Como falar de um filme de Woody Allen hoje sem pensar nas acusações de assédio sexual que envolvem o cineasta? Tentei pensar nessa crítica sem incluir essa perspectiva, mas era muito difícil considerando que, a cada sequência, Desconstruindo Harry se volta para uma associação entre a vida do protagonista, interpretado pelo próprio Woody Allen, e a sua produção artística. E isso nos faz questionar se é possível separar o autor da obra.
Woody Allen vai trazer elementos de sua vida para dentro de seus filmes, como qualquer artista coloca a si mesmo sobre seu trabalho. Então, em teoria não é possível separar o autor de sua produção. Mas aí devemos nos perguntar até que ponto as questões problemáticas de sua vida estão presentes no trabalho. Também precisamos lembrar que os filmes não são feitos só pelo diretor. Naturalmente existem alguns focos de controle sobre o que é produzido e como, mas existe toda uma equipe por trás da produção que não pode ser ignorada. Além disso, é possível que ele seja relevado durante o processo de recepção do filme – o espectador que não sabe que o filme é do Woody Allen, ou mesmo quem seja o diretor, não vai assistir o filme como um filme do Woody Allen, porque isso não diz nada para ele.
Vai depender do espectador, separar o autor do filme, a partir das informações que ele tem sobre ambos. Para quem conhece as acusações, elas tendem a influenciar a recepção dos filmes. Da mesma maneira que o espectador lê uma crítica antes de ver o filme. Assim como trazemos referências de outros filmes, das notícias que correm nas mídias, ou também do que os próprios atores decidem compartilhar em seus perfis nas redes sociais. São informações que, dependendo da relevância para o espectador, acabam participando da experiência cinematográfica. E isso não é nenhuma novidade – o star system hollywoodiano, por exemplo, foi em parte construído em cima das revistas de fã que relacionavam as vidas dos atores com os personagens que interpretavam.
Enfim, vamos ao filme.
Desconstruindo Harry desconstrói Harry Block (Woody Allen), um escritor de sucesso que está passando por um período de bloqueio criativo. A trama se desenvolve a partir de uma homenagem que o personagem vai receber de sua antiga universidade. Um feito que realmente merecia atenção, pois ele tinha sido expulso de lá. Mas por ter afastado todos de sua vida, Harry não tem ninguém para acompanhá-lo. Ele, então, chama a prostituta Cookie (Hazelle Goodman) para não ir sozinho. Quando vai embarcar em sua viagem até a universidade, seu amigo Richard (Bob Balaban) decide ir também como um agradecimento por Harry tê-lo acompanhado em uma consulta cardiológica. Para fechar o excêntrico combo, o protagonista sequestra o próprio filho na escola para ir junto e ver o pai sendo homenageado.
A jornada ganha um toque de road movie, e o espectador viaja tanto com Harry até a universidade, quanto por suas obras e lembranças. As representações das memórias de Harry confundem-se com as representações de seus livros e contos. Os personagens dessas obras passeiam pelo filme e interagem com o escritor. Eles são inspirados em pessoas que passaram por sua vida, o que ainda gera várias brigas com seus (ex) familiares, que não gostam de como estão expostos e descritos. Harry nem tenta disfarçar as semelhanças também, sua ex-esposa Jane aparece como Janet em um de seus livros.
Essa e outras decisões ‘sem noção’ do protagonista ajudam a desenvolver o humor do filme. E o ouro está especialmente nos diálogos. Por exemplo, quando Harry fala que ouvir as palavras “eu te amo” é ouvir “é benigno”. Ou quando perguntam se o personagem interpretado por Robin Williams, um ator que ficou literalmente desfocado, comeu alguma coisa estranha, ou “frutos do mar”. Desconstruindo Harry combina esse humor com momentos de tensão, e às vezes é aquele famoso “rindo de nervoso”. Típico dos filmes roteirizados por Woody Allen.
A montagem cheia de jump cuts é um ótimo recurso para essa representação labiríntica que mistura memória, presente, desejos e arte. O jump cut é um estilo de corte entre os planos que gera uma aparente descontinuidade na narrativa audiovisual. Assim como nos lembramos de nossas memórias e sonhos de maneira fragmentada, os planos do filme muitas vezes “pulam” momentos, gerando elipses, ou repetem o mesmo evento – como por exemplo na sequência inicial, intercalada com os créditos, em que há vários planos seguidos da ex-amante de Harry, Lucy (Judy Davis), saindo de um táxi de maneiras ligeiramente diferentes.
Essa repetição ocorre também através de fixações do personagem. Ele tenta, por exemplo, impedir diversas vezes que sua ex, Fay, casasse com outro homem. E há várias cenas em que Fay diz ter sido o próprio Harry quem pediu para que ela não se apaixonasse por ele. A reiteração desse diálogo é uma dolorosa lembrança do protagonista, que parece ecoar como um arrependimento para ele. Afinal, ele acabou se apaixonando por ela.
A montagem fragmentada logo me lembrou das obras do francês Alain Resnais, filmes que também utilizavam esse recurso para representar a enunciação de seus personagens, a maneira como enxergam o mundo, o que pensam e lembram sobre ele. Em Desconstruindo Harry, a fragmentação também se alinha com a enunciação de um protagonista alcoólatra e viciado em remédios.
Desconstruir Harry é observar a cada sequência uma questão diferente do personagem. Vários eventos e histórias aparentemente desconectados vão se somando e contando sobre um lado diferente de Harry. Um medo diferente, uma ânsia diferente, um amor diferente. Os personagens que ele cria não são apenas representações das pessoas que passaram pela sua vida, mas também reflexos de como ele mesmo se enxerga e de seus conflitos internos. Como a personagem Helen (Demi Moore), que se torna uma judia fervorosa após dar à luz, é inspirada na meia-irmã de Harry e em uma de suas ex-esposas, e revela o conflito de Harry com a crença no judaísmo.
Chegando ao fim do filme, uma estudante revela que gosta de desconstruir os livros de Harry, porque são tristes na superfície, mas revelam um otimismo quando analisados de perto. Isso é uma dica de como Woody quer que vejamos seus filmes. Lembrei na hora de quando Woody colocou em seu Para Roma com Amor uma representação do famoso personagem operístico, Pagliacci, o palhaço que chora, de Ruggero Leoncavallo. É como se fosse mais uma metáfora para seu estilo. Choramos e rimos. Woody Allen vive nesse conflito, e, assim, seus espectadores. E apesar das tristezas, das dores, das nossas próprias sombras que os filmes trazem à tona, eles trazem a possibilidade de conforto. Evocam a esperança. Harry aceita que seu amor tem outro amor. Harry consegue superar seu bloqueio criativo.
Chegamos tão perto desse protagonista anti-herói, olhamos tanto sua intimidade, e ainda assim não perdoamos todas as suas falhas. O próprio filme parece não se perdoar. No fim, uma homenagem feita por todos os personagens criados por Harry é como uma redenção. A arte escapa do controle de seus idealizadores. Os personagens que criaram tanta dor para alguns, podem ter entretido e ajudado outros, e isso não justifica os estragos causados. O protagonista ainda está em processo de perdão, dos outros e de si mesmo. E o filme termina em um processo de criação, com Harry escrevendo sua próxima obra. Seus conflitos ainda não estão resolvidos, o filme parece inacabado. Mas desconstruir não tem fim.
Assistir Desconstruindo Harry separando a vida pessoal de Woody Allen do filme vai depender de cada espectador. Algo que será feito consciente ou inconscientemente. Se me permitem uma opinião pessoal mais explícita, como espectadora e fã, eu fico realmente triste em saber das acusações. Os ídolos talvez sejam mesmo de cristal.
Desconstruindo Harry (Deconstructing Harry – USA, 1997)
Direção: Woody Allen
Roteiro: Woody Allen
Elenco: Woody Allen, Bob Balaban, Billy Crystal, Judy Davis, Hazelle Goodman, Tobey Maguire, Demi Moore e Robin Williams
Gênero: Comédia
Duração: 96 minutos