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Crítica | Detroit em Rebelião – Os exageros de Kathryn Bigelow

No final da década de 1960, a cidade de Detroit, no estado de Michigan, foi palco de intensos motins por parte da população afro-americana. Embora os ânimos estivessem acirrados há um certo tempo (Malcolm X Martin Luther King Jr. já tinham se tornado figuras famosas e o então presidente Lyndon B. Johnson, assinado leis que garantiam os direitos civis), o estopim desses distúrbios sociais foi uma visita violenta feita pela polícia a uma festa. No entanto, o grande acontecimento que marcaria para sempre a memória recente da história norte-americana se deu quando policiais e militares, após serem alvejados com balas de festim, invadiram um prédio e torturaram, física e psicologicamente, todos os homens e mulheres que se encontravam no local.

Atual, essa história é justamente o centro narrativo de Detroit em Rebelião, o novo longa-metragem de Kathryn Bigelow, a diretora de Guerra Ao Terror A Hora Mais Escura. Focando em algumas das pessoas que participaram do evento humilhante, como os jovens Larry (Algee Smith) e Fred (Jacob Latimore), o segurança Dismukes (John Boyega) e os policiais Krauss (Will Poulter), Demens (Jack Reynor) e Flynn (Ben O’Toole), a diretora e o roteirista Mark Boal, o seu colaborador contumaz, usam as histórias desses tristes personagens da vida real para compor uma narrativa sobre alguns dos problemas que assombram os Estados Unidos há décadas.

Todavia, Detroit em Rebelião é um filme que sofre pelas indefinições de sua estrutura geral. Desejando criticar o racismo, o abuso de poder da polícia e o sistema judiciário, a cineasta constrói três atos formalmente distintos, cada um com o seu próprio objeto de denúncia e lógica interna. Inegavelmente, isso deixa a narrativa episódica e acaba por gerar a incômoda sensação de que, na ânsia de abraçar integralmente um evento histórico cujas implicações morais, culturais, sociais e econômicas são gigantescas, os responsáveis se contentaram em dispor apenas os acontecimentos na ordem em que estes se desenrolaram, sem se importar com os efeitos disruptivos que eles poderiam exercer narrativamente.

O primeiro ato, por exemplo, é um extenso medley no qual os personagens principais e os seus respectivos dramas são apresentados. Aparentemente, o objetivo de Bigelow nesses minutos iniciais parece ser o de pintar um retrato quase documental da guerra civil que se alastrou pela cidade de Detroit (as inconvenientes inclusões de áudios, vídeos e fotos da época não deixam a menor dúvida a respeito disso), mostrando como violência sempre gera mais violência e que momentos de instabilidade política afetam diretamente a vida até mesmo daqueles que estão distantes.

Embora essa seja a melhor parte do filme (excetuando-se apenas uns destemperos dramáticos, como a cena em que vemos uma garotinha sendo morta por engano ou Larry cantando em um teatro vazio, mesmo quando o sentimento de decepção já tinha sido produzido no público), ela difere demais do ato seguinte, o qual é edificado quase que inteiramente sobre uma única cena. Nesta, que é uma espécie de drama de câmara, a cineasta retorna a um dos seus temas prediletos (a violência como um expurgo da masculinidade), mas peca pelos exageros e, principalmente, pela repetição constante de uma única nota.

Durante vários minutos, o público é obrigado a aguentar instantes de brutalidade que, logo no começo, tinham transmitido o seu caráter denunciatório, mas que, ainda assim, permanecem em cena por muito tempo. Dessa maneira, o choque inicial é substituído pela triste constatação de que estamos assistindo a um longo e desnecessário espetáculo degradante de sadismo estético. 

Já do ponto de vista narrativo, todos os arcos dramáticos introduzidos anteriormente são interrompidos pela decisão de acumular as ramificações e possíveis desenvolvimentos da história e dos personagens nesse tour de force, uma vez que os personagens principais se encontram no mesmo lugar e têm suas vidas modificadas por um mesmo episódio (o que nos faz lamentar não conhecer mais a fundo o interior de Larry, um sujeito alienado politicamente, mas revindicado pelo acaso, ou sabermos tão pouco de Dismukes, o sujeito mais complexo da trama e cuja performance hipnótica de Boyega nos faz simpatizar imediatamente com a sua personalidade).

O terceiro ato, por sua vez, se concentra nas sequelas emocionais e sociais da tragédia, com uma atenção especial para as engrenagens judiciárias e como elas encontram uma maneira de salvaguardar o interesse dos mais poderosos.  Isso faz com que o filme  se torne um drama de tribunal, com direito a suspense momentos antes do anúncio do veredicto. Intensificando a falta de estrutura, a narrativa decide por continuar acompanhando as dores de Larry apenas, abandonando muito rápido os outros personagens (nesse sentido, a escalação de Anthony Mackie como um veterano de guerra é completamente desperdiçada).

Tecnicamente, o longa mantém a mesma lógica visual ao longo dos três atos. É sabido que, depois de transitar entre diferentes estilos e gêneros cinematográficos, Bigelow encontrou na política estadunidense o seu campo de atuação analítica e no frenesi da montagem, na shaky cam e na aproximação perigosa com o documentário as características de sua assinatura artística. Em Detroit em Rebelião, isso se repete, porém, com resultados distintos das empreitadas anteriores. Aliás, denuncia uma certa incompetência técnica da diretora, já que, mesmo fazendo três filmes em um, empregou uma estética idêntica em todos eles.

Invariavelmente, o resultado disso tudo é um longa esquizofrênico, tanto nas várias propostas que faz (com resultados muito dessemelhantes) quanto na passividade de sua condução diante dos gêneros com que flerta. Além do mais, sofre em razão dos exageros, já que estes diminuem os impactos dramáticos sobremaneira e avizinham demasiadamente a história da mera denúncia, afastando-a do seu caráter artístico. De fato, Kathryn Bigelow se saiu melhor em outras oportunidade. Curiosamente, abordando temas tão espinhosos quanto os deste último filme.

Detroit em Rebelião (Detroit, EUA – 2017)

Direção: Kathryn Bigelow
Roteiro: Mark Boal
Elenco: John Boyega, Anthony Mackie, Algee Smith, Will Poulter, Jacob Latimore, John Krasinski, Ben O’Toole
Gênero: Drama
Duração: 143 minutos

Redação Bastidores

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