Em 2009, Deadpool pintou nos cinemas pela primeira vez. A antecipação foi tremenda por X-Men Origens: Wolverine, projeto inicial da Twentieth Century Fox em realizar diversos filmes de origem para os integrantes dos X-Men. Logo a decepção ao ver a maneira como o personagem foi retratado no longa foi algo absolutamente ridículo. Porém, a semente da ideia de um filme solo para Deadpool foi plantada na cabeça de Ryan Reynolds.
A luta por um filme que fosse fiel às características violentíssimas foi árdua por conta da certeza da classificação indicativa alta que o filme receberia que, por consequência, restringiria o público. Porém, graças a uma proposta irrecusável e do desempenho surpreendente de uma sequência-teste que ilustrara o teor do filme, o estúdio deu luz verde para a louca adaptação do quadrinho. Sim, demorou, mas finalmente os fãs do mercenário tagarela receberam o filme que tanto pediam. Deadpool chegou explodindo tudo.
Apesar do roteiro de Rhett Reese e Paul Wernick tentar fugir da fórmula dos novos filmes de heróis estreantes no cinema, infelizmente, ele acaba um tanto preso nisso – apesar de ser um longa bastante consciente da sua situação. Para tentar quebrar o padrão, os roteiristas e o diretor Tim Miller começam o longa com a potente sequência de ação que ocorre na rodovia que foi explorada incessantemente pelos trailers.
Nessa primeira cena, o cineasta já apresenta o tom que guiará o filme inteiro: verborragia chula, piadas cretinas, zoeira intensa, sexo e muita violência. Ou seja, o roteiro é fiel a natureza do personagem. Logo após, o filme aposta em uma narrativa não linear inserindo diversos flashbacks para apresentar a história de origem do anti-herói. Aqui o longa começa a seguir o “manual” do filme de herói apenas derivando no contexto mais correto dos outros filmes. Ou seja, é uma história de origem às avessas que centra no romance hardcore do mercenário Wade Wilson com Vanessa – uma das melhores sequências do longa. O interessante nessa característica é que não há cisão de personalidade no que tange o alter ego com o personagem como ocorre em Batman/Bruce Wayne ou Peter Parker/Homem-Aranha.
Wade é Deadpool mesmo antes de vestir os trajes do personagem. Ryan Reynolds incorpora bem o papel tanto fantasiado ou não. Ele entende que Deadpool depende muito de sua expressão corporal e inova com a modulação da voz sempre surpreendente. Ele se movimenta com marra e executa a ação com graciosidade. O maior acerto se dá com os efeitos visuais que animam os olhos e o cenho do personagem quando ele se torna Deadpool. Desse modo, o diretor consegue frisar olhares irônicos, surpresos, apaixonados, impacientes que marcam a comédia tão presente no longa.
Nesses trechos de flashback, os roteiristas estabelecem até mesmo certo drama por conta da ameaça do câncer e do iminente fim da vida de Wade, porém é apenas um trabalho básico de narrativa: serve apenas como motivação para o protagonista negociar o tratamento que o transforma em mutante. Nisso, finalmente os antagonistas Ajax e Angel Dust são apresentados. Infelizmente essa maldição que ronda filmes de super-heróis tirados dos quadrinhos Marvel com vilões descartáveis, subdesenvolvidos e superficiais se faz presente em Deadpool.
Dois conflitos guiam o filme inteiro, apesar de um terceiro ser apresentado com a participação de Colossus – finalmente com o sotaque russo, e Negasonic Teenage Warhead em suas tentativas de recrutar o desbocado protagonista para o time dos X-Men – é interessante notar o esforço do estúdio em incluir o personagem nesse novo universo cinematográfico que estão criando derivado da onda pioneira da Marvel Studios. Os outros dois conflitos majoritários são igualmente pouco inspirados. Um é legitimo concentrando-se no medo de Wade em se apresentar para Vanessa com sua face deformada – algo derivado do fabuloso O Homem Elefante, mas acompanhado de doses cavalares de humor. O segundo guia toda a relação do protagonista com o vilão principal, Ajax, em uma guerra de egos estúpida sobre o nome do antagonista. Infelizmente, com uma motivação infantil e uma reviravolta muito previsível, Ajax serve apenas como um capanga que coloca a mocinha em perigo. O personagem mesmo é concebido com muita limitação: traz diálogos expositivos sobre a processo de mutação artificial e força o antagonismo com caricaturas. Ed Srein fez o que pôde, mas o personagem é podre.
A interação de Deadpool com seus aliados também não foge do básico, além de variar um pouco o humor. Graças a curta duração do filme, não há como ele entrar na repetitividade com seus aliados. Com Colossus e Negasonic Teenage Warhead temos vislumbres mais inspirados sobre a dicotomia do heroísmo que sustentam melhor a relação deles com o protagonista. Já com Al Cega e Fuinha, as coisas tendem a ficar mais limitadas com uma comédia que raramente funciona.
Aliás, é curioso notar como o texto dos dois roteiristas gosta de alfinetar diversas fórmulas usadas por filmes desse subgênero, mas acaba usando as mesmas para concluir o filme. Assim que finalmente nos livramos da longa cena da rodovia e dos flashbacks, o longa passa a virar um pequeno festival de clichês contanto, até mesmo, com um clímax solucionado por um descarado deus ex machina. Apesar dessa hipocrisia, a segunda metade mantém o tom divertido e repleto de referências pop contemporâneas nos diálogos rápidos. Aliás a comédia presente é muito boa, apesar de cansar depois de um tempo. De cada dez palavras que Deadpool fala, onze são piadas, então dá para ter a noção de que o filme não se leva a sério em sua verborragia. O melhor da comédia também vem de referências que ridicularizam os papéis fracassados de Ryan Reynolds, de uma infinidade de filmes da gama do estúdio – incluindo os X-Men, além de constantemente relembrarem o fato de que o filme é barato.
Isso não é frisado à toa. Deadpool realmente é um filme “barato” por conta da violência explícita, do palavreado e da nudez presente, afinal nenhum estúdio aposta milhões de dólares em filmes que certamente recebem a classificação R nos EUA. Nos burburinhos vindos dos confins da internet, o boato é de que o filme tenha custado por volta de 35 a 50 milhões dólares: um orçamento tímido perto dos 350 milhões de Batman vs. Superman. Obviamente isso reflete no filme, mas pela competência de Tim Miller isso pode passar despercebido aos olhos de muita gente.
O orçamento apertado limita as cenas de ação. As pouquíssimas que existem – temos apenas duas que podem ser consideradas de fato como ação grandiosa – são dilatas ao extremo como no caso da sequência da rodovia. Ao menos, todas são inspiradas ou envolvem milagres da montagem para conferir algum atrativo para as cenas menores. Já nos efeitos visuais, boa parte deles são bem feitos. Apenas no clímax que a qualidade cai significantemente. O visual do longa não foge muito dos tons dessaturados e acinzentados na paleta de cores, embora a iluminação seja competente. Uma pena que o visual, um dos maiores fatores de atmosfera que um filme possa receber, seja tão morto para um personagem cheio de vida.
Por outro lado, o design de produção é dez vezes mais inspirado do que a fotografia do longa sendo vital para emplacar diversas piadas desde bonequinhos até anotações em papel nas paredes. Na verdade, são tantos detalhes espalhados nos cenários que há muita coisa para notar em uma primeira exibição. Toneladas de referências e capricho estético nos cenários de Deadpool.
Apesar de ser iniciante em longas metragens e ser completamente desconhecido, Tim Miller mostra a que veio com Deadpool. Graças a certa liberdade do estúdio o diretor tem competência em seu trabalho já que ele entende bastante o personagem assim como teve muita colaboração de Ryan Reynolds e dos roteiristas. O filme começa com uma excelente abertura de créditos iniciais que fogem do padrão, assim como apresenta um belíssimo plano sequência que explora um momento congelado da cena de ação que vem a seguir denotando a loucura que ronda o personagem.
Aliás, Miller tem grande apreciação com planos em slow motion a fim de deixar o personagem com maior pinta de fodão enquanto mata deliberadamente. Ele também incorpora as características que mais marcam o personagem: as brincadeiras com metalinguagem, autoconsciência sobre sua natureza fictícia e quebras de quarta parede. O trabalho é bem feito, muito orgânico e não assusta os desavisados que não conhecem os quadrinhos. O ápice criativo centra numa cena genial onde o personagem faz uma contagem regressiva da munição restante de suas armas. Porém Miller nunca se afasta da margem de segurança nessas questões. Mesmo em sua grande ousadia, Deadpool trilha muito no caminho seguro que dá a certeza do sucesso.
Deadpool é um ótimo filme que não decepciona quem estava com grandes expectativas para a redenção do personagem nos cinemas. As piadas de humor negro, a ação violenta, o teor sexual, o palavreado forte certamente deixará todos satisfeitos. Porém não esperem nada revolucionário na narrativa. Deadpool é um filme sobre uma história de amor, querendo ou não, e faz uso intenso do manual dos roteiros de longas do nicho, apesar da tentativa um tanto falha em subverter o gênero. Um filme que tem valor por quebrar o padrão dos filmes de super-herói, pela coragem de clamar sua existência entre uma indústria que começou a apresentar sinais de cansaço. Ao menos ele tem algo diferente para oferecer.
Espero que no próximo longa, os gênios por trás do marketing tenham a oportunidade de colaborar criativamente na história do filme, pois o que ele certamente precisará é dessa audácia e irreverência criativa que explodiu nas peças publicitárias que tornaram esse bom filme, um fenômeno mundial.
Deadpool (EUA, 2018)
Direção: Tim Miller
Roteiro: Rhett Reese e Paul Wernick baseado nos personagens da Marvel
Elenco: Ryan Reynolds, Morena Baccarin, T.J. Miller, Brianna Hildebrand, Leslie Uggams, Stefan Kapicic, Ed Skrein, Gina Carano
Gênero: Comédia, Ação
Duração: 108 min
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