Tem vezes que o santo bate e tudo dá certo. Ou algo perto disso. No cinema, as chamadas “duplinhas” existem e são muito festejadas quando feitas direito tal como Scorsese-De Niro, Scorsese-DiCaprio, Hitchcock-Stewart, Nolan-Bale, entre outras. As mencionadas, evidentemente estão na seção “diretor e ator”.
O que poucos podem saber é que até mesmo Daniel Day-Lewis já teve seus dias de grandes parcerias antes da festejada com Paul Thomas Anderson. Jim Sheridan e Day-Lewis sempre vão compartilhar algo muito especial, afinal, o filme que tirou os dois do anonimato foi o mesmo: Meu Pé Esquerdo. Através de uma performance espetacular de Lewis ao encarnar o paralítico Christy Brown, o filme relativamente medíocre conseguiu se tornar um verdadeiro clássico do Cinema.
Com Sheridan já adquirindo certa experiência com seu filme de estreia e, depois, em 1990, com Terra da Discórdia, já era de se esperar uma melhora substancial nas suas habilidades: tanto na direção quanto no roteiro. Retomando a parceria com Day-Lewis, Sheridan embarcou em outro drama biográfico tão poderoso quanto a vida de Christy Brown: a prisão injusta de Gerry Conlon e a maior parte de sua família pela Justiça Britânica ao serem acusados de participarem dos infames bombardeiros do IRA – Exército Republicano Irlandês, no Reino Unido na década de 1970.
O grupo terrorista clamava por guerra usando táticas de guerrilha bombardeando diversos lugares ocupados por pessoas com poder no governo britânico para que apelassem às negociações e atendessem as demandas reintegralistas do IRA que desejava anexar a Irlanda do Norte à República da Irlanda.
A Problemática da Boa Escrita
Jim Sheridan, como de costume, não largaria a oportunidade de adaptar mais um roteiro. Mesmo com o co-roteirista Terry George ao seu lado, alguns vícios negativos do diretor/roteirista ainda assombram Em Nome do Pai. Concentrado em trazer a história de superação de Conlon através dos quinze anos que ficou na cadeira, Sheridan opta em contar a história desde a transição da adolescência para a idade adulta do protagonista.
Porém, antes mesmo de chegarmos a esse fato, Sheridan pensa que seu filme só será em 1993, quando a discussão sobre o caso ainda estava em pauta e, logo, temos o primeiro deslize do longa: a completa falta de estabelecimento sobre a situação do IRA e da Inglaterra no momento. O roteirista já apresenta uma narração over do próprio protagonista contando sua história, mas, ao mesmo tempo, sabemos que se trata de um flashback, pois uma personagem misteriosa é quem escuta as fitas. Logo, temos novamente uma narrativa não-linear que consegue ser pior estruturada que a vista em Meu Pé Esquerdo.
Passado esse estranhamento inicial, é possível compreender, enfim, o que Sheridan pretende fazer ao mostrar os anos jovens de Gerry Conlon. Nisso, muitas coisas são estabelecidas com muita competência – inclusive por parte da direção. Conhecemos a família honesta do personagem que vive em um bairro pobre e já totalmente sitiado pelos efeitos devastadores das batalhas entre o IRA e o exército britânico, tão pouco celebrado quanto o grupo terrorista.
Com uma vida de gatuno e malquisto em uma terra sem oportunidades, Gerry e seu amigo Paul partem para Londres para viver com alguns hippies. Ao começar a namorar uma das moradoras da residência comunitária, um dos colegas, ciumento e apaixonado, os denuncia para a polícia, acusando que são terroristas do IRA. Nisso, com o desespero do clamor da população por resultados contra os bombardeios, a polícia rapidamente captura os dois e quase toda a família Conlon os denunciando como os culpados pela explosão do pub Goldford. Após ser torturado, Gerry assina a confissão e acaba preso com seu pai Giuseppe por um período que se estenderia por quinze anos.
Todo esse trecho da vida libertina do Gerry como um vadio serve muitíssimo bem como a introdução de um amadurecimento forçado do protagonista, além de fazer valer o nome do filme ao pé da letra: Em Nome do Pai. Embora pareça gratuito, quase todo o segmento da cadeia é centrado no conflito entre pai e filho, ambos condenados injustamente.
É algo problemático e, ao mesmo tempo, eficaz. Não fosse o poder de Daniel Day-Lewis encarnando Gerry e também da ótima atuação de Pete Postlethwaite como Giuseppe, pai de Gerry, o roteiro de Sheridan seria facilmente avacalhado. Para as discussões que motivam diversas ações e parcerias que os personagens tomam, muito é feito através de exposição. Se não fosse por Day-Lewis e toda sua expressão de sofrimento ao revelar seu ressentimento com o pai, o motivo facilmente se tornaria risível. Felizmente, a dupla segura muito bem o filme e faz os diálogos parecerem de primeira classe – aliás, que trabalho impecável de sotaque que os dois apresentam.
O maior problema do texto de Sheridan é essa esquisitíssima escrita fragmentada que ele já apresentava no seu filme de estreia. Não há qualquer preparo para as reviravoltas, já que elas simplesmente ocorrem de súbito. Quase todas sofrem do mesmo problema que se agrava nas mais importantes: a chegada de um preso que pode mudar o destino do julgamento de ambos, do avanço da precarização do estado de saúde de Giuseppe e até mesmo da chegada de uma nova advogada para rever o caso.
Mesmo sendo rasteiro e não possuindo o menor traquejo para lidar com mais cuidado com alguns personagens, as mensagens do filme são poderosas e eficientes a ponto de tornar os personagens mais complexos. Vemos a necessidade de Gerry por uma figura paterna na cadeia mesmo que isso traga consequências pesadas, o crescimento do protagonista em distinguir o certo e o errado, finalmente criando a sua moral, além do relacionamento com outros presos. Infelizmente, Giuseppe acaba rapidamente de lado, mas pela presença forte de Postethwaite, acabamos presos ao personagem e muito sensibilizados com sua situação.
É algo forte o suficiente para que compreendamos enfim a evolução final de Gerry no terceiro ato, se tornando um homem disposto a retomar as esperanças e lutar por sua liberdade. Assim, o personagem se transforma e mantém a moral do filme bastante viva. É particularmente interessante o posicionamento tão anti-Estado que o longa afirma, colocando em cheque todo o sistema de justiça britânico e da corrupção ética e moral em níveis muito poderosos da sociedade. Afirma os perigos da expansão de poderes e da injustiça que destrói vidas. Infelizmente, prisões injustas acontecem muito mais vezes do que imaginamos e Sheridan é feliz em colocar essas críticas de modo explícito.
Claro, sendo uma mensagem totalmente contra o establishing político atual e da esfera de governos que só desejam mais poder, Sheridan é particularmente inteligente em criticar também o tão amaldiçoado imperialismo e suas diversas consequências. É como se ele fosse obrigado a chutar o alvo que todos chutam para que conseguisse emplacar a mensagem do filme – isso, por si, já é um fato perturbador.
É importante destacar que diversas divergências históricas dos fatos com o que realmente foi adaptado, mas nada que fuja absurdamente do que foi retratado.
Passos na Direção Certa
Em Nome do Pai é o terceiro filme dirigido por Jim Sheridan e há sim uma nítida evolução quando comparado ao seu primeiro longa. Finalmente o ar teatral antiquado se foi, não mais envelhecendo o filme do que o apropriado. Sheridan explora mais pontos de vista, tem uma decupagem muito mais dinâmica e interessante, além de flertar com tentativas autorais – mesmo que pouco memoráveis.
No começo do longa, ele tenta tornar a imagem e o personagem em um só, rebeldes perdidos no caos. Logo, a música é mais acelerada, jovial e intrusiva. A montagem é igualmente acelerada tentando conferir dinamismo a esse segmento inicial que pode ser sim desinteressante. Depois do ocorrido, Sheridan assume postura mais clássica, mesmo que aposte tão pouco no poder visual de suas composições para transmitir mensagens.
As figuras contrastantes entre pai e filho vem pelas representações visuais óbvias e já muito manjadas, além do trabalho estupendo dos atores que guiam o filme. É raro ver um ator tão comprometido com seus papéis como Day-Lewis e sua indicação ao Oscar aqui é tão merecida quanto as outras. O ator consegue trazer tantas faces a um personagem que poderia ser tão superficial que o torna vívido e complexo. É uma magia que se repete em cada uma das suas atuações: trazer personagens à vida real. Ao fim do filme, a transformação é tão plena que se torna quase inacreditável: Gerry parece uma pessoa completamente diferente. É surreal.
Já tinha mencionado outro detalhe da direção de Jim Sheridan no trecho do roteiro, mas como isso reflete no visual, vale a menção novamente. Sheridan simplesmente não sabe fazer elipses ou usar a linguagem cinematográfica para atenuar as passagens de tempo. Claramente perdido nisso, as cenas mudam e os personagens dizem em diálogo que se passaram cinco anos ou mais. É completamente preguiçoso além de tornar o longa todo fragmentado. Mesmo que passe longe de perder a coesão, há momentos bizarríssimos pelas escolhas do diretor na montagem. A mais clara delas é quando Gerry é transferido para outra prisão, fala uma frase e depois já o contemplamos retornando para a prisão original.
Isso se torna ainda pior quando, aparentemente, as duas linhas narrativas convergem: a do flashback narrado quanto a atual. É particularmente estranho que Sheridan opte em preservar essa ordem depois que a personagem de Emma Thompson é apresentada, já que é ela quem ouve as fitas de Gerry. Novamente, é confuso, mas nada impossível de compreender. Apenas é uma aresta muito feia dentro do filme.
Esses problemas de montagem e falta de momentum cinematográfico já assombravam Sheridan em seus trabalhos anteriores e aqui se torna simplesmente evidente que ele não consegue superar essas falhas mesmo depois de três filmes. Quando o clímax chega, o espectador só o reconhece quando os créditos sobem, pois Sheridan simplesmente não sabe preparar esse clima cinematográfico tão inerente ao ápice de uma narrativa, já que toda a linguagem é pasteurizada em seu ponto de vista esquisito.
Por isso, Em Nome do Pai não é visualmente memorável, mesmo tendo bons cenários, incluindo o da prisão e da corte. Em determinados momentos, felizmente, Sheridan consegue criar coisas maravilhosas como uma homenagem dos presos em uma noite silenciosa e aparentemente sem esperança, uma projeção de O Poderoso Chefão para os presos e, principalmente, na caminhada de Gerry como um homem livre ao sair pela porta da frente. São momentos poderosos que evidenciam sim certo talento do diretor.
Em Nome do Pai… E do Filho
Mesmo considerado também um clássico dos anos 1990, Em Nome do Pai é um filme com diversas falhas que provavelmente são escondidas diante de tamanho espetáculo que Daniel Day-Lewis e Pete Postethwaite nos oferecem em suas atuações dignas de lágrimas. É através da competência dos dois em se tornarem quase projeções reais em sua sala que temos uma mensagem tão forte e eficiente para esse filme que, embora não consiga competir nem de perto com os maiores clássicos do subgênero de dramas em penitenciárias que já deram a graça de existir, consegue nos impactar o suficiente para memorizar sua moral.
Em Nome do Pai (In the Name of the Father, EUA, Reino Unido, Irlanda – 1993)
Direção: Jim Sheridan
Roteiro: Jim Sheridan, Terry George, Gerry Conlon
Elenco: Daniel Day-Lewis, Pete Postethwaite, Emma Thompson, John Lynch, Corin Redgrave
Gênero: Drama biográfico
Duração: 133 minutos