Apesar de não ser um dos maiores realizadores italianos e não possuir vasta filmografia, Valerio Zurlini certamente tem sua parcela de importância. Mesmo sendo repleto de ideologia, Zurlini sempre foi capaz de contar histórias com fundos sociais de panoramas complexos sobre injustiças e sofrimentos, mas também aliava isso a um escopo gigantesco de drama profundamente romântico e sensível.
Ainda que Dois Destinos não seja o longa mais comentado de sua breve carreira – este posto é o do histórico A Moça com a Valise, Zurlini traz seu melhor para a obra que apenas sofre de um roteiro excessivamente burocrático para uma história relativamente simples, mas repleta de complexidades emocionais que podem fisgar facilmente o espectador.
Amor Fraterno
Zurlini traz uma adaptação pouco conhecida de um romance ainda menos conhecido de Vasco Patrolini. Apesar de não haver muita clareza e objetividade no silencioso começo da obra, conhecemos Enrico (Marcello Mastroianni), um jornalista bastante pobre que recebe a péssima notícia de que seu irmão havia morrido naquela tarde. Desolado, Enrico caminha para sua humilde moradia e passa a recordar dos últimos momentos de Lorenzo (Jacques Perrin).
A maior burocracia da obra está no momento da transição para o enorme flashback que é todo o filme, pois Zurlini não demarca isso com muita clareza através de seu estilo sutil e pouco ousado com a montagem. Como o longa é basicamente conceitual, se apoiando incisivamente no texto, temos muitas cenas de diálogo entre os dois irmãos. Desde o encontro até a despedida.
Zurlini procura estabelecer um forte contraste social entre os dois homens, sendo Enrico o irmão mais velho. O drama envolve um grande trauma do passado já que o protagonista presenciou sua mãe abdicar da guarda do recém-nascido Lorenzo para um rico casal inglês. Os dois crescem separados. Um na fartura e outro na miséria. Mas enquanto um sofre com a realidade econômica de uma Itália complicada, ainda aproveita o amor maternal biológico, enquanto Lorenzo simplesmente vive dentro de uma bolha até decidir descobrir suas raízes.
Isso leva a uma infinidade de situações ternas e muito humanas com Enrico tentando acolher o irmão mais novo enquanto apresenta a dureza da vida real, dos problemas sociopolíticos do pós-Guerra e também a própria família – pelo menos a avó, já que a mãe dos dois já havia morrido. Entretanto, como temos somente essa longa apresentação e alguns poucos conflitos envolvendo a falta de noção de Lorenzo, rapidamente há um esgotamento narrativo já que os personagens parecem imóveis.
Não fosse a atuações hercúlea fenomenal de Mastroianni, o filme de Zurlini não teria grande impacto apesar do diretor ser talentoso em seu estilo romântico repleto de ênfase na grandiosa trilha musical acompanhadas de movimentos de câmera elegantes e vagarosos. Quando enfim chega na virada derradeira da obra, com a doença inexplicável de Lorenzo, temos o maior contraste entre indubitável qualidade e defeitos medíocres.
Os defeitos, infelizmente, se concentram na atuação de Jacques Perrin, extremamente fraco para conseguir oferecer o peso dramático que suas cenas moribundas tanto necessitam. E não ajuda nada o fato dele atuar do lado de Mastroianni que está inspiradíssimo transmitindo um amor tão forte por seu “irmão” que é quase palpável de tão realista. O texto também se comporta de modo bastante melodramático, além de Zurlini oferecer abraços acalorados e closes repletos de lágrimas quando a iminência da morte se aproxima.
Apesar dos dois destinos serem a principal mensagem da obra, da luta pelo viver, o espectador deve considerar o fundo político que Zurlini quer dizer aqui, afinal o contraste do rico com o pobre e da completa desestrutura do rico não são por acaso. O cineasta transmite a delicadeza do irmão mais favorecido através da jovialidade, fragilidade, das vestes sempre de tons mais claros, além da delicadeza completa das feições do ator. Já com Enrico, temos o contrário, afinal Mastroianni era bastante robusto e feições mais masculinizadas, além de sempre vestir roupas mais escuras e ser acostumado com a dureza do ambiente que vive.
Com isso, mesmo vivendo na sujeira e sem poder ter grandes perspectivas de futuro, Zurlini faz de Enrico um lutador apto para encarar as enormes adversidades do viver enquanto Lorenzo, seu completo oposto, não. Adoece e padece. Mesmo que seja uma visão simplista entre classes, o cineasta é bastante terno em afirmar que não importa se somos ricos ou pobres, todos são irmãos sofredores em um mundo indiferente.
A Crônica Familiar
Há sim diversos probleminhas com Dois Destinos, principalmente nos que tangem a montagem e a fluidez desta boa história que Zurlini pretendeu contar. Com tanta delicadeza e um olhar realmente humano sobre o problema atemporal da enorme desigualdade, o cineasta italiano criou um pequeno clássico repleto de grandes momentos com uma atuação assombrosa de Mastroianni.
Dois Destinos (Cronaca Familiare, Itália – 1962)
Direção: Valerio Zurlini
Roteiro: Valerio Zurlini, Vasco Pratolini, Mario Missiroli
Elenco: Marcello Mastroianni, Jacques Perrin, Salvo Randone, Serena Vergano
Gênero: Drama
Duração: 110 minutos.