A figura do vampiro, reinventada ao longo dos anos, quase sempre estivera ligado ao desejo e à sedução, uma espécie de Lucifer, sempre capaz de exercer seu controle sobre a mente humana. Fome de Viver, estrelado por Catherine Deneuve, David Bowie e Susan Sarandon traz exatamente isso para a mesa, enquanto lida, de forma metafórica, com outras questões de nossas vidas, como o envelhecimento e o amor. Nesse longa-metragem de estreia de Tony Scott, o diretor nos traz, acima de tudo, uma experiência sensorial, que, conta, sim, com seus defeitos, mas que não deixa de ser menos apaixonante por isso.
A trama gira em torno de Miriam (Deneuve) e John Blaylock (Bowie), um casal de vampiros que após séculos juntos tem de lidar com o repentino envelhecimento de John, que a cada hora que se passa dá um gigantesco passo em direção à morte. Nesse contexto, Sarah Roberts (Sarandon), cuja pesquisa atual envolve o envelhecimento precoce, recebe a atenção dos dois e logo é criado um triângulo amoroso que apenas cresce enquanto o vampiro definha, indo em apenas um dia de um homem em seus trinta anos até um senhor no final de seus dias.
Com uma cena inicial que perfeitamente define a vida que os Blaylock levaram até então, Fome de Viver nos traz mais um interessante retrato da figura vampiresca, essa completamente envolta em seu manto sedutor. Toda a questão do envelhecimento de John lida perfeitamente com isso, ao passo que simboliza nossa própria percepção de nossas gradativas velhices: nos enxergamos sempre como alguém de vinte e poucos anos e, de uma hora para a outra, percebemos nossa verdadeira idade? A sociedade nos impõe fases na vida, mas até que ponto contamos com essa percepção no dia-a-dia? Não há um marco divisório claro entre infância, vida adulta e velhice, o que se altera é a forma como nos enxergamos e os constantes olhares no espelho por parte de John simbolizam isso com clareza.
O trabalho de Bowie como o personagem é um dos destaques da obra. Sentimos nele toda a angústia desse ser jovem, preso em um corpo que definha rapidamente. Sua interpretação que mistura o profundamente educado com o misterioso ainda evoca um sentimento de atração no espectador – muitas vezes olhamos para John e sentimos como se ele houvesse sido tirado diretamente das páginas de Anne Rice, que certamente influenciara o romance de mesmo nome do qual o filme fora adaptado. Tudo ainda fica mais perturbador com o excelente trabalho de maquiagem empregado no longa-metragem, que efetivamente consegue transformar o ator gradualmente – todo seu processo de envelhecimento, ocorrido em questão de horas, é fascinante e Scott, através de uma câmera fixa consegue empregar uma verdadeira melancolia ao acontecimento, se encaixando harmonicamente com a reclusa personalidade do vampiro.
Curiosamente, a situação pela qual John passa, de certa forma espelha a trajetória de David Bowie, que mesmo nos seus anos finais sempre fora uma figura bastante jovem. Seu retorno da aposentadoria nos entregou seus dois últimos álbuns – um deles, Blackstar, lançado dias antes de seu falecimento, como se, de fato, de uma hora para a outra, o artista houvesse repentinamente envelhecido. Além disso, seu câncer efetivamente o transformara, trazendo uma profunda mudança em sua aparência em poucos anos. Infelizmente pode-se dizer que a obra de Tony Scott antecipara os momentos finais dessa figura lendária.
Miriam, por outro lado, é o retrato da imutabilidade do vampiro, uma mulher que, era após era, encontra um novo parceiro para ter companhia. É interessante a forma como o roteiro progride sem nos dizer claramente a idade da personagem, apenas oferecendo pontuais dicas, como o Ankh que carrega em torno de seu pescoço e as estátuas de mármore que preenchem seu apartamento. Deneuve nos entrega uma mulher, de fato, imprevisível. Não sabemos até que ponto ela está de luto pelo que acontece ou se a preocupação gira em torno unicamente de si própria – há uma frieza em sua forma de ser, apenas para, em alguns momentos, ser substituída por um calor intenso de alguém que consegue efetivamente seduzir com apenas um olhar. Verdadeiramente, não sabemos nos decidir se gostamos ou não dessa figura, criando um paralelo imediato com a personagem de Susan Sarandon, que ainda é utilizada de forma bastante intimista a fim de trazer às telas o romance lésbico – tudo de maneira irresistível. Para quem assistiu American Horror Story: Hotel não há como não perceber a influencia da personagem de Miriam na construção da Condessa, interpretada por Lady Gaga.
O ritmo da obra, porém, sofre um certo baque em sua metade, conforme o foco da narrativa se altera completamente. É criada uma estrutura capitular e nossa imersão precisa, novamente, ser resgatada, ao passo que a história tira John de seu foco, substituindo-o por Miriam e Sarah. Com o passar dos minutos, felizmente, enxergamos como essa segunda metade dialoga com o que aprendemos na primeira e o roteiro de Ivan Davis e Michael Thomas cria um imediato paralelo com os relacionamentos pelos quais passamos ao longo da vida e como algo que parece que irá durar para sempre, poucos momentos depois, pode se tornar algo do passado. É formado um ciclo muito bem representado pela direção de Scott, que utiliza, inúmeras vezes, uma câmera em movimento lentamente circular, o que também transmite um tom erótico e místico às cenas.
Fome de Viver se encerra com um final bastante dúbio e perturbador. Seus momentos finais, colocados como exigência do estúdio são dispensáveis, ao passo que conseguem apenas confundir o espectador. Felizmente o que antecede tal cena é uma experiência apaixonante, que, apesar de seus deslizes, consegue nos trazer uma fascinante história de vampiros, que perfeitamente dialoga com aspectos de nossas próprias vidas.
Fome de Viver (The Hunger – Reino Unido/ EUA, 1983)
Direção: Tony Scott
Roteiro: Ivan Davis, Michael Thomas (baseado no livro de Whitley Strieber)
Elenco: Catherine Deneuve, David Bowie, Susan Sarandon, Cliff De Young, Beth Ehlers, Dan Hedaya
Gênero: Drama
Duração: 97 min.