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Crítica Com Spoilers | A Forma da Água – Um Filme Aguado

Gostando ou não das obras de Guillermo del Toro, que, embora tenha nos decepcionado com seu penúltimo filme, A Colina Escarlate, é inegável que, em termos visuais, ele sempre é capaz de nos impressionar. De Hellboy (e sua continuação) a O Labirinto do Fauno, o realizador demonstra extremo cuidado com a direção de arte e desenho de produção de seus filmes, colocando em tela criaturas fantásticas, das quais, em momento algum, duvidamos – fruto de excelentes trabalhos na área de maquiagem e prótese. Quando se trata dos roteiros das obras, no entanto, o mesmo cuidado não sempre aparece, criando, por vezes, longas que apresentam pura forma, mas quase nenhum conteúdo. A Forma da Água não chega a se enquadrar nesse cenário, mas o que efetivamente importa acaba se perdendo no meio de excessos do texto de del Toro e Vanessa Taylor.

A obra nos conta a história de Eliza Esposito (Sally Hawkins), uma mulher muda, que trabalha como faxineira em uma base de pesquisa do exército americano. Certo dia, ela testemunha a chegada de uma estranha criatura anfíbia ao lugar, ser esse que é mantido acorrentado ou em confinamento dentro de um tanque. Não demora muito para que ela comece a se aproximar dessa criatura humanoide e, quando ela descobre que ele será sacrificado, Eliza decide arranjar alguma maneira de tirá-lo dali. Enquanto isso, o implacável Strickland (Michael Shannon), chefe de segurança do local, demonstra que essa tarefa não será das mais fáceis.

Em diversos aspectos, essa mais nova obra de Guillermo del Toro se assemelha muito a O Labirinto do Fauno. A própria abertura do longa imediatamente nos remete à fabula sobre a Guerra Civil Espanhola do diretor, visto que a narrativa, aqui, também é iniciada com a narração em off, como se esse fosse um conto de fantasia. O aspecto fantasioso de A Forma da Água, no entanto, muito se diferencia do longa de 2006, já que dentro desse universo não há dúvidas que ele exista – a não ser que encaremos toda a história como uma fábula, desconsiderando até mesmo a existência de Eliza, que seria fruto da imaginação fértil de seu solitário vizinho, Giles (Richard Jenkins).

O grande problema do mais novo longa de del Toro é que, em momento algum, ele se compromete com qualquer sensação de realismo. Ele tenta criar a mesma amálgama entre fantasia e realidade de Labirinto, mas falha ao tornar tudo algo extremamente fabulesco, a tal ponto que o aspecto “filme de época” da obra chega a incomodar. Vejam, caso o diretor não tivesse optado por situar a trama durante a Guerra Fria, o problema seria minimizado – a grande questão é que, ao fazê-lo, ele invariavelmente pede ao espectador que volte no tempo, nos faz esperar críticas a esse determinado período, ou, ao menos, a visão do realizador sobre ele. Todo esse transporte, contudo, é desnecessário e acaba gerando subtramas que jamais s concretizam – como é o caso do doutor Hoffstetler (Michael Stuhlbarg), em uma representação tão caricatural dos sovietes que chega a ser risível.

Chegamos, pois, na figura do antagonista, que, evidentemente, cria um paralelo direto com o capitão Vidal, vilão de O Labirinto do Fauno, visto que ambos encontram-se em posição de poder e o exercem de forma ditatorial, violenta, os dois sendo homens que profundamente acreditam em seus deveres – um toma Franco como seu guia e o outro o próprio american way of life, que é desconstruído através desse antagonista, seus hábitos e sua família. Em momento algum é aberto espaço para enxergarmos o lado de Strickland, ele é o típico vilão fabulesco: com o mal definindo todas as suas ações, ponto deixado bem claro pelos seus comentários racistas, misóginos e a própria forma violenta como trata a criatura da água.

Mais uma vez caímos no problema da falta de compromisso com a realidade – praticamente com todos os seus diálogos funcionando na base de frases de efeito, nos é retirada qualquer possibilidade de acreditarmos nesse vilão, que facilmente poderia ter sido tirado de um filme de James Bond. Nota-se, também, o mesmo maniqueísmo presente no capitão Vidal, com a diferença que, aqui, o antagonista não é enxergado pela visão de uma garotinha e sim de uma mulher já adulta – em uma era da bipolarizada quanto a nossa, seria essa a melhor abordagem? Claro que isso funciona como a já mencionada crítica ao american way of life, mas toda essa descarada vilanização de Strickland apenas o torna um personagem raso, sem motivação aparente – ele simplesmente é cruel. Seria isso fruto desse seu modo de vida, no qual o homem detém todo o poder? Ou seria consequência de um roteiro mal escrito? De toda forma, Shanon, ao menos, minimiza um pouco tal defeito, representando seu personagem na medida certa, quase nos fazendo relevar diálogos como o do banheiro, no qual o personagem diz que somente lava a mão uma vez.

Em perfeita contraposição, temos a atitude e a própria personalidade de Eliza, brilhantemente interpretada por Sally Hawkins, que, desde cedo, demonstra ser alguém doce, que genuinamente se importa com os outros – aspecto bem ilustrado pela sua incapacidade de falar, fazendo dela alguém que escuta os outros, colocando-a na evidente posição de quem presta suporte, de quem ajuda. A voz, aqui, passa a simbolizar o poder opressor, que passa por cima da individualidade dos outros. Além disso, seu estado físico é utilizado para criar o rápido vínculo entre ela e o ser anfíbio, já que ele próprio consegue apenas dialogar através da linguagem de sinais. Isso sem falar, claro, nas cicatrizes no pescoço da protagonista, que assemelham-se a guelras. A protagonista, ao contrário do vilão, recebe a devida atenção, del Toro gasta todo o trecho inicial do longa para deixar bem clara a sua rotina, seu olhar sonhador. O grande problema de sua construção está na previsibilidade do desfecho, tornada explícita pela presença das mencionadas guelras.

Entra aqui, então, a própria criatura, que permite, desde cedo, que nos importemos com ela em razão de seus olhos, sempre visíveis e bem abertos, passando somente um tom ameaçador quando ele próprio está sendo ameaçado. Dado vida através de efeitos práticos, com imersivo uso da maquiagem e próteses, a criatura verdadeiramente soa como algo vivo, representando, facilmente, o que há de melhor da filmografia de del Toro. Seu design, claramente inspirado em O Monstro da Lagoa Negra (paralelo, esse, que se estende para a própria trama), o faz parecer como algo que poderia, genuinamente, existir, tirando o aspecto de terror desse ser que vive, prioritariamente, na água.

Doug Jones, já acostumado com tais papéis, consegue ser amplamente expressivo, fazendo bom uso da linguagem corporal para transmitir seus sentimentos e emoções. Da mesma forma, del Toro, como diretor, sabe muito bem criar imagens que valorizam todo o trabalho da direção de arte, com planos que revelam tudo na medida certa. É preciso notar, também, como, em todo quadro, temos a presença de algo verde, seja no cenário ou no figurino das personagens, ponto que dialoga com a natureza aquática da criatura apresentada, remetendo-nos constantemente ao ambiente subaquático, que vemos na cena inicial do longa. Essa paleta esverdeada, porém, acaba cansando o olhar do espectador, que mais sente como se o recurso estivesse martelando repetidas vezes o que já sabemos. Além disso, o exagero do uso desses tons quebra de vez qualquer esperança que temos de acreditar nessa trama, que não mescla fantasia e realidade, sendo puramente fantasiosa, destruindo, de vez, qualquer tentativa de crítica por parte do roteiro.

Não bastasse isso, algumas conveniências adotadas pelo roteiro o prejudicam ainda mais, algo que se torna evidente no trecho que o vizinho da protagonista é convencido a ajudá-la em seus planos. Faltou refino e elegância no texto de Guillermo del Toro e Vanessa Taylor nessas ocasiões específicas, falha essa que se contrapõe às delicadas sequências entre a personagem central e o ser encarcerado, bem pontuadas pela melódica trilha de Alexandre Desplat. Além disso, por vezes, o texto se preocupa demais em oferecer mais tempo em tela para certos personagens, criando subtramas que, no fim, acabam não vingando, soando mais como fillers do que qualquer outra coisa. Bom exemplo é a personagem de Octavia Spencer, que funciona unica e exclusivamente como alívio cômico. Aliás, os coadjuvantes são tão verborrágicos que chegamos a esquecer, em determinados pontos, que a protagonista é muda, fazendo com que essa característica da personagem tenha como únicas funções a de traçar o paralelo com A Pequena Sereia e para evidenciar que Strickland gosta de uma mulher que não fala, em outras palavras, submissa.

O mais trágico disso tudo é como perdemos tempo com o vizinho, vivido por Richard Jenkins, cujo arco não acrescenta em absolutamente nada. Seu personagem poderia ser facilmente excluído do roteiro (assim como a de Spencer) – bastaria trocar poucas ações da protagonista e o vazio deixado por eles seria facilmente preenchido. Com isso, del Toro e Taylor criam uma narrativa extremamente inchada, que mais nos faz querer que o longa acaba logo – nem mesmo a curiosidade serve como apoio, já que sabemos, desde o início, que Eliza irá terminar no mar junto da criatura. Considerando os trabalhos anteriores de del Toro, no entanto, já era de se esperar que enfrentaríamos esse tipo de problema nesse seu mais novo filme.

Dito isso, A Forma da Água nos leva de volta à questão do filme como forma sem substância – o diretor até tenta tecer críticas ao american way of life, ao machismo, homofobia, dentre outras questões, mas acaba superlotando seu enredo, esquecendo do que efetivamente importa: construir uma boa história, com bons personagens. Sem qualquer cuidado com o lado “real” da trama, com tudo beirando a total artificialidade, a obra mais soa como uma falha tentativa de repetir a fórmula de O Labirinto do Fauno – o resultado é algo vazio, com visual que rapidamente perde nossa atenção, soando como se del Toro tivesse apenas preocupado em criar algo “oscarizável” (o que conseguiu). Isso tudo sem levar em consideração as acusações de plágio, que, se forem levadas em conta, destroem essa obra por completo.

A Forma da Água (The Shape of Water – EUA, 2017)

Direção: Guillermo del Toro
Roteiro: Guillermo del Toro, Vanessa Taylor
Elenco: Sally Hawkins, Michael Shannon, Richard Jenkins,  Octavia Spencer, Michael Stuhlbarg,  Doug Jones, David Hewlett, Nick Searcy
Gênero: Drama, Fantasia

Duração: 119 min

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Publicado por Guilherme Coral

Refugiado de uma galáxia muito muito distante, caí neste planeta do setor 2814 por engano. Fui levado, graças à paixão por filmes ao ramo do Cinema e Audiovisual, onde atualmente me aventuro. Mas minha louca obsessão pelo entretenimento desta Terra não se limita à tela grande - literatura, séries, games são todos partes imprescindíveis do itinerário dessa longa viagem.

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