Os últimos anos têm sido generosos quando se trata de filmes de terror – com obras como Invocação do Mal, O Babadook, It: A Coisa sendo alguns dos exemplares que marcaram a revitalização de um gênero que não andava bem das pernas. Apesar de algumas pontuais preciosidades, no entanto, ainda nos deparamos com dezenas de tragédias antes de sermos surpreendidos – positivamente – por um filme de horror. Mas, para sermos justos, o mesmo vale para qualquer outro gênero cinematográfico. Dito isso, é com grata surpresa que Corrente do Mal aparece como um dos melhores títulos do gênero nos últimos anos e, mesmo quatro anos após, ele não deixa de surpreender com seus pequenos, mas relevantes, detalhes.
Inspirado em um pesadelo recorrente de David Robert Mitchell, diretor e roteirista do longa, temos aqui uma fita que não faz questão de dar a mão ao seu espectador. A premissa, teoricamente, é simples e é apresentada logo no terço inicial do filme, mas é repleta de pequenas nuances que fazem nos perguntar, durante toda a projeção, coisas como “será que isso funcionaria?” ou “e depois, o que acontece?”. Perguntas essas que nos tornam espectadores ativos, não simplesmente vendo imagens expostas diante de nossos olhos, mas, sim, pensando em como fugir dessa situação, aparentemente, inescapável.
É nesse estado, de constante tensão e indagação que permanecemos ao longo de toda a trama, que acompanha a adolescente Jay Height (Maika Monroe), que passa a ser seguida por uma entidade, capaz de assumir a aparência de qualquer pessoa, após seu último caso amoroso passar isso para ela através do sexo. Tal ser segue a vítima a passos lentos, mas não para e, eventualmente, ela irá alcançar quem é que esteja perseguindo e não há como saber em que forma ela irá aparecer a seguir.
Mitchell é certeiro na forma como dirige esse seu segundo longa, aproveitando sempre da profundidade de campo, acompanhada frequentemente de planos mais abertos, para nos fazer procurar a criatura se aproximando lentamente e o mais assustadoramente divertido disso é que, na maior parte dos casos, realmente há alguém caminhando na direção da protagonista. Naturalmente que outros recursos já conhecidos do gênero também se fazem presentes como o aparente ponto de vista do assassino/ ser/ criatura e lentos travellings e panorâmicas que não apenas aumentam nossa expectativa para ver tudo o que está presente em determinado local, como passam a impressão de algo estar perseguindo a personagem, ou a observando.
Tudo isso passa a impressão de que Jay realmente nunca está a salvo e pode se deparar com a entidade a qualquer momento. O roteiro, claro, amplifica essa sensação ao oferecer certos detalhes de forma esporádica e nunca explicitamente. Por exemplo, de início não sabemos se a criatura é capaz de atravessar paredes, ou se simplesmente “teletransporta” e aparece em qualquer lugar. Além disso, quando os personagens estão prestes a passar adiante a maldição, na maior parte das vezes, não sabemos se eles chegaram a passar de fato ou se a entidade continua com sua atenção fixada neles. Trata-se de uma miríade de fatores que pouco a pouco intensificam nosso desconforto, jamais permitindo que relaxemos durante a projeção.
Tirando uma página do livro de Stanley Kubrick, em O Iluminado, Mitchel ainda preenche suas imagens com pequenas estranhezas, que não necessariamente requerem que prestemos atenção nelas, já que passivamente nossa mente absorve tais informações criando estranhamento. O mais claro desses elementos, que soam fora do lugar, é a presença de tecnologias de diferentes coexistindo como se o mundo, de fato, fosse assim. Vemos fotografias em preto e branco, carros dos anos 1970/80 perfeitamente conservados ao lado de veículos mais modernos, roupas íntimas que parecem ter pertencido à avó da protagonista, decorações com ar mais antigo e, ao mesmo tempo, uma espécie de celular, não muito diferente de um Apple Watch, com lanterna e e-reader que mais parece ter vindo do futuro próximo.
Fora essa questão tecnológica, ainda temos a questão das estações do ano, outro ponto que o diretor utiliza para gerar uma profunda estranheza no espectador, por mais que ele não saiba exatamente de onde ela vem. Para deixar claro irei utilizar uma cena específica de Corrente do Mal: em determinado momento vemos Jay relaxando em sua piscina (que claramente não é aquecida). Pouco após, vemos todos os personagens, inclusive ela própria, encasacados e não estamos falando de uma sutil elipse, que nos levou alguns meses para frente – trata-se, de fato, de um elemento para nos tirar da zona de conforto, uma espécie de erro de continuidade proposital, que se repete diversas vezes ao longo da trama, apenas contribuindo para que não relaxemos em momento algum.
David Robert Mitchell ainda faz uso de elementos clássicos de filmes slasher para compor essa sua peça única, primeiro e mais óbvio fazendo uso do sexo como sinônimo de perigo, apenas para subverter a ideia e tornar o ato sexual como única possibilidade de salvação. Naturalmente que há o subtexto das DSTs, mas isso é tão óbvio que não requer uma análise aprofundada. Ademais, a entidade funciona exatamente como um Jason, Freddy ou Michael Myers, sendo implacável, jamais desistindo de perseguir a vítima – a subversão está na troca constante da aparência do ser, ao contrário dos clássicos de terror que mantiveram, em geral, o mesmo visual do assassino por anos e anos. Além disso, a própria estrutura de “corrente” (que justifica o título nacional) remete imediatamente a O Chamado.
Fazendo uso desses elementos, Mitchell é capaz de criar algo próprio e inédito e que, felizmente, dispensa o uso constante de jump scares (ainda que alguns ainda estejam presentes no filme), priorizando a atmosfera de tensão aos sustos. Essa atmosfera, infelizmente, acaba cambaleando já na segunda metade do filme, que se beneficiaria sem algumas sequências que acabam trazendo um ar de repetitividade, mas nada que, de fato, estrague nossa imersão por completo.
No fim, Corrente do Mal é uma experiência extremamente positiva, um terror de respeito que certamente merece estar na lista de melhores exemplares do gênero dos últimos anos. Demonstrando uma gigantesca atenção aos detalhes, que apenas contribui para uma denso clima de tensão, além de uma proposta que sabe abraçar outros filmes que o precederam, mas sem perder a originalidade, esse filme de David Robert Mitchell prova que o terror sempre pode nos surpreender, tenha sido lançado em uma boa época para o gênero ou não.
Corrente do Mal (It Follows – EUA, 2014)
Direção: David Robert Mitchell
Roteiro: David Robert Mitchell
Elenco: Maika Monroe, Keir Gilchrist, Olivia Luccardi, Lili Sepe, Jake Weary, Daniel Zovatto, Leisa Pulido
Gênero: Terror
Duração: 100 min.