Nicholas Ray cresceu muito rápido na indústria cinematográfica americana dos anos 1940. Se especializando em filmes noir e westerns com detalhes um tanto vanguardistas, o diretor logo se consolidou no mercado. Em uma produção da RKO, Ray teve um grande salto na carreira com Cinzas que Queimam, outro noir medíocre para os anos 1950 da Hollywood Clássica. O grande diferencial aqui é a co-direção de Ida Lupino que também atua como coadjuvante no filme.
Esse detalhe tão raro de uma mulher diretora na Hollywood Clássica apenas aconteceu por um forte acaso: Ray ficou muito doente por um longo período de tempo. Logo, Lupino entrou no seu lugar para manter a produção ativa por várias semanas. Essa mudança de ares certamente é bastante sentida nesse estranho filme.
Maldição Urbana
O cenário proposto por A.I. Bezzerides é um dos mais explorados no cinema do gênero: a praga da vida urbana. Adaptando um romance pulp de Gerald Butler, temos a história do policial esquentadinho Jim Wilson (Robert Ryan) que, ao viver uma rotina tão intensa e tóxica em suas patrulhas, acaba espancando um criminoso sem honrar o seu compromisso para com a lei.
Ao descobrir a atitude nada correta do policial, o chefe do departamento oferece uma dispensa a Jim para que ele viaje para o interior e esfrie a cabeça. Mas para que também investigue um assassinato de uma garota… Chegando lá, logo o policial entra em uma grande perseguição contra o assassino da menina, filha de outro cidadão turbulento chamado Walter Brent que jura a morte do criminoso.
Extremamente curto, não há muito que Bezzerides e Ray tentem fazer para tornar essa narrativa mais sóbria e densa, afinal tudo parte de alguns clichês bem explorados por filmes melhores. Na verdade, temos dois filmes em um. O primeiro dura apenas meia hora para apresentar o niilismo de Jim, além de permitir que o espectador conheça o protagonista durão, pessimista e absolutamente esgotado pela corrupção de uma cidade violenta que odeia a força policial.
Vemos que Jim não se aproxima dos amigos e é totalmente fissurado em punir os criminosos que cercam seu trabalho. Logo temos uma sequência de rotina envolvendo crimes pequenos e uma ligeira investigação não muito interessante. Ray traz uma abordagem visual interessante ao situar todas essas cenas em noturnas sempre trazendo o piso molhado que reflete as luzes da cidade evocando certo charme para essas passagens entediantes.
Através de uma abordagem correta com a câmera na mão, o diretor também consegue nos inserir dentro da ação, tornando as perseguições com veículos mais intensas a partir de um ponto de vista tão pouco explorado no cinema clássico. Porém, passado esse preâmbulo que só consegue estabelecer o personagem como rude e, portanto, superficial, logo somos jogados abruptamente para o “segundo” filme no qual também existem diversos problemas.
Se antes estávamos em um filme pulp policial, agora temos uma narrativa romântica envolvendo a busca de um foragido. Para emendar essa perseguição ao assassino da adolescente, algo que também é muito mal estabelecido na narrativa, não existe muito preparo para situar o personagem nesse novo cenário, contradizendo o desejo do chefe ao afastar o policial da cidade.
Com muita rapidez, os personagens já estão no encalço do “misterioso” assassino em uma boa perseguição de carro em meio a uma nevasca. Após um acidente duplo, os personagens se deslocam para uma casinha isolada no meio da vastidão gélida do lugar. O assassino se esconde e então nosso protagonista tem o primeiro contato com o interesse romântico da jornada: a jovem Mary Malden (Ida Lupino). Há um mistério muito óbvio envolvendo a relação de Mary com o assassino, além de termos a apresentação de uma característica repleta de potencial para gerar drama ou uma encenação mais criativa: a personagem é cega – posteriormente, é inferido que essa cegueira foi infligida de propósito pelo assassino perseguido, mas nunca isso fica realmente esclarecido.
A partir de um desenvolvimento clichê e fraco na relação de Mary com Jim, os dois acabam se apaixonando inexplicavelmente – essa relação fica ainda mais bizarra depois do clímax da obra que deveria acabar com qualquer paixão que Mary nutria pelo policial, afinal temos uma conclusão repleta de felicidade ignorando o trauma que envolveu a reunião daquelas duas vidas.
Também há uma certa lamentação envolvendo as características psicológicas do assassino e de seu trágico final. A partir dessa justificativa narrativa, é difícil compreender ao certo o que o roteiro queria transmitir com a moral do filme sobre crime e castigo para menores de idade. Ainda mais com um crime tão grave quanto o assassinato.
Porém, mesmo com uma história tão esquisita e atropelada, felizmente há características visuais inteligente dentro do longa, como o fato de não haver luzes na casa de Mary, já indicando a cegueira da personagem, ou com um enquadramento interno em um carro que mostra, pela primeira vez, o fundo do carro quando Jim parte de volta para a cidade, indicando que dessa vez o personagem não quer seguir em frente, mas ficar junto de quem ama.
Além disso, temos uma trilha musical muito potente de Bernard Herrman, inspirado ao máximo para preencher as boas sequências de perseguição com músicas memoráveis.
Filme em Cinzas
De fato, não há muito que salva Cinzas que Queimam de ser um entretenimento valioso para a vida cinéfila do espectador. O conceito do policial durão pode muito bem ter sido inaugurado aqui, mas foi aperfeiçoado depois com filmes mais sólidos em sua narrativa e propostas de direção mais inventivas. Há simplesmente um grande acumulo de oportunidades desperdiçadas aqui, além de apostas erradas que também não caem na responsabilidade de Ray que também estava de mãos atadas com as vontades do estúdio.
Cinzas que Queimam (On Dangerous Ground, EUA – 1951)
Direção: Nicholas Ray, Ida Lupino
Roteiro: Nicholas Ray, A.I. Bezzerides, Gerald Butler
Elenco: Ida Lupino, Robert Ryan, Ward Bond, Charles Kemper, Anthony Ross, Ed Begley
Gênero: Noir, Drama, Romance, Crime
Duração: 82 minutos.