Henry Spencer (Jack Nance) nasce em meio ao caos dum mundo acromático e pós-industrial. Ele é um verme das máquinas, mera engrenagem. Usa terno, tem postura passiva e mantêm a estranha aparência: o cabelo espetado acima dos limites convencionais, assemelhando-se a uma árvore morta, sem folhagens. É um alerta para ruína interna desse personagem.
O primeiro longa-metragem do cineasta David Lynch, Eraserhead, foge ao habitual, apesar de haver protagonista, diálogos e narrativa mais ou menos linear. É um filme um tanto difícil, carregado de símbolos e excesso de sentido. Ou um “sonho sobre as coisas sombrias e inquietantes”, segundo o diretor. A premissa simples coloca Henry preso na agonia de descobrir-se pai duma criança prematura de sua ex-namorada, Mary X (Charlotte Stewart).
David Lynch situa um mundo absurdo, onde as reações e relações entre pessoas são anormais. Tipos se encaram durante planos longos sem dizer nada, se assustam repentinamente, conversam e se comportam de maneira imprópria. É com essa estranheza ondulante que inunda os ares daquele ambiente, aliada à angustiante trilha sonora de Alan Splet, que o tom se define.
O gore também tem grande papel na película. Durante o jantar familiar, um pequeno frango assado no prato de Henry expele líquido viscoso intérmino quando espetado por ele. Seu filho, ainda internado no hospital, parece ter algo de errado além do nascimento prematuro. “Eles [os médicos] nem ao menos sabem se é um bebê!”, desespera-se Mary. E não é. A pequena besta mais se assemelha a um feto subdesenvolvido de cabrito. Algo repulsivo, liso, viscoso e envolto por ataduras, com visual e mecânica motora desenvolvidos pelo próprio Lynch – que não revela a ninguém como fez.
A relação de matrimônio é perturbadora para ambas as partes. A criatura recém nascida chora de forma estridente, tirando o sono do casal. Durante a noite, Mary se debate e expectora pelas partes íntimas organismos que se assemelham a espermatozoides do tamanho de cobras. Talvez um sinal físico do quanto a maternidade está consumindo-a. Ela tem surto psicótico e decide abandonar o protagonista, deixando-o preso em seu próprio apartamento com o filho indesejado. Sua passividade começa a mostrar sinais de ruptura.
A missão de cuidar do feto torna-se um fardo ainda maior quando este adoece e excreta líquidos pustulentos de feridas no rosto. H. Spencer, então, manifesta seu subconsciente na forma de uma mulher loira de bochechas avantajadas (Laurel Near), que pisa em cima dos mesmos espermatozoides que encontrara saindo da esposa, enquanto canta que “no céu tudo está bem”. A vontade em se livrar daquela situação começa a prevalecer.
Lynch constrói o ritmo de seus filmes a partir do âmago e não do cérebro. Ele deixa que os sentimentos conduzam a narrativa e, no caso de Eraserhead, esses são estranheza, desconforto, aflição, nojo; transferidos do protagonista para o público. Não somos permitidos uma saída que não seja perder a cabeça como o personagem – este o faz “literalmente”. Henry, corroído pela dura realidade, ainda tenta buscar alívio no desejo sexual pela sedutora vizinha (Judith Roberts) durante passagem onírica. Em seguida, o “herói” busca o consolo da loira bochechuda, mas perde a cabeça em meio às ânsias e assume a persona de seu fruto. A cabeça, rolando só, é resgatada e carregada até uma suspeita de fábrica que transforma seu conteúdo encefálico em borrachas de lápis. As dores e angústias duma sociedade difícil e nada justa se transformam nessa goma capaz de apagar histórias. Talvez uma crítica a esse nosso lado, transformado em maquinário do sistema e corroborando com seu ciclo perpétuo. Ao invés de escrevermos nossos próprios contos, imortaliza-los, ou, quem sabe, sermos protagonistas deles, passamos uma borracha no sofrimento e seguimos em frente, em sucumbência.
Henry acorda. Ele se vê desprezado pela possiblidade de prazer com a imagem da vizinha cortejando outro homem. Henry não tem para onde escapar, então se transfigura em sua podridão, um espelho do herdeiro sórdido. A própria cria ri do pai e este comete seu primeiro ato incontido: o infanticídio. E finalmente tem a sonhada a libertação; através dum pecado extremo e do provável suicídio.
Em Eraserhead, David Lynch transforma a experiência da paternidade e do casamento num aflitivo terror gore com dose caprichada de suspense psicológico. E dessa mistura nasce o constante incômodo consequente no público. Há observações, por parte de Lynch, sobre algumas obrigações sociais com que deparamos na vida, além desejos suprimidos e a explosão destes. Pode-se dizer, então, que o diretor não precisou de um alto orçamento ou enorme equipe técnica – mais quatro membros, sem contar os atores – para conseguir, além de influenciar, apavorar inúmeras gerações.
Eraserhead (EUA, 1977)
Direção: David Lynch
Roteiro: David Lynch
Elenco: Jack Nance, Charlotte Stewart, Allen Joseph, Jeanne Bates, Judith Roberts, Laurel Near
Gênero: Terror
Duração: 89 min
Escrito por Rodrigo de Assis