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Crítica | Demônio de Neon

Defender qualquer filme usando seu visual como argumento é complicado, já que isso nada mais é do que procurar compensar algum(ns) defeito(s)  grave(s) que a produção possa ter. Se admitirmos os deslizes, sem problema algum, mas entramos em uma esfera muito pessoal pesando Imagem X Conceito para decidir se a experiência valeu a pena e se merece a recomendação. No caso de Demônio de Neon (The Neon Demon), no entanto, não há muito a se pesar, tamanha a excelência visual exibida em quase duas horas de duração, isso independente de quaisquer outras ressalvas que podem – e devem – ser levantadas.

O diretor dinamarquês Nicolas Winding Refn, do aclamado Drive (2011), encarou uma recepção dividida em seu penúltimo filme, Só Deus Perdoa (2013), onde se rendeu à influência da obra de um amigo, o chileno Alejandro Jodorowsky.  Agora, ele mostra que não cedeu a qualquer pressão que poderia ter sofrido neste sentido, retornando com um filme carregado no simbolismo, ainda que com uma história linear e absolutamente simples. Recorrente como escritor dos roteiros que dirige, aqui ele co-escreveu com Mary Laws e Polly Stenham, inexperientes na função.

Partindo de uma ideia principal das mais básicas, garota inocente do interior que procura o sucesso como modelo na cidade grande, Refn persegue incessantemente outro clichê pouco sutil, martelado por toda a projeção. O retrato cruel do mundo das passarelas é previsível, com toda a mesquinharia, indiferença, maldade e paranoia de jovens mulheres anoréxicas com dúzias de intervenções plásticas. É neste cenário que a recém-chegada Jesse (Elle Fanning) tenta se inserir timidamente, mentindo sobre sua idade, encontrando conforto na amizade oferecida pela maquiadora Ruby (Jena Malone).

Jesse exerce um fascínio quase mágico em seus contatos profissionais, abrindo portas muito rapidamente, mas a virginal protagonista, encantada com os vislumbres de uma nova vida, não teria como evitar algum antagonismo neste caminho, aqui personificado pela evidente inveja da dupla Sarah e Gigi, interpretadas por Abbey Lee e Bella Heathcote, já “veteranas” na profissão. O único elo da garota com a realidade, até certo ponto, é Dean – Karl Glusman, protagonista em Love, de Gaspar Noé. Fotógrafo também tentando a sorte, ele a ajuda sem segundas intenções, embora não esconda que gostaria de ir além.

Com essa sinopse simples e ingênua, o filme se propõe a uma discussão em torno das obsessões da beleza feminina, escolhendo o pano de fundo perfeito para isso. Ironicamente, se Refn buscou criticar os excessos e artificialidade do mundo da moda, ele o fez de uma forma a valorizarmos primordialmente o lado estético de seu trabalho. Neste quesito, Demônio de Neon é absolutamente irretocável e mesmerizante como poucos, não apenas elogiando fotografia em si. Se o conteúdo é discutível, pela maestria narrativa com a qual ele o exibe, não há como deixar de ouvir o que ele tem a dizer.

Admitindo que existe um certo componente de ego trip aqui, abrindo o filme com um nada modesto “Nicolas Winding Refn Presents:”, ele provoca seu público, pois sabe que em seguida vai surpreendê-lo. Ao apresentar Jesse, o diretor já se exibe com um jogo cênico onde o campo e contra-campo do primeiro diálogo é construído da mistura das personagens e seus reflexos nos espelhos. Aliás, a relação delas com suas imagens refletidas é uma constante no filme, chegando a lembrar o genial Cisne Negro, de Darren Aronofsky. No entanto, o simbolismo aqui é evidentemente diverso, evocando não a duplicidade de uma psique fragmentada, mas  criando uma alegoria – um tanto óbvia, é verdade – do mito de Narciso.

Se a decupagem e a composição de Refn merecem aplausos, ela é absurdamente valorizada pela fotografia de Natasha Braier, cujo longa anterior, The Rover – A Caçada (2014), já foi um show neste sentido. A paleta de cores incomum é ressaltada de forma a ganhar vida na tela, trabalhando texturas e contrastes de forma magistral a serviço do conceito, mesmo quando é preciso preencher a tela com o fundo branco infinito de um estúdio fotográfico. Preste atenção na cena que opõe o devaneio de Ruby com sua realidade. Tudo isso funcionando em perfeita harmonia com os ótimos figurino e desenho de produção, componente importante na construção de um mundo que parece uma casa de bonecas pós-moderna.

O elenco tem lá suas extravagâncias, mas é coeso no geral. Ignorando as participações especiais, e inúteis, de Keanu Reeves e Christina Hendricks, mais o esquisito Desmond Harrington como um fotógrafo apático, as moças do quarteto principal cumprem a contento suas funções, com cada uma passando exatamente o que o papel pede. Elle Fanning, escolha acertadíssima pelo tipo físico, no entanto, é quem consegue uma performance acima da média, convencendo tanto na ingenuidade quanto em sua nova persona, mais adequada para o sucesso naquele ambiente.

Parceiro recorrente do cineasta, o compositor Cliff Martinez retorna com seus sintetizadores, ajudando a compor um clima que vai do onírico ao suspense. Aliás, falando nesta transição de climas, um dos desafios do espectador, ao final de Demônio de Neon, é classificar o filme em algum gênero. Não é terror, apesar de algumas sinopses breves que encontramos por aí, além de seu suspense existir mais em decorrência da curiosidade sobre sua forma narrativa e do clímax de sua mensagem, do que uma construção direta neste sentido.

Em seus primeiros dois terços, apesar da linearidade, o filme exibe algumas situações que parecem gratuitas, sem acrescentar nada. Talvez tentando colocar o espectador mais para dentro deste mundo estranho, esses detalhes convidam a uma reflexão maior e a prestar mais atenção ao que virá depois. Ainda assim, em alguns casos, não existem respostas fáceis, o que vai render muitas conversas pós-sessão, facilmente. Chegando ao seu terço final e completando o raciocínio, Refn escorrega por querer falar demais onde não havia tanto assunto, infelizmente.

O filme tem três finais, resumindo, insinuando o encerramento duas vezes antes de, finalmente, baixar as cortinas. O pior é que ele seria melhor, caso tivesse ficado no primeiro. Nos outros dois, abraçou a subjetividade e criou momentos que soam um tanto apelativos dentro deste conjunto, ainda que contando com a mesma beleza plástica. A ego trip citada no início cobra seu preço, mas isso não significa que ele estragou o filme.  Seria leviano ignorar tudo que foi exibido anteriormente, mas é uma atitude que, particularmente, deixa uma obra com tanto potencial atrás dos três exemplares anteriores do diretor.

É evidente que Demônio de Neon merece ser visto e apreciado por conta de suas qualidades indiscutíveis. A simplicidade de seu conceito e suas escolhas polêmicas, no entanto, se causam desconforto em alguns espectadores, também merecem ser discutidas. É por isso que, a partir de agora, o texto se permite a entrar em spoilers. Não é uma mera tentativa de justificar, mas sim especular e tentar entender o que existe por trás dessas imagens inesquecíveis e, talvez, entrar um pouco na cabeça de um artista tão provocador quanto Nicolas Winding Refn.

SPOILERS A SEGUIR!

Jesse é a boa menina virgem e ingênua tentando o sucesso em um mundo selvagem, cujo arco dramático a transforma no extremo oposto. Ela se torna a encarnação desta mesma selvageria, graças aos seus encantos, que fluem de forma absolutamente natural. Nenhum dos responsáveis pela sua ascensão a deseja sexualmente, seduzidos apenas pelo ideal da beleza suprema, o que a mantém imaculada fisicamente, mas a corrompe pela vaidade. Incapaz de entregar-se a alguém e apaixonada por si mesma, a referência ao mito de Narciso é inserido na cena do desfile, onde ela beija seu próprio reflexo.

Continuando a referência, o interesse sexual que Jesse – nome que serviria para ambos os gêneros –  desperta em dois personagens também é simbólico, pois temos um homem –Dean- e uma mulher –Ruby. O primeiro apenas se afasta ao ser desprezado, mas a segunda arquiteta uma vingança, culminando no assassinato da garota. Se no mito tínhamos um lago para a destruição de Narciso, aqui temos a piscina vazia, causando uma morte bem mais violenta, é claro. Isso nos leva em seguida ao desfecho polêmico do filme, mas precisamos considerar outros detalhes antes.

Estaria Refn resgatando, além de Narciso, arquétipos de contos de fadas? Isso, de certa forma, explicaria a mensagem tão simples e direta, além dos diálogos e um desenvolvimento nada mais que básico, quando muito, destes personagens. Novamente ressaltando que essa reflexão não é uma tentativa de justificar qualquer coisa, vamos aos elementos que o diretor nos ofereceu.

Sarah e Gigi agem como se fossem irmãs, cúmplices de Ruby na morte e na canibalização de Jesse. As duas primeiras motivadas pela inveja e a terceira pela impossibilidade de possuí-la. Temos quatro mulheres, com três delas buscando – conseguindo, neste caso – a destruição de outra por motivos egoístas em um nível infantil. Faz sentido lembrar da invejosa dupla de  meias-irmãs de Cinderela, que dividiam esse sentimento e o papel de antagonistas com  a mãe, a madrasta da menina bondosa. O interessante é que esse olhar torna Ruby a personagem mais interessante, pois ela aparece inicialmente como uma Fada Madrinha, para depois tornar-se a madrasta, além, é claro, de carregar a alusão à ninfa Eco, apaixonada por Narciso.

É óbvio que a forma como a beleza de Jesse afeta algumas pessoas é digno de um conto de fadas, completando o conjunto de princesa com sua pureza e seu sucesso instantâneo, tudo bem distante de uma situação realista. A garota atinge o que seria o momento culminante de uma princesa das narrativas clássicas, mas sem passar pelas provações comuns a estas heroínas. Parece que, por conta disso, o preço é a corrupção completa e sua consequente destruição.

Lembrando de outro conto popularizado pelos irmãos Grimm, muito provavelmente derivado da mesma raiz de tradição oral que Cinderela, afinal ,as similaridades são inegáveis, Branca de Neve também parece influenciar Demônio de Neon. Mais uma princesa virgem vítima de inveja doentia de uma madrasta má, que, neste caso, agiu sozinha. Novamente, podemos encontrar dois arquétipos em um mesmo personagem do filme. Jesse é Branca de Neve, tornando-se a Rainha má durante o desfile, onde temos outro elemento forte de associação: o espelho. Como convém aos vilões, Jesse tem um fim trágico por conta de um sentimento mesquinho.

O canibalismo também não era algo incomum em contos de fadas. O cadáver de Jesse foi consumido por Sarah e Gigi, que queriam sua beleza e juventude, mas o filme não confirma se Ruby também partilhou desta carne, apenas que ela participou do ritual e banhou-se em seu sangue. Se for isso, faz sentido, já que a motivação dela era outra. Não apenas a antropofagia serve como referência, mas a forma irreal e simbólica como ela foi apresentada, já que Gigi vomita um olho inteiro (!) de Jesse, morrendo em seguida ao tentar abrir seu ventre para retirar os restos da garota. Deixando de lado o que esse acontecimento tenta comunicar, a situação geral tem algo da versão mais popular de Chapeuzinho Vermelho, onde a avó foi retirada inteira do estômago do Lobo.

Jesse e Ruby indo do “bem” ao “mal” simultaneamente é uma dinâmica curiosa, criando uma sequência de acontecimentos que termina em morte. Citei Cisne Negro e a diferença na questão dos espelhos. Se o significado dos reflexos é diferente em cada um, talvez a jornada de Nina no filme de Aronofsky tenha mais a ver com Jesse do que parece em um primeiro olhar.

No sentido psicanalítico, ambas as personagens são garotas com algum grau de repressão e infantilizadas, buscando uma realização que envolve encontrar um lado delas ainda não acessado na psique. No caso de Nina, é mais evidente que ela precisa alcançar sua sombra, seu lado que ela rejeita e nega, para personificar o Cisne Negro. Com Jesse, o processo já é inconsciente, mas ambas chegam a um estágio semelhante. Como um ego cindido não suporta o encontro com a sombra, o resultado é a extinção do indivíduo. Nina encontra a morte após abraçar sua sombra, assim como Jesse morre após o monólogo que confirma o que ela se tornou.

Enfim, há bem mais a se explorar na iconografia geral de Demônio de Neon. Com todos os defeitos que eventualmente apontemos, ainda existe muito conteúdo a ser discutido, o que torna o filme, no mínimo, muito intrigante e prova que Nicolas Winding Refn é um dos realizadores mais interessantes da atualidade. Gostem ou não do trabalho dele, é impossível ficar indiferente.

Redação Bastidores

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