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Crítica | Dear White People: 2ª Temporada – A Irônica Acidez da Verdade

Dear White People é, sem sombra de dúvida, uma das séries mais importantes da atualidade. Na crítica sobre a primeira temporada (que você confere aqui), falamos sobre todo o respaldo social de grande valia para compreendermos os conflitos e as discussões acerca de raça, escravidão, racismo estrutural, privilégio branco e inúmeros outros temas tratados de uma forma tão ácida e verdadeiramente irônica que tentar refutar quaisquer argumentos utilizados pelos personagens é cair no ridículo e no desnecessário – afinal, se há um grupo de pessoas que sabe o que é sofrer preconceito por causa da cor da pele, são os negros. E, como podemos imaginar, cada um dos arquétipos apresentados nessa soberba dramédia não tem papas na língua e jogará na cara tudo o que fazemos de errado – ainda que sem perceber.

No mais novo ano que se inicia na Universidade Winchester, retornamos para os incrivelmente bem construídos dormitórios da Armstrong-Parker, abreviada para AP e que, como podemos nos recordar, funciona como um movimento de resistência da comunidade negra e de sua constante luta para entrar nos mesmos espaços ocupados majoritariamente pelos brancos. Diferente da temporada predecessora, em que Sam (Logan Browning) nos apresenta ao seu programa radiofônico Cara Gente Branca – que empresta o nome para a série – e utiliza isso para desmascarar grande parte dos problemas naquela famigerada instituição acadêmica, o aplaudível elenco retorna enfrentando problemas angustiantes e de âmbito tanto pessoal quanto social. A começar que nossa protagonista passa a enfrentar ataques diretos de um hater-troll intitulado AltIvy através das redes sociais, que insiste em diminuir a sua luta com comentários ofensivos e de cunho extremamente fascista.

O problema é que, o que começou como consequência esperada do breakdown de Troy (Brandon P. Bell) na season finale passada, tornou-se uma crescente ideologia de resposta ao movimento negro que ganhou inúmeros seguidores e fez cada um dos nossos queridos personagens ceder à isca plantada. O perfil em questão conseguiu milhares de seguidores em tempo recorde, disseminando um discurso de ódio que atinge proporções assustadores ao longo dos dez novos episódios e leva os protagonistas ao auge da loucura e do ódio coletivo – e tais sentimentos são usados até mesmo contra eles mesmos para desprezá-los ainda mais. O pano de fundo até mesmo explora, retornando com a montagem característica da série: a mescla entre passado e presente, a preferência pela simetria propositalmente excessiva, os plongées e contra-plongées quase absolutos, entre outros aspectos.

De qualquer modo, toda a estrutura da série segue um padrão de ostentação pura ao mesmo tempo em que entra em discordância com os personagens que apresenta e as histórias que resolve contar. Logo, é aplaudível o modo como o time de diretores e roteiristas ganha espaço para ousar, desde o posicionamento de um narrador onisciente (Giancarlo Esposito) que ganha uma materialização própria com o final do último episódio, até a quebra da quarta parede que intertextualiza uma metalinguagem incrivelmente bem orquestrada. Isso não se restringe apenas a um protagonista, como visto por exemplo em House of Cards, mas estende-se para todos os outros. É como se, em uníssono, o grupo dissesse “olhe as barbaridades pelas quais eu passo. Veja como não fazemos drama”.

As subtramas dão espaço mais que o suficiente para trabalhar suas personas. Uma delas, além de Sam, recebe uma atenção em dobro – e insurge na construção de Lionel (DeRon Horton). Aqui, o aspirante à jornalista sai de sua concha de introspecção para ganhar uma delineação forte, passível até mesmo de surpresa por grande parte do público, à medida que ganha voz no The Independent ao escrever um artigo sobre o financiamento e a corroboração da casa AP com empresas preconceituosas e mercenárias. Além disso, é divertido ver uma quebra em toda essa seriedade nas sequências em que abraça cada vez sua orientação sexual, procurando dispor-se dos meios necessários para “se enturmar” – e eventualmente encontrar um par romântico com o sedutor Wesley (Rudy Martinez que, ao lado de Horton, cria uma química fantástica).

Além do balanceamento entre tragédia e comédia que se apossa da série, o showrunner Justin Simien alcança sucesso ao adicionar alguns elementos de irreverência cênica, trabalhando os conceitos de trabalho filmado ao mesmo tempo em que cria pequenas obras de arte com a câmera. Desse modo, ele também consegue explorar outras vertentes narrativas, transitando entre as inúmeras construções imagéticas com o propósito que bem quiser -e não é à toa que nos primeiros episódios as críticas sociais também deem lugar a um mistério envolvendo anos de apagamento histórico dos negros, escravidão e sociedades secretas (e é aqui que a metalinguagem torna-se mais profunda e sagaz).

De fato o show se vale bastante de discursos progressistas para embasar a motivação de seus personagens. O embate entre uma classe subjugada por séculos de tortura e um extremismo exacerbado que até mesmo serve como reflexo de certos setores da sociedade contemporânea – assustadoramente mais do que deveria – chega a ser angustiante para o espectador e, caso tenha incomodado mais que o necessário, é porque atingiu o objetivo principal de levar à reflexão. Até mesmo os momentos de descontração partem de uma perspectiva ao qual a parcela “dominante” e privilegiada – homens heterossexuais brancos e de renda média-alta – não compreenderiam. Porque, como já dito inúmeras vezes, “cara gente branca: esta série não é sobre você”.

A segunda temporada de Dear White People vai muito além do que esperávamos e não se importa em criar uma atmosfera tensa para dizer exatamente o que tem que dizer. De modo indescritível, ela não satura os discursos políticos dos quais se vale e nem das ideologias que carrega – e abre margens para debates que realmente deveriam acontecer na vida real.

Dear White People – 2ª Temporada (Idem, Estados Unidos – 2018)

Criado por: Justin Simien
Direção: Justin Simien, Kevin Bray, Charlie McDowell, Kimberly Peirce, Salli Richardson-Whitfield, Steven Tsuchida, Janicza Bravo
Roteiro: Justin Simien, Chuck Hayward, Njeri Brown, Leann Bowen, Jack Moore, Yvette Lee Bowser, Nastaran Dibai 
Elenco: Logan Browning, Brandon P. Bell, DeRon Horton, Antoinette Robertson, John Patrick Amedori, Ashley Blaine Featherson, Giancarlo Esposito, Marque Richardson, Nia Jervier, Jemar Michael, Rudy Martinez
Emissora: Netflix
Episódios: 10
Gênero: Drama, Comédia
Duração: 30 min.

 

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Publicado por Thiago Nolla

Thiago Nolla faz um pouco de tudo: é ator, escritor, dançarino e faz audiovisual por ter uma paixão indescritível pela arte. É um inveterado fã de contos de fadas e histórias de suspense e tem como maiores inspirações a estética expressionista de Fritz Lang e a narrativa dinâmica de Aaron Sorkin. Um de seus maiores sonhos é interpretar o Gênio da Lâmpada de Aladdin no musical da Broadway.

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