A história do Rei Arthur no cinema é algo que sempre me deixou estarrecido. Não sou um conhecedor TOTALMENTE aprofundado sobre as verdadeiras (ou mais fiéis) histórias, versões, re-contos da lenda do Rei Bretão que unificou o seu país contra as forças invasoras do mal e reinou em paz por muitos anos, mas é sim uma história que sempre me deixou instigado e encantado. Desde a clássica animação da Disney A Espada era a Lei quando ouvi falar pela primeira vez sobre a espada mágica chamada Excalibur e só quem poderia retirá-la da pedra e empunhá-la seria o verdadeiro e digno rei, e mais e mais fui conhecendo todas as histórias que a envolviam: o feiticeiro Merlin; os cavaleiros da Távola Redonda; o nobre cavaleiro Lancelot; e mais tarde os fatores mais sombrios como a irmã traidora Morgana; o filho bastardo Mordred, entre outros INÚMEROS fatores conhecidos pelos adeptos e conhecedores da inspiradora e trágica história do grande Rei Arthur.
E o que me deixa um tanto frustrado hoje, é que existem um bom número de adaptações cinematográficas dessa bem conhecida lenda, e não falo com exagero onde quase nenhuma faz real jus à história e lenda base! Não só por várias tomarem certas liberdades criativas em cima, algumas até bizarras, mas por verdadeiras qualidades cinematográficas MUITO aquém de verdadeiramente boas ou ótimas, algo que essa história tão mística merecia!
Algo que não acontece por exemplo no mundo literário onde encontramos várias obras que fazem grande jus a lenda, e entregam diversas versões diferentes, e várias interessantíssimas. Uma das que mais me agradam como As Brumas de Avalon onde vemos a história de Arthur pela ótica de Morgana sua irmã; minha favorita como a trilogia As Crônicas de Artur de Bernard Cornwell, uma versão mais realista e aterrorizamente brutal num nível digno de Game of Thrones (e me pergunto porque nunca tentaram fazer uma adaptação desta, já passou da hora dona HBO!); e Le Morte d’Arthur, um aglomerado, quase em formato de epopéia, de vários contos bem conhecidos que cobrem toda a história do reinado de Arthur, desde o reinado de seu pai Uther até sua morte, que são as versões mais popularmente conhecidas , e que serviram de grande base para este ambicioso filme de John Boorman!
Diretor mais conhecido infelizmente pelo infame O Exorcista II – O Herege, e não por alguns de seus ótimos e pouco conhecidos o drama Esperança e Glória e seu thriller policial À Queima Roupa, e que se mostra aqui ser talvez um verdadeiro fã da famosa lenda de Arthur e sua mística jornada. O filme está longe de ser perfeito ou integralmente leal à TODOS os mitos que circundam a lenda do Rei Arthur (essa minha adaptação dos sonhos não será feita tão cedo…talvez nunca), mas faz um GRANDE jus em conseguir capturar o “básico” dos elementos mais conhecidos da história, e em volta deles criam um verdadeiro filme de fantasia com uma aura quase poética, encantadora, e, por momentos, violentamente perturbadora.
Um Conto lendário em formato cinematográfico
Algo de interessante que se destaca logo de cara nessa adaptação de Boorman é exatamente esse formato de narrativa um tanto ousado que ele opta em seu roteiro junto de Rospo Pallenberg. A história não toma o ritmo mais convencional de um filme por assim dizer. O que vemos se desenrolar em tela é uma sucessão de acontecimentos em um ritmo quase imparável, e quando se nota, praticamente a primeira hora inicial do filme vimos o filme ter cobrido toda a jornada inicial desde feiticeiro Merlin em busca do nascimento de Arthur através de seu impetuoso pai Uther Pendragon, e a jornada do jovem rapaz em conquistar seu status de um digno rei após puxar a espada titulo da pedra. E na segunda hora sua derrocada trágica e os desafios malignos que se apresentam para o seu reino de Camelot graças à sua traiçoeira irmã Morgana.
E com certeza poderia se passar pelo típico caso de má estrutura narrativa, o que pra mim é exatamente o contrário. Pra começar que Boorman está longe de querer propor aqui um filme de estrutura convencional, o que mais se aproxima aqui talvez da definição “filme de arte fantasioso”. Com isso quero dizer que o diretor não está pouco se preocupando (muito) com o que é dito e aprofundado da história narrativamente, e foca nos acontecimentos e ações que se sucedem na vida de Arthur, Merlin e todos personagens em volta que assim compõem essa jornada. Talvez o perfeito “show, don’t tell!”.
Logo na intro do filme quando as seguintes frases aparecem na tela em ordem: A Idade das Trevas – O país dividido sem rei – “E desses séculos perdidos, nasceu uma lenda; Do Mago Merlin; Da Chegada de um Rei; Da Espada do Poder”. Tudo isso já sumariza de inicio, a incógnita da verdadeira época da existência do reinado de Arthur e estabelece a situação caótica que se passava na Bretanha, que para os mais adeptos de fatos históricos sabem, viu-se intensos confrontos entre tribos desgarradas e ainda invasões de povos germânicos por todo o território. E talvez a partir desse conhecimento, do caos e violência que se instalava na terra, nasceu uma lenda, de esperança e inspiração, a lenda de um Rei que unificou a todos e salvou a Bretanha. E com a sumarização dessa lenda com: O Mago – O Rei – A espada do poder, revela a estrutura que Boorman vai trabalhar aqui. Dar vida e forma à essa lenda tão bem conhecida.
A Fantasia Poética
Como eu disse, a forma que o filme se constrói, está longe de ser algo considerável “coerente”. Parece mais quase como um poema lírico, ou uma história de contos de fadas e cavaleiros errantes que pais contam para os filhos antes de dormir, tomasse forma na tela. Onde normas de ritmo pouco importam aqui.
Todos as principais e conhecidas etapas da história de Arthur: o incesto de Uther com Igraine fecundando o bebe Arthur com a ajuda de Merlin; a gloriosa retirada da Excalibur da pedra por Arthur o comprovando como verdadeiro Rei; a construção de Camelot e a távola redonda; o amor proibido entre Lancelot e Guinevere; o plano incestuoso de Morgana e a derrocada de Arthur; está tudo aqui presente, os momentos chaves da história sendo restituídos tal e qual possa ser imaginado em toda sua glória fantasiosa e mítica.
Tudo sendo composto e se formando graças à trilha sonora melódica e sinfônica digna de uma opera Européia de Trevor Jones, que mescla os momentos de contemplação e admiração do fantástico, e outros de som perturbador e bucólico nos momentos mais sombrios que a história se desventura. E a composição de cenas e Boorman parece quase um ensaio de teatro vivo. A cena de batalha inicial com cavaleiros saindo das sombras junto de uma figura gigante e misteriosa de Merlin, parece tudo um perfeito prólogo de uma peça de teatro.
Beneficiado ainda à isso, encontramos aqui o que ouso dizer ser uma EXTRAORDINÁRIA fotografia de Alex Thomson, que parece dar vida e movimento a todo o cenário natural do filme de forma tão abaladora e imersiva, como se a magia do filme nos engolisse para dentro dele com extrema facilidade. Ter assistido a esse filme no cinema deve ter sido uma experiência e tanto!
O RESUMO DA OBRA?
Mas não é uma obra que se sustenta em “resumir” os grandes e importantes momentos da jornada de Arthur. Sim, tudo flui nesse ritmo metódico quase lírico, sempre direto ao fio da meada, mas Boorman consegue fazer desses pequenos momentos serem emocionalmente grandes. Não só por ter realmente nos ter feito criado certa empatia pelos personagens em curto tempo, mas por orquestrar cada momento como um evento de extrema importância, como se os Deuses estivessem comandando tudo na terra, a trilha de Jones explode em altos arcodes e a fotografia ESTONTEANTE torna tudo tão grande e épico mesmo em pequena escala. Momentos como a retirada da espada da pedra ou a marcha final para a batalha são de puro arrepio emocional!
E isso até é salientado de forma inteligente na narrativa! Em um momento do filme o Merlin de Nicol Williamson diz para um jovem Arthur de Nigel Terry em um diálogo bem humorado, e de certa forma profético: “olhar para um biscoito é como olhar para o futuro. Antes de você provar, como você vai saber? Aí, claro, é tarde demais. (com Arthur mordendo o biscoito enquanto fissura apaixonadamente Guinevere sem ter prestado atenção a uma palavra) Tarde demais!” – seguido de um corte bem conveniente para anos depois com um Arthur já adulto, depois de anos lutando pelo seu país, mas ainda imaturo. Com Boorman salientando de forma forte na narrativa que o tempo e presente que se sucedem no filme, não passam de pequenas passagens que se assopram facilmente nessa história.
Isso pra quem já havia pensado que passava de uma narrativa fraquejada, o que é o extremo contrário aqui, tudo é salientado em quase uma tonalidade de profecia mítica, muito disso se deve a ILUSTRE presença de Nicol Williamson como o mais famoso feiticeiro da história, e ele merece TODOS os elogios possíveis aqui! Não só pela forma como Boorman o cria como ele se fosse um espírito espectro, encosto medieval, que aparece do nada em cena com sua longa capa preta, mas pelo ator Shakespeareano criar essa personalidade sempre misteriosa e ainda CHEIA de carisma mantendo um excelente nível de humor e certo ar carinhoso por vários momentos, e temido e intimidador em outros. Sem sombra de dúvidas a perfeita adaptação do personagem no cinema, e infelizmente pouco lembrado hoje!
E ironicamente, seu Merlin me lembrou um pouco ao Gandalf da trilogia Senhor dos Anéis (deixe-me explicar). A forma com que Merlin fala em certo momento: “chegou a era dos homens, a sua era Arthur como rei!” – me remeteu para a forma similar que Gandalf diz A MESMA EXATA COISA para Aragorn em Senhor dos Anéis. Peter Jackson seu safadinho! Se inspirou na lenda Arturiana e nesse filme para criar o arco de Rei de Aragon em sua própria trilogia. Talvez isso só mostre a grande influência que esse filme teve por muitos outros filmes de seu mesmo gênero, e comprova talvez sua grandiosidade a ser melhor conhecida e admirada!
UM SHAKESPEARE MEDIEVAL
A linguagem que é construída entre os personagens parece exatamente algo tirado de um texto de peça teatral classicista, com seus refinados vocabulários, ou como no caso de Merlin uma linguagem sempre profética mas carregada de um rico humor vindo de forma muito natural. E o mesmo pode ser dito do resto dos personagens. Talvez seja pela maioria ser de origem Irlandesa e Escosesa que a personalidade deles aflorem bastante (oras, Rei Arthur pode ser escocês, nunca julguei!). Mas não só por causa disso!
Boorman consegue mesmo destacar e desenvolver vários deles mesmo não focando total atenção dramática à todos para além de Arthur e Merlin que são os chamarizes em cena, tanto pelo carisma de Williamson quanto a devoção emocional que Terry demonstra em seu Arthur que começa como um jovem petulante e termina o filme como um rei maduro e perfeito.
Mas surpreendentemente conseguimos conhecer a maioria dos personagens à sua volta: como o cavaleiro Gawain de um jovem Liam Neeson que vemos ser manipulado inicialmente por Morgana, mas no final se mostra devoto e leal à Arthur; a paixão cega de Guinevere de Cherie Lunghi por Lancelot de Nicholas Clay um dos mais honrados cavaleiros mas que luta com suas impossíveis emoções de forma dolorosa; a inveja mortal de Morgana de uma sensual e traiçoeira Helen Mirren para com tudo do reino de Arthur; o jovem Percival de Paul Geoffrey que começa como um jovem rapaz sonhando em ser cavaleiro que perambula pelo Castelo e no final se mostra ser talvez o maior herói do filme ao ser o único sobrevivente da busca pelo santo Graal! E nesse estranho e lindo elenco ainda encontramos caras conhecidas de Gabriel Byrne (Os Suspeitos; Ajuste Final) e Sir Patrick Stewart, ambos muito bem também!
O Realismo Fantasioso
Outra coisa interessante é notar como Boorman lida com a ação do filme. Pode-se imaginar com ao vermos um bando de cavaleiros em cena com um bando de armaduras reluzentes, poderemos ver batalhas limpas bem coreografadas, mas não é bem o caso aqui…
Vemos os golpes sendo proferidos com certa dificuldade; os gritos de dor que se ouve são agonizantes; vemos membros sendo decepados e sangue jorrando de forma às vezes bem gráfica. Os cavaleiros têm as armaduras sujas de lama e sangue, e andam de forma lenta e dificuldade mostrando o peso das armaduras e talvez a dor de alguns ossos quebrados.
É como se seu diretor quisesse mesmo desmistificar o conto fantasioso que ele próprio dá vida aqui, adicionando essa dose de realismo quase seco nas batalhas que vemos se suceder na história, e um tom quase tenebroso e brutal na violência que se cria. E impressiona o nível de detalhe construído nela, quando vemos lanças ou espadas atravessando corpos e braços sendo cortados parece TUDO muito realista e ainda mais angustiante (e gratificante de se assistir). Um pré Game of Thrones?!
A História de uma Espada
Alguns até tem a dizer que Excalibur é uma bela bagunça, e que não tem nada a dizer sobre a história de Arthur e seu reinado. O que foi exatamente esse ser humano e o que fez; a importância de sua lenda; um resumo dos verdadeiros mitos?!
Talvez no final, a resposta esteja exatamente no título, a espada lendária. A arma que é retratada na história como uma arma criada no âmago da magia da natureza presente nesse universo e que só pertencerá ao verdadeiro e digno rei. O rei que com a espada se tornará um só com a terra, o líder perfeito!
O grande Boorman quis sim construir aqui uma jornada. Não só a jornada de um homem rumo ao seu destino de Rei, mas sim de como sua vida e história, se tornaram a lenda que todos conhecem em parte e se ecoa até hoje. E o filme talvez seja exatamente isso, uma lenda, fantasiosa ou real, em total vida cinematográfica! Não é o perfeito filme de Rei Arthur e sua história, mas com certeza BELÍSSIMO de se deslumbrar, encantar e talvez se inspirar!
Excalibur (Idem, EUA – 1981)
Direção: John Boorman
Roteiro: Rospo Pallenberg, Thomas Malory
Elenco: Nigel Terry, Helen Mirren, Nicholas Clay, Gabriel Byrne
Gênero: Fantasia, Drama, Aventura, Medieval
Duração: 140 min.
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