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Crítica | Demolidor – 1ª Temporada

Depois de conquistar os cinemas com seu universo cinematográfico que culminava em Os Vingadores, a Marvel Studios começava a expandir seus horizontes no audiovisual. Já tendo a iniciado a regular série Agents of S.H.I.E.L.D. e o projeto do que viria a se tornar Agent Carter na emissora americana ABC, a Casa das Ideias agora miraria na cada vez mais poderosa Netflix, que assinava um contrato de no mínimo 4 séries com o estúdio de quadrinhos.

Um conteúdo que divergiria bastante daquele que acompanhávamos nas aventuras coloridas e bem humoradas do cinema, que adotariam um tom soturno e realista no serviço de streaming, ainda que interconectadas com o quadro geral idealizado por Kevin Feige. A primeira série desse contrato seria um reboot de Demolidor, personagem cujos direitos enfim retornavam à Marvel Studios após a tentativa fracassada da Fox de lançar uma franquia com Ben Affleck e Jennifer Garner em 2003.

A chave para ressuscitar o personagem toma muita inspiração do processo que Christopher Nolan realizou com maestria com o Cavaleiro das Trevas em Batman Begins: sombrio e realista. A série de 13 episódios trouxe Drew Goddard para atuar como showrunner e apostou em uma abordagem adulta e que ecoa a fase em que o personagem passou pelas mãos de Frank Miller, a começar pelo uniforme ninja e o tom mais violento que acabou mais adequado à Netflix do que o cinema – ainda que não seja algo digno de uma censura de 18 anos, seu conteúdo é consideravelmente mais gráfico do que aquele que vemos no cinema do gênero.

Assim, a trama da série nos apresenta aos primeiros dias de Matt Murdock (Charlie Cox) em sua identidade vigilante no bairro de Hell’s Kitchen, Nova York. Nos primeiros minutos já conhecemos a origem de sua cegueira e a manifestação de suas habilidades aguçadas em breves flashbacks, que acabam se alongando pelo restante da temporada, e seu humilde começo como advogado na firma que inicia com seu melhor amigo, Foggy Nelson (Elden Henson) e o caso inicial que os une com sua futura sócia, Karen Page (Deborah Ann Wolf). À noite, Murdock atua como um vigilante mascarado que vai pouco a pouco caçando criminosos e limpando a cidade de atividades ilícitas, seguindo uma trilha perigosa que o leva de encontro ao maior gângster da região: Wilson Fisk (Vincent D’Onofrio), o Rei do Crime.

É uma história de origens, mas cujo formato se difere um tanto pelo constante uso de flashbacks (chegaremos neles em breve), algo que pode ser justificado pelo próprio formato de narrativa seriada; um piloto de TV certamente exige que vejamos o herói uniformizado logo de início, o que adianta de certa forma os eventos e acelera algumas relações introdutórias de personagens – especialmente pela entrada de Page, logo no início.

Mas as decisões de Goddard aqui são quase todas acertadas. A influência do trabalho de Nolan é sentida fortemente aqui, desde a abordagem realista para introduzir seus personagens e conduzir as cenas de ação até o visual que abraça a escuridão e tons pastéis mais alaranjados – decisão que pode tornar-se um demérito graças ao trabalho demasiado escuro dos diretores de fotografia, que iluminam algumas cenas a ponto de tornarem-se incompreensíveis. Porém, isso garante uma atmosfera dark que é muito interessante de se mergulhar e explorar, tornando um lado diferente de Nova York que revela-se propício a seus habitantes nada simpáticos.

A escolha de Charlie Cox para Matt Murdock é brilhante. A começar pelo incrível trabalho do ator inglês em fazer um sotaque americano absolutamente impecável e seu desempenho formidável como um sujeito cego, o que exige sutilezas em seus músculos faciais dignas de reconhecimento. A dualidade do personagem também traz uma fúria impressionante do ator, que surge ameaçador na roupa preta inicial do Demolidor, ao mesmo tempo em que a doçura e leveza de Murdock nas cenas com Foggy e Page criam um interessante contraponto.

Mas talvez seja na figura do vilão que reside o grande ponto alto da série. Wilson Fisk pode muito bem ser o melhor antagonista que qualquer produção com o selo da Marvel já transportou para o audiovisual, criando um sujeito que é capaz de provocar genuíno pavor com sua brutalidade e a impecável performance de Vincent D’Onofrio. Os tiques faciais e a voz grave de D’Onofrio sugerem um homem que parece prestes a explodir de nervoso – e pavor – a cada segundo, sendo chocante ver os momentos em que o personagem enfim sucumbe a seus instintos violentos. Por outro lado, a série é inteligente por lhe garantir uma subtrama amorosa visceral e bem contada, além de um episódio de origem que corajosamente explora a infância perturbadora de Fisk com eventos e imagens realmente memoráveis. Um acerto gigantesco, sem dúvida.

Outro fator pelo qual a série ficou marcada é a qualidade de suas cenas de ação, que oferecem momentos que nunca havíamos visto no gênero antes. Tomando inspiração do estilo de luta adotado em produções como Operação Invasão, a pancadaria de Demolidor é visceral e convincente, apostando em combates corpo a corpo críveis e até alguns confrontos com ninja que mantém o pé no chão mesmo apostando em elementos mais fantásticos; como um terno incapaz de ser cortado por lâminas samurai. Mas o ponto alto no quesito é certamente a já icônica cena do corredor que finaliza o episódio Cut Man, onde um inacreditável plano sequência de 9 minutos nos leva em um embate do protagonista com um número muito maior de inimigos em um apertado corredor. É uma cena incrível que traz fortes ecos de Oldboy, ao mostrar seus lutadores cansados, cambaleando e até dando pequenas “pausas” antes de voltarem à porrada. Aplausos merecidos para a direção primorosa de Phil Abraham.

Outras sequências que definitivamente merecem destaque incluem outro plano longo envolvendo panorâmicas, dessa vez quando estamos no interior de um táxi acompanhando um chinês cego cantando, enquanto vemos a figura soturna do Demolidor surgir e arrebentar com criminosos ao passo em que a câmera vai girando e a cantoria serene do chinês dá o tom ideal. Temos também a excelente sequência em que Matt persegue um carro correndo pelos telhados da cidade, enquanto sua audição requintada vai lhe indicando o caminho, em The Ones We Leave Behind e a sangrenta luta contra o ninja Nobu em Speak of the Devil, onde temos um trabalho quase invisível de efeitos visuais tornando o embate possível.

E então, temos os flashbacks. Pessoalmente, acho que a história tem o ritmo gravemente danificado pela constante inserção dessas digressões temporais, especialmente todo o tempo dedicado ao jovem Matt e seu pai boxeador. É um recurso que ganha mais força em episódios específicos, como Stick, onde acompanhamos o treinamento de Matt com seu enigmático mestre vivido por Scott Glenn e Nelson v. Murdock, onde a narrativa mergulha fundo na relação entre Matt e Foggy, em um bom contraponto à situação agravante na qual encontram-se no presente.

Algumas subtramas também não são das mais empolgantes, sendo um desperdício de tempo e um claro filler das 13 horas de duração total. Tudo o que envolve Foggy e Page investigando uma moradora afetada por uma situação estranha na vizinhança e a cruzada do jornalista Ben Urich acabam tornando-se entediantes, ainda que rendam bons momentos de desenvolvimento de seus personagens e as relações entre estes; sem falar que as performances de Henson e Wolf são ótimas e naturais. Porém, a série daria a eles um papel muito mais proveitoso em sua segunda temporada, mas isso é assunto pra outro dia…

Ainda que traga algumas inconsistências em sua longa temporada de 13 episódios, Demolidor é uma grande surpresa e uma das melhores adaptações do selo Marvel já feitas no audiovisual. A série da Netflix impressiona pela abordagem dark e visceral, impressionando pela ação e o cuidado com seus excelentes personagens. Um começo memorável para uma parceria que promete continuar surpreendendo.

Demolidor – 1ª Temporada (Daredevil – Season 1, EUA – 2015)

Showrunner: Drew Goddard
Direção: Drew Goddard, Phil Abraham, Stephen Surjik, Ken Girotti, Euros Lyn, Steven S. DeKnight, Guy Ferland, Nick Gomez, Adam Kane, Nelson McCormick, Brad Turner
Roteiro: Christos N. Gage, Ruth Fletcher, Douglas Petrie, Marco Ramirez, Steven S. DeKnight, Joe Pokaski
Elenco: Charlie Cox, Deborah Ann Wolf, Elden Henson, Vincent D’Onofrio, Rosario Dawson, Scott Glenn, Peter Shinkoda, Matt Gerald, Ayelet Zurer
Emissora: Netflix
Episódios: 13
Gênero: Ação, Aventura
Duração: 50 min aprox

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Publicado por Lucas Nascimento

Estudante de audiovisual e apaixonado por cinema, usa este como grande professor e sonha em tornar seus sonhos realidade ou pelo menos se divertir na longa estrada da vida. De blockbusters a filmes de arte, aprecia o estilo e o trabalho de cineastas, atores e roteiristas, dos quais Stanley Kubrick e Alfred Hitchcock servem como maiores inspirações. Testemunhem, e nos encontramos em Valhalla.

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