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Crítica | Carros 3

É inegável. A Pixar sofreu mudanças profundas em seus, até então, dogmas. Apesar da primeira sequência de Toy Story, era praticamente lei priorizar histórias originais que sempre desafiassem a equipe criativa do estúdio a nunca estacionar na zona de conforto. Mesmo que quase todos os dezoito filmes sempre contenham uma dose de “fator Pixar”, algumas obras deixaram bastante a desejar. É praticamente um consenso que os filmes Carros marcam os trabalhos mais decepcionantes da louvada produtora. Porém, Carros 3 chega para mudar esse senso comum.

Na verdade, há muita coragem envolvida nessa terceira incursão na franquia Carros. Enquanto o primeiro filme continha audácia em sua conclusão, o segundo caminhou para uma narrativa de espionagem completamente alheia a mitologia do universo, além de marcar a primeira vez que o estúdio apostaria em uma obra guiada pelo coadjuvante do original – isso se repetiu com Procurando Dory.

Entretanto, a parte final da trilogia indica um amadurecimento que dificilmente acreditaria ver em Carros. Aliás, é algo bastante corajoso, pois se trata de uma das marcas mais infantis da produtora, mas todo o conflito dessa obra é bastante abstrato para muitas crianças. Em si, os filmes da Pixar se comunicam bem com o público infantil por conta da natureza universal de seus dramas: seja um embate de inveja como em Toy Story, o drama entre pai e filho de Procurando Nemo, as amizades improváveis por conta de preconceitos de uma sociedade como visto em Monstros S.A. até a aceitação plena da necessidade da tristeza na vida de cada um em Divertida Mente.

Carros 3 certamente encontrará alguma dificuldade em mesmerizar o público infantil. Aliás, até imagino que muitas crianças sairão decepcionadas.

O Tempo Voa…

…E Relâmpago McQueen sente isso na principal proposta do argumento do diretor Brian Fee e mais três pessoas para essa narrativa que conclui a trilogia mais rentável da Pixar até agora. Aqui, McQueen sente o peso da idade. Quase sempre dominando as pistas, não há real desafio para o fenômeno das corridas. A pista vira um terreno de convívio social, entre amigos, de diversão e terapia para McQueen.

Porém, a chegada de um carro novo, mais tecnológico e treinado com simuladores chamado Jackson Storm inicia uma virada no jogo. Diversos outros competidores antigos são substituídos pelos companheiros high-tech de Storm. E McQueen perde, perde e perde. Por fim, também perde o temperamento, age impensadamente na vã tentativa de ganhar a corrida e acaba sofrendo um terrível acidente que pode trazer sua aposentadoria. Tentando recuperar a confiança perdida, McQueen se submete aos treinos de Cruz Ramirez, sua personal trainer, para conquistar uma última vitória.

Existe a audácia boa e exista a burra. Estranhamente, o texto de Carros 3 consegue atingir esses dois extremos ao mesmo tempo. A pura verdade é que a temática desse filme é muito abstrata para o seu público-alvo, mas traz mensagens interessantes para os adultos que as acompanharem no cinema.  

Este Carros traz um debate sobre aposentadoria no esporte, sobre os limites de cada esportista e saber a hora de parar. Temas pertinentes, interessantes e totalmente alheios com o que essa franquia representa. Apesar da justificativa do fracasso de McQueen se centrar na obsolescência da tecnologia que compõe seu corpo, é completamente injustificado dentro da história a completa inexistência de alternativas que permitissem um upgrade em seu modelo, o colocando como um adversário formidável para o vilão. Mas, ironicamente, em Carros, cada carro é um carro absoluto, sem possibilidade de modificações que aperfeiçoem o desempenho.

Em vez de seguir esse rumo que seria familiar às propostas dessa trilogia, Carros 3 escolhe a típica narrativa do underdog assim como foi feito em Rocky 3, 4 e Rocky Balboa (principalmente este). Acompanhamos o árduo treinamento de McQueen para recuperar a glória de outrora, mas optando por seguir os passos nada ortodoxos da novata Cruz Ramirez (dublada por Geovana Ewbank carregando excessivamente no sotaque). Porém, por conta do sacrifício, o protagonista sente saudade de casa e de seus amigos, além de relembrar a todo instante do seu antigo mentor, Doc Hudson.

Aliás, esse é um ponto importante da história. A Pixar optou por matar o personagem quando Paul Newman morreu antes mesmo da estreia do primeiro filme. Agora, isso certamente deixará as crianças um tanto perdidas, já que os roteiristas tratam isso tudo com panos quentes, nunca deixando claro o motivo de Doc ter falecido na narrativa – o diretor tenta resolver isso com inserções de sonhos ternos nos quais McQueen imagina a presença de seu amigo e mentor.

É justamente nessa abordagem intimista de McQueen interpretar as motivações de seu mentor que os roteiristas desenvolvem o protagonista. Afinal, o que vale mais? Correr para sempre ou pendurar as luvas? Diversas sequências mostram os limites de McQueen enquanto ele mesmo passa a virar tutor da sua personal trainer ao decidir treinar no interior dos EUA em uma viagem até a Flórida, lugar onde acontece a corrida final.

Logo, há essa inversão de papeis de treinadores em uma boa experiência de troca de conhecimentos. McQueen também já é um personagem bastante diferente, mais humilde e menos aficionado à pista. O dito “vilão” da história, Storm, é basicamente um espelho do temperamento arrogante do personagem no primeiro filme – um fantasma personificado do passado caindo na velha máxima de “o seu maior inimigo é sempre você mesmo”.

E realmente, nessa questão, a Pixar vai fundo em desenvolver McQueen. Ele é o crowd pleaser da franquia e foi satisfatório ver tanta atenção para uma nova jornada de amadurecimento. O problema, talvez, resida no total esquecimento dos outros personagens queridos da franquia como Sally e Mate. É um espaço reduzido que tira humor e personalidade dessa história porque os novos personagens nunca cumprem o vazio deixado pelos outros.

A começar com a coadjuvante principal Cruz Ramirez. Ela toma uma importância enorme no clímax da obra e, sim, é sugerido que algo importante aconteça com ela. Mas é uma virada inacreditável que pode deixar muita gente frustrada com a conclusão da obra. O fato é que há muito pouco que sustente a personagem, pois todo o trabalho é focado em McQueen. Há algum backstory para ela, mas trata-se da mesma relação fã-astro genérica que marca diversos outros filmes.

Já Luigi e Guido, os únicos da velha guarda que acompanham McQueen, recebem menos trabalho ainda. Viram meros acessórios para auxiliar algumas sequências de treinamento, nunca colaborando de fato a jornada psicológica e o luto que o protagonista passa. Entram mudos e saem calados, fazendo as mesmas piadas em duas cenas. O novo personagem símbolo do passado, Smockey, também não recebe tratamento satisfatório, mas ajuda McQueen a atingir a catarse.

A Sabedoria Mística do Interior

Outra característica muito curiosa de Carros 3 é o seu elogio e crítica aos costumes interioranos do sul americano. Quando enfim os personagens começam a jornada para o treinamento “raiz” de McQueen, sem parafernalhas tecnológicas, o filme começa a se lembrar que se trata de uma obra infantil. Claro que o texto, apesar do tema complexo, não é denso a ponto de perder a atenção das crianças, mas o ritmo sofre bastante com sequências de corrida cada vez mais espaçadas.

Existe ação e carisma, mas os treinamentos em si não são exatamente corridas. Logo, há uma carência de set pieces para fazer o público infantil vibrar. A que surge no meio visa expandir o universo com a disputa de Thunder Hollow que é uma arena para carros se destruírem em competição (um UFC de carros?). A sequência é bipolar, pois é sombria demais para agradar a criançada e estúpida demais com personagens histéricos para os adultos. A ação que Brian Fee organiza também é bem confusa, não dando margem para uma apreciação melhor do que acontece em tela.

Já as outras novamente envolvem o treinamento de McQueen na cidade do mentor de Doc, Smockey, para enfim chegar aos finalmentes com o clímax da obra. Entretanto, novamente o segmento repetido de treino se sustenta por aprofundar mais a relação de Doc com McQueen revelando novas características da amizade.

É justamente aqui que as sutilezas surgem já justificando a virada inacreditável da corrida final.

Sob Nova Direção

Já era mais que hora para o gênio John Lasseter deixar a direção de Carros. A mudança para Brian Fee é sentida e bastante bem-vinda, apesar da confusão visual que ele cria para cenas de ação – as de corrida são os espetáculos visuais e sonoros de sempre.

O legal é o fato de Fee respeitar algumas marcas já icônicas da franquia vindas de Lasseter. O começo do filme acompanha a clássica preparação psicológica de McQueen enquanto interpola com rápidos planos de carros cruzando em alta velocidade. O efeito de nostalgia surge na hora. O mesmo começo eufórico visto no primeiro filme ilustra a alegria de McQueen em correr sempre com seus amigos.

Em uma sacada convencional, a música licenciada rapidamente é substituída pela trilha do ótimo Randy Newman quando o jogo começa a mudar com a vinda dos novos competidores high-tech. Depois, Fee assume uma função meramente descritiva para a câmera, sem inventar muitos floreios na linguagem simples da obra.

Claro que o momento tão alardeado, a do acidente que o protagonista sofre, é fortíssima. Com McQueen surgindo no topo do plano, já desmaiado, rodopiando em piruetas no ar até cair no chão em slow motion. O ponto alto de Fee é a atenção no olhar dos personagens. Certamente, Carros 3 oferece o insight mais valioso na expressividade desses veículos tornando todo o drama de McQueen muito mais realista e de rápida empatia.

Nesse domínio de clima e atmosfera, é difícil também ficar indiferente a recorrência constante à Doc Hudson. As memórias, sempre coloridas e de iluminação angelical, contrastam com a realidade mais opaca de um mundo onde correr já não é mais tão divertido. Até chegar na explosão de cores vivas no fim, o caminho por praias nubladas e cidadezinhas encobertas por névoa é constante. Aliás, essa névoa se dissipa após uma das catarses de McQueen. Logo, é uma singela analogia para o estado de ignorância e insistência do protagonista.

Pode parecer estranho, mas a qualidade de texturas e luz, apesar de ainda soberba, não consegue superar o trabalho visto em Dory ou O Bom Dinossauro. Até mesmo se comparada a Carros 2, dono de uma direção de arte estupenda, esse filme fica empalidecido, infelizmente. Os cenários fotorrealistas ainda capturam a beleza interiorana americana, além de Fee fazer uma jogada legal de montagem durante uma das sequências que mostram os carros viajando estrada a fora. Aliás, importante dizer que esse Carros é o mais NASCAR da franquia. Desde referências muito obscuras sobre lendas esquecidas do esporte até extrema fidelidade na física da pista ovalada, dos detritos diversos e das regras da corrida. Uma atenção que realmente destaca esse filme dos demais.

Uma das principais deficiências do diretor, portanto, é essa falta de coesão entre o visual e a proposta vinda pelo texto. Isso envolve diretamente McQueen. É claro que existe um contraste entre ele com os modelos novos que dominam as pistas, mas é bastante abstrato o conceito dos fracassos do personagem sendo que o seu visual continua o mesmo dos seus dias de glória. Envelhecer um pouco a lataria do personagem teria potencializado essa questão da idade tão martelada na história.

Carros para Adultos

Longe de ser a melhor obra da Pixar, Carros 3 tem suas doses de carisma e emoção pela bonita mensagem de altruísmo. Porém, como apontado anteriormente, seus problemas são graves, principalmente pelos segmentos desonestos que o filme indica que irá trilhar para subverte-los totalmente ao fim do terceiro ato. Enquanto para a plateia mais adulta a situação fará sentido, será difícil de lidar para as crianças cujo filme deveria ter sido pensado para elas, principalmente.

Mesmo com suas qualidades que elevam a obra e a tornam especial, muitas escolhas tomadas devem frustrar os pequenos. E quando uma experiência infantil pode dar margem à frustração, certamente há algo de estranho nos meandros explorados aqui. Com grande coração e passagens bipolares, Carros 3 perpetuará a marca registrada dessa trilogia: a divisão entre o público.

Carros 3 (Cars 3, EUA – 2017)

Direção: Brian Fee
Roteiro: Brian Fee, Ben Queen, Eyal Podell, Jonathon E. Stewart, Kiel Murray, Mike Rich, Bob Peterson
Elenco (vozes no original): Owen Wilson, Armie Hammer, Cristela Alonzo, Chris Cooper, Nathan Fillion, Larry the Cable Guy, Bonnie Hunt
Gênero: Animação Infantil
Duração: 106 min.

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Publicado por Matheus Fragata

Editor-geral do Bastidores, formado em Cinema seguindo o sonho de me tornar Diretor de Fotografia. Sou apaixonado por filmes desde que nasci, além de ser fã inveterado do cinema silencioso e do grande mestre Hitchcock. Acredito no cinema contemporâneo, tenho fé em remakes e reboots, aposto em David Fincher e me divirto com as bobagens hollywoodianas.

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