captain Fantastic, 2016 – EUA)
Direção:
 Matt Ross
Roteiro: Matt Ross
Elenco: Viggo Mortensen, George MacKay, Samantha Isler, Annalise Basso, Nicholas Hamilton, Shree Crooks, Charlie Shotwell, Trin Miller, Kathryn Hahn, Frank Langella, Erin Moriarty
Gênero: Road Movie, Drama, Comédia.
Duração: 118 min.

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Publicado por Matheus Fragata

Editor-geral do Bastidores, formado em Cinema seguindo o sonho de me tornar Diretor de Fotografia. Sou apaixonado por filmes desde que nasci, além de ser fã inveterado do cinema silencioso e do grande mestre Hitchcock. Acredito no cinema contemporâneo, tenho fé em remakes e reboots, aposto em David Fincher e me divirto com as bobagens hollywoodianas.

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