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Crítica | Desventuras em Série: Serraria Baixo-Astral, O Inferno no Colégio Interno e Elevador Ersatz

Serraria Baixo-Astral, O Inferno no Colégio Interno e Elevador Ersatz dão continuidade a Desventuras em Série e, entre todos os 13 livros, esses três com certeza carregam as situações mais tristes e angustiantes da saga.

SERRARIA BAIXO-ASTRAL  

Em Serraria Baixo-Astral, quarto livro, os irmãos Baudelaire são enviados para morar com seu novo tutor, que se intitula como Senhor. Esse é o primeiro e único livro em que as características físicas do tutor não são explícitas, já que a única certeza que Lemony nos dá é que o personagem possui estatura baixa e que seu rosto está sempre tomado por fumaça – o que impossibilita a visão das feições –, sem contar que seu nome tampouco é revelado pela “dificuldade de pronunciamento”.

Senhor é chefe da Serraria Alto-Astral, localizada numa cidade perdida e melancólica chamada Paltryville – ou “cidade miserável”, na tradução literal. No livro, Lemony Snicket usa as crianças para criticar o trabalho escravo e, principalmente, o infantil, pois são sujeitos a realizar trabalhos braçais e mexer em máquinas que deveriam ser pilotadas por adultos.

Carregado com a mesma ironia “à lá Daniel Handler” presente nos outros livros, os Baudelaire trabalham arduamente, assim como a grande quantidade de empregados adultos, que eram pagos com tíquetes de desconto no lugar de salário. Para não falarem mal do “maravilhoso” emprego, todos tinham uma pausa de cinco minutos no almoço e ganhavam um chiclete cada como refeição.

No volume, o autor espera muito que leitor interprete as ações para conseguir compor os personagens e suprir a fata de características físicas, por exemplo, Phill sempre vê o lado bom das coisas e isso o transforma em um extremo otimista e alguém contrário à proposta da série. Já o Senhor está sempre se exaltando e tentando se auto afirmar para todos. No caso de Charles, o medo e a insegurança ultrapassam os da Tia Josephine, em Lago das Sanguessugas, já que ele enxerga a situação, mas não toma atitudes por, ironicamente, se sentir inferior ao Senhor mesmo sendo sócios.

A medida em que o leitor chega na metade para o final do livro a leitura se torna angustiante e um pouco cansativa, pois o trabalho monótono se arrasta ao longo das páginas e o clímax, acompanhado de Conde Olaf, demora a chegar – diferente dos outros livros, em que a aparição é pouco antes da metade.

Como nos outros livros, o disfarce de Olaf é bizarro e, ironicamente, convincente para todos os personagens exceto os órfãos. Dessa vez, seu ressurgimento é como Shirley, uma mulher com uma placa de secretária que trabalha no consultório da Dra. Orwell – o mesmo recurso é usado em Lago das Sanguessugas, já que o meio de provar a identidade de Olaf era apenas um cartão escrito Capitão Sham.

Seguindo seu padrão de fazer alusão a escritores famosos, Lemony brinca com o nome de George Orwell através da Dra. Georgina Orwell. Também faz algumas relações entre a teoria do Big Brother descrita no romance 1984 – no qual o Estado tenta controlar os pensamentos dos cidadãos por meio da manipulação –, com a questão da onipresença de Olaf e a hipnose de Klaus.

Um dos pontos mais interessantes do volume é a inversão de habilidades de Violet e Klaus, já que em momentos cruciais, durante o clímax, Violet precisa pesquisar e descobrir os métodos de leitura de Klaus, e ele, por sua vez, precisa ter o pensamento rápido e a criatividade para invenções de Violet.

Depois dos Baudelaire encontrarem o cadáver assassinado de Tio Monty e verem o corpo de Tia Josephine ser devorado pelas temidas sanguessugas, o autor as faz presenciar mais uma morte, dessa vez de alguém sendo partido ao meio numa serra giratória. É curioso o modo com que Snicket consegue trabalhar toda essa morbidez sem tornar a leitura pesada para o público infantil, seu modo de deixar as situações subentendidas se torna excepcional nesses momentos.

O quarto livro se encerra com uma diferença na Carta ao editor, pois ao contrário dos primeiros três livros a página passa a ser personalizada de acordo com a situação em que o autor se encontra ao datilografar o próximo volume, no caso é a representação de um bilhete sujo no Barraco dos Órfãos.

O INFERNO NO COLÉGIO INTERNO

Mesmo após Serraria Baixo-Astral, Lemony não abandona totalmente a crítica ao trabalho infantil, pois faz a pequena Sunny seguir a mesma trajetória no quinto livro, Inferno no Colégio Interno. Na escola não havia um berçário, restando apenas empregar a mais nova dos irmãos como secretária do vice-diretor Nero na Escola Preparatória Prufrock.

O livro se inicia com uma das incríveis ilustrações de Brett Helquist, que nos mostra a enorme entrada do colégio e seu lema “Memento Mori” – em latim significa Lembre-se que morrerás”. Criada propositalmente para assemelhar-se a um túmulo, a frase e a imagem poderiam resumir a série toda.

Enquanto Violet e Klaus são obrigados a frequentarem aulas entediantes sobre histórias ditadas e cálculo de medidas de objetos, Sunny, mesmo sendo um bebê, precisa escrever cartas, fabricar grampos caseiros, grampear e organizar papeladas e, principalmente, atender telefonemas sem consegui dialogar com outras pessoas.

Lemony acrescenta mais dois antagonistas além do treinador Genghis – disfarce de Olaf no volume. São esses Carmelita Spats, que aliás não decepciona ao ser descrita como a “garota mais mimada e irritante do mundo” logo na abertura do livro, e o vice-diretor Nero, que parece carregar uma mentalidade três vezes menor do que a de seus alunos. Carmelita é o tipo de pessoa que faz a escola inteira se voltar contra alguém – como o “popular” bullying dos dias atuais. No caso, seus alvos são sempre os órfãos.

Somos apresentados aos trigêmeos Quagmire, que coincidentemente perderam os pais e um dos irmãos num incêndio, sendo, então, herdeiros de uma enorme fortuna. Previsivelmente os Baudelaires e Quagmires se tornam bons amigos, o que traz um pouco de alegria às crianças desde a sua estadia com Tio Monty e a Víbora-incrivelmente-mortífera, há três volumes atrás. Seguindo a proposta e estrutura da história, a felicidade tem prazo contado, principalmente após Olaf descobrir sobre a herança dos Quagmire.

O livro gera muita irritação pela junção de Olaf com Nero e Carmelita, pois os três têm o hábito de repetir em tom de deboche o que qualquer outro personagem fala, além de se auto elogiarem a todo momento. São como Olafs multiplicados.

Para os leitores atentos, Snicket abre a possibilidade de um sutil romance entre Violet e Duncan, mas decide não explorar esse drama, assim como a questão do bullying contra os órfãos. Lemony mais uma vez se destaca, já que na maioria dos livros infanto-juvenis encontraríamos alguma história de amor entre os personagens e uma possível reviravolta das dos personagens principais sobre seus antagonistas.

O autor critica também a confiança que temos nas invenções eletrônicas, como os “computadores de última geração”, popularizados na mesma época da criação da série. Mesmo sendo algo tecnológico e futurístico, não quer dizer que seja 100% a prova de erros, afinal, não passa apenas de algoritmos.

Continuando com a usual chuva de referências, Lemony faz alusão ao poema “The Love Song of J. Alfred Prufrock”, de T. S. Eliot, Genghis Khan e a poetisa grega Sappho. Sem contar o vice-diretor Nero, que como o imperador romano, seu reinado foi frequentemente associado à tirania e à ganância, além de supostamente ter tocado violino enquanto Roma ardia e ser famoso por ter forçado muitos de seus súditos a sentarem-se para verem longas peças teatrais criadas e executadas por ele próprio, o que se reflete nos concertos terríveis de violino do vice-diretor.

A medida que a história avança há um aumento nas estranhas lembranças de Lemony Snicket e, além de se tornar cada vez mais presente, o autor começa a dar pistas de que ele mesmo e a falecida Beatrice – sempre citada nas dedicatórias – fazem parte dos livros. Para aumentar o clima de mistério também somos apresentados a sigla C.S.C, que ao momento não significa muita coisa, apenas uma relação entre Conde Olaf, alguma descoberta fenomenal dos Quagmire e um indício do rumo que a saga tomará.

ELEVADOR ERSATZ

O sexto livro, Elevador Ersatz, é um pouco maior do que seus antecessores, dessa vez temos 230 páginas ao invés de 170, mas nada disso influencia na leitura, que continua fluida.

A narrativa gira em torno do nervosismo dos órfãos sobre seus amigos que foram sequestrados e a vida com os novos tutores, Esmé e Jerome Squalor, na Avenida Sombria, que faz jus ao nome.

O prédio 667 é o novo lar dos Baudelaire e também um prato cheio para criticar o poder da indústria da moda, já que a maior preocupação dos personagens adultos neste volume são coisas que estão in ou out – dentro ou fora de moda. De um jeito ácido e exagerado, Lemony nos mostra uma vizinhança inteira se sujeitando a mudar decorações, usar determinado estilo e se restringindo a comer apenas certos alimentos – mesmo que os deteste –, como é o caso de andarem no escuro, usarem ternos risca de giz, comerem apenas salmão ou tomar martínis aquosos e refrigerantes de salsa. Essa versatilidade e rapidez nas mudanças são propositais para assustar o leitor e o fazer refletir sobre como as pessoas mudam seus hábitos de acordo com os lançamentos.

Assim como no quarto livro, Snicket não usa a sequência de ações presentes nos volumes anteriores, desta vez, ao invés de Olaf aparecer e permanecer até o fim, ele desaparece e são as crianças que devem procurá-lo durante toda a narrativa, o que é um modo de representar o amadurecimento dos três irmãos.

Pela primeira vez, o destaque maior não foram as invenções de Violet ou pesquisas de Klaus, mas sim a coragem, maturidade e, é claro, os dentes de Sunny. A mais nova dos Baudelaire começa a mostrar sinais de seu crescimento, pois algumas de suas frases já conseguem ser entendidas sem a ajuda do autor, como “filavem” “vaivocê” “máova”. Já estava na hora de presentear a bebê mais inteligente com alguma cena importante e, após passarem por maus bocados no poço do elevador, é justamente a caçula que se prontifica a tirar os irmãos da enrascada.

A aventura é bastante dinâmica e tem diversos momentos de tensão, o autor tem a ousadia e a inteligência de não usar as palavras de forma convencional fazendo brincadeiras que vão além da escrita e conseguindo nos atingir de forma, digamos, pictórica – por exemplo, as duas páginas completamente pretas utilizadas em O Elevador Ersatz para representar a escuridão em um poço de elevador e o breu e o mistério que envolvem a morte.

Já sabemos da predileção de Lemony em fazer alusões e, no sexto livro, há uma abundância de referências e brincadeiras numéricas, como é o caso de existirem 1.849 janelas no edifício da Avenida Sombria e um livro sobre as botas que que estavam in em 1812 – 1849 é o ano em que Edgar Allan Poe morreu e existe um conto dos irmãos Grimm, chamado “As botas de couro de búfalo“, escrito em 1812. Há, também, a relação com o número do prédio, 667, que é o número sucessor de 666 – um número muitas vezes associado com o mal. Em uma brincadeira inglesa, 667 é “O Vizinho da Besta”. Além disso, existem 66 andares no edifício e este é o sexto livro, mais duas referências com o número seis.

No final do livro anterior, tivemos a descoberta da sigla C.S.C. que vai tomar espaço durante todas as demais aventuras e agora, com novos pontos à história – como a passagem secreta que interliga a Avenida Sombria a mansão dos Baudelaire, esse livro começa a nos preparar para um grande twist, tornando-a um pouco mais séria, sem nunca perder o ar gracioso de história infanto-juvenil.

Redação Bastidores

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