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Crítica | Eu, Tonya – Margot Robbie brilha em biopic nada convencional

Histórias reais sempre são assuntos complicados em uma dramatização. Na maioria suprema dos casos, teremos muita romantização e deturpamentos dos fatos, de forma a garantir um entretenimento mais favorável, e isso não deve tirar o trabalho de qualidade do projeto; mesmo que longe de retratar a realidade, o resultado artístico é o que deve ser levado em conta no que diz respeito ao cinema – para um apuramento mais factual, documentários e reportagens estão aí. Dito isso, é difícil dizer o que é real e o que é ficção em Eu, Tonya, mas basta dizer que o pouco que é comprovado na vida de Tonya Harding encaixa-se na infame categoria de “tão inacreditável que só pode ser verdade”, e o filme de Craig Gillespie se diverte com isso.

Baseado na vida da famosa patinadora de gelo, acompanhamos todo o início de carreira de Tonya (vivida por Margot Robbie na principal fase), desde a criação difícil com sua mãe, LaVona (Allison Janney) até o casamento abusivo com Jeff Gillooly (Sebastian Stan), tudo isso enquanto Tonya tenta enfrentar a visão seletiva do comitê olímpico dos EUA e tornar-se a maior patinadora de sua geração. Porém, a história é mais conhecida pelo público geral graças ao escândalo onde uma das competidoras de Tonya sofreu um ataque misterioso dentro do ginásio, iniciando uma investigação policial que coloca a protagonista como suspeita de ter orquestrado a ação para sabotá-la.

Acredite, mesmo que a ideia de um biopic sobre uma patinadora de gelo possa soar desinteressante para a maioria, a forma como Eu, Tonya subverte os modelos de uma produção do gênero é capaz de surpreender a qualquer um. Inspirado no formato ácido, metalinguístico e autorreferencial das obras de Martin Scorsese – especialmente Os Bons Companheiros, Cassino e O Lobo de Wall Street – Craig Gillespie e o roteirista Steven Rogers partem para um filme de humor afiado e diversas brincadeiras com suas própria linguagem, desde a ocasional quebra de quarta parede, a narrativa não linear e o modelo de entrevistas “reais” com os personagens, onde vemos versões envelhecidas dos protagonistas prestando depoimentos para uma câmera jornalística, devidamente editada para simular o visual de uma fita cassete. Isso garante uma experiência dinâmica e divertida, levando a momentos em que determinada personagem está narrando algo enquanto uma sequência de cenas se desenrola, apenas para que ela mesmo complete a frase iniciada em off dentro de uma cena sendo exibida, às vezes até para contrariar uma fala ou informação, resultando em interjeições como “eu nunca fiz isso” diretamente para a câmera; um recurso usado com frequência, mas com precisão. 

Toda a situação do incidente polêmico envolvendo o ataque já é algo inacreditável demais, e a decisão de Rogers de tratá-lo como um grande esquema fraudulento é acertadíssima, trazendo até personagens mais cartunescos (e, novamente, inacreditavelmente verdadeiros) para compor uma grande sequência de decisões erradas, e seu texto e a condução de Gillespie – com uma câmera ágil e demarcada por movimentos ensaiados impressionantes – estão sempre nos reforçando o absurdo de tudo isso, com um humor negro muito bem-vindo. Novamente, a autorreferência é a chave para o sucesso da dupla; mesmo quando o filme acaba perdendo o ritmo e se concentrando demais em determinada narrativa, temos algum tipo de interjeição exatamente sobre isso, como no instante em que Allison Janney simplesmente desaparece da narrativa, e a própria aparece reclamando sobre sua ausência, praticamente lendo a mente do espectador. Até mesmo o fato de claramente vermos a cabeça de Robbie sendo inserida digitalmente na dublê que executa todos os passos de dança agrega ao debate do real e ficcional de Tonya – mesmo que esta curiosa ironia provavelmente não fora algo intencional.

Mas claro, não valeriam de muita coisa o roteiro e a direção se Margot Robbie não segurasse a fita na pela de Tonya, e felizmente a atriz entrega um trabalho sensacional. Se Robbie era uma força de carisma comprovada em filmes irregulares como Golpe Duplo e Esquadrão Suicida, aqui realmente vemos sua força como uma atriz, apresentando uma carga dramática assombrosa, mas que jamais destoa desse universo muito particular estabelecido pela direção. A atriz chora, grita, xinga, ri e faz tudo o que a figura complexa de Tonya requer, uma pessoa de crescimento difícil e que sempre procura o reconhecimento de seus “superiores”, sendo hilário ver Robbie encarando uma das comentaristas esportivas e rispidamente mandá-la “chupar um pinto” após um receber um comentário pouco agradável sobre seu trabalho. Na mesma nota, Allison Janney quase rouba o show na pele da enigmática LaVona, abraçando a personagem mais desagradável e irreverente da produção. A relação turbulenta com Robbie garante as melhores cenas do longa, e até mesmo as reais intenções de LaVona ganham uma envolvente ambiguidade, com a mãe justificando que o tratamento duro era o maior incentivo de Tonya.

Sebastian Stan também merece créditos por retratar com afinco a personalidade repungante de Gillooly, e atinge um feito notável: em todas as cenas em que não está sendo um marido abusivo e completamente violento, Stan retrata um sujeito que pareceria impossível de se cometer esse tipo de ato, podendo até mesmo ser uma figura com a qual poderíamos simpatizar – caso já não soubessemos de suas atitudes. Todo o escândalo do ataque à patinadora, que vem de sua iniciativa, é quase visto como uma forma distorcida do sujeito demonstrar seus sentimentos à Tonya. Nesse universo bizarro, é algo quase orgânico. Uma merecida menção também para Paul Walter Hauser, que diverte ao tentar convencer todos a seu redor que fora um agente da CIA, atuando agora como o “guarda-costas” de Tonya. Basta dizer que esse será o personagem mais odiado pela maioria, mas sem nunca tirar um sorriso do rosto.

Marcado por uma irreverência e uma metalinguagem irresistível, Eu, Tonya explora a vida e os abusos de sua biografada como poucas obras, rendendo uma experiência dinâmica e diferente do que estamos acostumados. Tem seus excessos, mas a performance central de Margot Robbie carrega todo o espetáculo, revelando-se pela primeira vez como uma atriz excepcional.

Eu, Tonya (I, Tonya, EUA – 2017)

Direção: Craig Gillespie
Roteiro: Steven Rogers
Elenco: Margot Robbie, Sebastian Stan, Allison Janney, Bobby Cannavale, Julianne Nicholson, Paul Walter Hauser, Caitlin Carver
Gênero: Drama/Comédia
Duração: 119 min

https://www.youtube.com/watch?v=iZbTLdDHRvs

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Publicado por Lucas Nascimento

Estudante de audiovisual e apaixonado por cinema, usa este como grande professor e sonha em tornar seus sonhos realidade ou pelo menos se divertir na longa estrada da vida. De blockbusters a filmes de arte, aprecia o estilo e o trabalho de cineastas, atores e roteiristas, dos quais Stanley Kubrick e Alfred Hitchcock servem como maiores inspirações. Testemunhem, e nos encontramos em Valhalla.

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