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Crítica | Desventuras em Série: Cidade Sinistra dos Corvos, Hospital Hostil e O Espetáculo Carnívoro

CIDADE SINISTRA DOS CORVOS

Cidade Sinistra dos Corvos, sétimo livro, além de marcar a metade da série, marca a transição entre a fórmula já conhecida de Snicket – órfãos designados a um novo tutor, Conde Olaf disfarçado e inutilidade do Sr. Poe – e um novo curso da história.

Após o plot twist de que a tutora mais rica da trama, Esmé, era namorada e cúmplice de Olaf no sequestro dos Quagmire, as crianças são colocadas aos cuidados dos moradores de uma cidade chamada Cultores Solidários de Corvídeos. Inevitavelmente, para o leitor que acompanhou a série até o momento, estas não são mais iniciais aleatórias, já que Lemony continua forçando nossa atenção para o real significado de C.S.C.

Mesmo contendo todos os ingredientes para ser guiado como suspense, o sétimo volume é repleto de detalhes que ridicularizam a cidade, o que torna mais cômico do que os livros anteriores. O autor insere várias regras sem sentido e contraditórias na cidade – como as regras 19.833, que afirma claramente que nenhum vilão é permitido dentro dos limites, e a 961, que determina a quantidade exata de castanhas que devem existir nos sundaes.

Embora a tutela da vez sejam todos os moradores da cidade, quem realmente cuida das crianças é o novo personagem, Hector – que pelas características lembra uma mescla entre a doçura e os cuidados de Tio Monty e a covardia de Jerome Squalor. É a primeira vez em que temos um personagem com mais de 14 anos que funciona em um nível básico humano e não é um criminoso intelectual, já que ele escuta as crianças com uma mente aberta, observa os outros fora de si e se desenvolve à medida que a história avança. Ao longo das páginas ele passa de um homem amável, embora covarde, à herói no momento em que finalmente aprende a falar por si e pelos outros afim de fazer a coisa certa, isso era algo que realmente estava faltando nas caricaturas dos personagens adultos da série.

Simbolicamente, além dos corvos estarem relacionados ao mau presságio e azar, são também ligados à sabedoria e, em algumas culturas, são considerados guias para os viajantes chegarem aos seus destinos. Snicket se supera e acerta em cheio ao escolher corvos como background para o sétimo livro, pois foca na mudança de curso da história, mistura o mau agouro da simbologia dos corvos com a temática da série e de quebra ainda faz alusão ao conto O Corvo, de Edgar Allan Poe.

Lembrando a proposta do quarto volume, Serraria Baixo Astral, Conde Olaf demora a aparecer e surge apenas no clímax, que, assim como nos outros livros, são as últimas páginas.

Para gerar ainda mais curiosidade nos leitores, Lemony nos apresenta Jacques Snicket, personagem que fisicamente se parece com nosso vilão, no entanto é apresentado como inocente, conhece os pais dos Baudelaire e, claro, tem o mesmo sobrenome do “autor” da série. Snicket está finalmente deixando pistas e mais pistas sobre o que parece ser uma grande conspiração contra os Baudelaire, os Quagmire e o recolho de órfãos em toda parte que têm grandes fortunas a serem adquiridas.

Ainda mais importante, a conspiração e a continuidade do enredo finalmente tomou o centro do palco. Estamos agora menos preocupados com os tristes incidentes isolados que acontecem aos Baudelaire e mais focados em consolidar e analisar pequenas dicas de todos os livros para resolver o quebra-cabeça abrangente. Ele aguça as habilidades dos leitores e aumenta cada vez mais o interesse do leitor.

O livro se encerra com a fuga de Olaf e Esmé, mas, pela primeira vez, o Sr. Poe não faz sua aparição nas páginas finais e as crianças não são transferidas para outra tutela.

HOSPITAL HOSTIL

O enredo do oitavo livro, Hospital Hostil, é completamente diferente de seus antecessores, já que os órfãos agora devem cuidar de si mesmos e são considerados fugitivos e assassinos do “Conde Omar” – que na realidade era Jacques, confundido com Olaf e assassinado pelo vilão para conseguir perseguir livremente as crianças. É o primeiro volume a introduzir a ideia de que as próprias crianças têm que optar por certas escolhas para sobreviver que, embora compreensíveis, não são “nobres” quando vistas isoladamente – como exemplo, mentir sobre suas identidades.

Isso começa sutilmente no oitavo volume, com a necessidade das crianças mentirem para enganar várias pessoas e se preservarem – como precisam fazer com Milt, dono de um armazém à beira da estrada. Snicket aumenta o tom irônico e faz brincadeiras logo no começo da trama, iniciada de modo desesperador para os Baudelaire que estão completamente perdidos até encontrem o “Armazém Geral Última Chance”.

Neste momento, a série se mostra mais anacrônica do que nunca, já que as crianças precisam operar um telégrafo para enviar um pedido de socorro ao Sr. Poe. No entanto, em diversos volumes anteriores, já eram usados telefones e, em O Inferno no Colégio Interno, um computador de última geração.

Acusados de assassinato, com seus rostos publicadora no jornal, e procurados pela polícia, os órfãos não tem outra saída a não ser entrar em uma van repleta de desconhecidos alegres, que trabalham como voluntários para a organização C.S.C – igual a Jacques Snicket. No caso, as iniciais correspondem a Combatentes pela Saúde do Cidadão, que basicamente são como Doutores da Alegria.

Lemony demonstra uma crescente sofisticação na ideia e linguagem dos romances – talvez com o pensamento de que seu público estava envelhecendo ao longo dos anos em que os livros foram sendo publicados -, geralmente tínhamos um guardião que, embora bem intencionado – mesmo que muitas vezes profundamente estúpido – não tem a fibra moral para agir quando a atitude requer alguma bravura, o que claramente delimita a diferença entre o certo e o errado e a covardia e a coragem. Já neste livro, as ações das crianças lentamente são colocadas em dúvida – usar os mesmos métodos de Olaf, se disfarçar, mentir e se aproveitar da cegueira de Hal para roubar suas chaves e quebrar as regras sobre não ler os arquivos pessoais não é algo correto, por exemplo, mas algo necessário para a segurança de suas vidas.

Durante seu emprego na Biblioteca de Registros do Hospital Heimlich, os órfãos descobrem que Jacques realmente conhecera seus pais e que havia mais uma pessoa, também única sobrevivente, no incêndio que destruiu a mansão Baudelaire. O autor, então, acrescenta mais um mistério aos incidentes e nos permite fantasiar sobre uma possível aparição de um dos falecidos pais, é uma manobra ousada e que poderia novamente mudar o curso da história, se verdadeira.

Os leitores perspicazes já devem ter percebido que ao longo da série muitos dos nomes escolhidos para os disfarces de Olaf ou de seus capangas são anagramas para Count Olaf, porém é primeira vez em que Lemony insere essa brincadeira com as letras no próprio enredo – os Baudelaires menores devem salvar sua irmã e descobrir seu paradeiro através de anagramas com o nome de Violet.

O livro é iniciado e encerrado do mesmo modo: com fugas não apenas de Olaf, mas também dos órfãos. É um dos livros com mais ação até agora, já que a tensão nos acompanha em todas as páginas e não mais apenas no clímax.

O ESPETÁCULO CARNÍVORO 

Assim como no oitavo livro, O espetáculo carnívoro foge da fórmula habitual de Lemony Snicket, fazendo com que os últimos livros tenham parcelas imprevisíveis que prendem o leitor em todos os momentos. Se você agonizou com os Baudelaires sendo perseguidos no meio do deserto, em Hospital Hostil, vai adorar o começo deste volume em que as crianças se escondem no porta-malas do maligno Conde Olaf, que segue em direção ao Parque Caligare.

Quando as crianças chegam ao Parque, que na verdade é um circo, elas descobrem a Casa dos Monstros e suas apresentações, com isso decidem que a melhor opção é se disfarçar e ficar ali por um tempo. Violet e Klaus se vestem como uma pessoa com duas cabeças, enquanto Sunny assume o disfarce de Chabo, o bebê lobo. Lá, eles se tornam os companheiros de outros três “defeituosos”, Hugo, um homem corcunda, Colette, uma contorcionista, e Kevin, que tem o infortúnio peculiar de ser ambidestro, isso guia o leitor em relação a questões sobre como a sociedade decide quem conta como uma aberração e pessoa normal.

É particularmente notável o estado de negação em que o assistente do conde Olaf, o homem com mão de gancho, se encontra, tentando afirmar a todos os momento que não é uma aberração. Em contrapartida, Kevin está convencido de que ter a mesma função em seus braços e pernas direita e esquerda é equivalente a uma deformidade terrível e deseja que ele fosse destro ou canhoto como as outras pessoas – o que chega a se tornar exagerado depois de muitas páginas de vitimização. Snicket introduz seus leitores às identidades políticas de deficiência, ele mostra as complexidades das questões desde o início, o que é primordial para guiar os jovens leitores à investigação filosófica da sociedade decidir o que é normal e o que é patológico. É um pouco perturbador ver como alguns dos “monstros” estão prontos a sacrificar qualquer princípio moral, a fim de ganhar amigos e ser tratados com respeito.

Além dos personagens novos, o autor nos permite conhecer e ficarmos mais próximos de outros, como a trupe de Olaf, por exemplo. Lemony, até então, os descreviam apenas com características físicas e os faziam soar tão cruéis quanto o nosso desprezível vilão. No volume, a namorada de Conde Olaf, Esmé, se mostra tão egoísta e ciumenta quanto ambiciosa – sem mencionar seu alto nível de manipulação e maldade para arquitetar assassinatos.

Snicket trabalha mais do que nunca na construção de seus personagens e em como o ambiente que os cercam podem transformá-los, como a ambígua Madame Lulu, que consegue trabalhar para os dois lados da série apenas seguindo o lema “dar às pessoas o que eles querem” – é uma personagem forte, no entanto é manipulada a todo momento por vilões e mocinhos.

Com inteligência, o autor acompanha o crescimento de seus leitores e desenvolve cada vez mais sua narrativa. Abusando da ironia, critica o lado negro das pessoas que pagam para assistir as aberrações, se divertem com os atos humilhantes e que estão dispostos a pagar mais se houver uma promessa de que a própria vida de alguém estará em risco. Os órfãos começam a enfrentar a difícil questão de sua própria moral posta em dúvida, já que em sua prolongada batalha com o Conde, eles mentiram e roubaram de pessoas que confiaram neles e destruíram bens valiosos, fazendo-os se aproximar e assumir truques e hábitos de Olaf – muitos leitores certamente serão levados a refletir sobre a natureza da virtude e a dificuldade de ser uma boa pessoa.

Sunny torna-se ainda mais presente e madura, demonstrando predileções culinárias e formando frases e palavras inteligíveis com mais frequência. Em relação ao vocabulário, Lemony começa a optar por escolhas mais sofisticadas como desmantelar, discernível, enervante, insípido, palatável, etc.

De modo sutil, o autor puxa assuntos mais pesados a cada livro, como a traição, crueldade animal, carnificina, homicídios em potencial e sequestros abordados em Espetáculo Carnívoro. No mais, é um excelente livro, com uma narrativa cada vez mais rica, e também o primeiro da série a terminar em um cliffhanger realmente puxado para o suspense.

 

Redação Bastidores

Publicado por Redação Bastidores

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