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Crítica | A Forma da Água – O Ápice Criativo de Guillermo Del Toro

É sempre bom aproveitar a chance de vermos um cineasta tão talentoso como Guillermo del Toro ainda trabalhando incansavelmente nos dias de hoje e entregando um novo ambicioso projeto, e poder, através disso, relembrar de sua filmografia até então, relembrando o cineasta tão único e especial como ele é. Podendo vir a notar, não só sua variedade em gêneros independentes e mainstream, temas com os quais já trabalhou e também, claro, sua constante evolução na sua forma de se fazer cinema. Assim, creio que se pode dizer agora, de forma justíssima, que A Forma da Água chegue agora como um verdadeiro novo ápice em sua carreira.

Para quem pensava que poderia ser impossível para o diretor alcançar novamente o que ele conquistara de sucesso artístico e crítico com O Labirinto do Fauno em 2006, parecendo estar fadado nos últimos anos a fazer um blockbuster modesto e divertido como Círculo de Fogo, ou um projeto divisor de águas como A Colina Escarlate. Mas afirmo que tudo que del Toro realizou até agora como cineasta, finalmente pôde culminar, aqui, na excelentíssima concepção cinematográfica que está por trás deste seu novo grande filme.

Criatividade é algo que del Toro já mostrou ter de sobra e aqui ele parece mostrar confiar mesmo em seu público ao entregar uma história de amor, que para tantos já soa instantaneamente familiar, mas promete te levar por caminhos mais profundos e belos do que sua superfície possa revelar à primeira vista.

Na trama, conhecemos Eliza Esposito (Sally Hawkins), uma tímida e inocente muda, que trabalha como faxineira em um centro de ciências militar. Onde um dia descobre a existência de uma criatura humanoide aquática, que vive sob constante tortura de experimentos e maus tratos do frio e cruel major Strickland (Michael Shannon). Conforme mais se aproxima e mais se encanta com a criatura, ela planeja retirá-lo de seu cativeiro, o que culmina em uma grande paixão que poderá lhes trazer grandes perigos.

Nada de tão novo não é mesmo? Esse miolo de trama já foi tantas vezes esmiuçado no cinema, que poderia se tornar à essa altura um clichê batido e datado. Mas não é o caso aqui, nem mesmo chega perto de ser uma gritante incoerência ou falha do filme, aliás, pouco tem do que se reclamar do filme que temos aqui. A paixão de del Toro não deu espaço para reclamações, e as sutis surpresas guardadas e as camadas que ele desmembra são agradabilíssimas.

A Bela e o Monstro da Lagoa

O principal ponto de referência (e o mais óbvio) que se pode ter da trama logo de cara é a evidente estrutura da velha e boa história do amor proibido entre a bela e a fera, divididas pela natureza de suas espécies, vivendo um amor proibido pelo mundo de opressão em que vivem. Embora del Toro, e sua co-roteirista, Vanessa Taylor, busquem talvez levar essa familiar narrativa para algo mais próximo do que seria O Monstro da Lagoa Negra de Jack Arnold, um dos clássicos filmes de monstro da Universal, que del Toro, com certeza, deve tanto prestigiar.

Não só copiando, assumidamente, as mesmas origens da criatura vindo da fauna amazônica e prestigiado lá pelos nativos como um deus, como também busca nisso invocar o mesmo espírito clássico do filme de Arnold para o seu próprio filme. A natureza sendo trazida ao mundo dos homens e sendo cruelmente torturada por ele, mas que aqui se complementa com o encontro da jovem mulher, que se torna quase a personificação de amor e pureza em meio à um mundo tomado pela cobiça e ódio. Alguém aí ouviu ruído de King Kong?

Com isso já podemos ter a certeza que se del Toro tivesse assumido o  Dark Universe da Universal, esse universo dos monstros teria sido muito diferente. Mais leal à aura clássica daqueles oito brilhantes filmes que inspiração gerações e tem grande parte de seu espírito aqui muito bem retratado e novamente trazido a vida.

Como também evoca junto a isso, muito do que já vimos na carreira do diretor até então. Nem me refiro apenas à criação da história de Eliza se assemelhar um pouco com o percurso da história da jovem Ophelia em O Labirinto do Fauno, ou como lida até com questões similares no que se refere à fuga no fantasioso escapando do cruel mundo real (um tema sempre recorrente do diretor). Só que aqui, muito do considerado irreal e extremamente realista andam de perfeitas mãos dadas. Eliza não precisa usar de seus sonhos como fuga já que vive sua rotina diária humilde com uma ótica tão otimista. Fascinada por filmes musicais que passam na TV de seu vizinho Giles (um ótimo Richard Jenkins); desejosa em visitar o cinema vizinho de sua casa; uma simples olhada contemplativa para a chuva fora de sua janela no ônibus.

Pequenos momentos, que priorizam a poesia e sutileza do silêncio em seus momentos, que del Toro consegue capturar com tanta rara delicadeza, que ele não mostrava há tempos e que, assim, ajudam a criar essa aura tão mágica e palpável presente em cada momento do filme, que inegavelmente lembra em tons com a ótica pura em tonalidade de filmes de  Jean-Pierre Jeunet como O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, ainda mais quando é acompanhada da bela trilha com acordes ala francês de Alexandre Desplat.

Del Toro ainda sabe implementar junto a isso suas boas doses do gótico sombrio e violência bem gráfica, que o diretor sempre é fascinado de ter, com direito a uma breve cena em um corredor de campo fundo e a câmera baixa se aproximando em um zoom com uma crescente sensação de suspense, que parece ter sido tirado de O Iluminado de Stanley Kubrick. Porém, que serve de perfeito propósito para muitas das razões que leva Eliza e os outros personagens da trama a agirem como agem no filme.

Mesmo que del Toro traga tantos desses seus elementos familiares de volta aqui, esse está longe de ser o filme mais familiar de sua carreira. Não é um conto gótico macabro como seu filme anterior Colina Escarlate, ou busca ir no mesmo percurso da fantasia sombria de O Labirinto do Fauno, embora contenha pequenos elementos de ambos. A Forma da Água firma sua identidade própria dentro da filmografia de del Toro como sendo não só o seu filme mais “classudo” em estética e técnica, sendo apontado por alguns como sendo um suposto Oscar bait por seu formato familiar na história, como também se mostra talvez como sendo o seu filme mais existencialista e com profundo foque no drama íntimo dos personagens.

Por essa perspectiva, podemos notar o quão coeso é o texto aqui em si por conseguir trabalhar tão bem a jornada individual de Eliza e conseguir, ao mesmo tempo, intercalar no seu foco de cada um dos personagens em volta da história. Algo que ele mostra trazer de volta do seu A Espinha do Diabo, a narrativa prosaica, amarrando e intercalando os arcos dos outros personagens à sua volta, mas mantendo sempre o foco central em Eliza e no seu romance com a criatura, mas sempre mantendo o mesmo nível de impulso dramático em cada um.

Todo o elenco se encontra em perfeita sintonia para isso, com del Toro e Taylor conseguindo fazer o público conhecer cada um de seus personagens em um nível bem próximo e íntimo. Fazia tempo que não via Richard Jenkins sendo tão bem aproveitado como o grande ator que é, sempre tão subestimado, com o doce e complexo personagem de Giles, o vizinho amigo de Eliza que luta contra sua solidão e a monotonia através de seu trabalho de desenhista enxotado, ainda sofrendo preconceito por suas (óbvias) opções sexuais. E ainda temos uma Octavia Spencer em seu modus operandi de sempre, cheia de carisma, trazendo muito do seu bom humor ao filme no papel reconfortante da fiel melhor amiga Zelda, nada que justifique outra indicação ao Oscar para a atriz, mas é inegavelmente uma boa e divertida presença no decorrer do longa.

Até o meramente conhecido por ser o “homem sério” do filme dos Coen, Michael Stuhlbarg, tem a chance de aqui brilhar no papel do agente duplo Dimitri/Dr. Hoffsteltler. Personagem esse que poderia facilmente ter se tornado um enche linguiça descartável e esquecível na mão de qualquer outro diretor, mas com del Toro ele se torna apenas outra dose extra de complexidade adicionada a trama. Com seu arco na história parecendo um filme noir de Samuel Fuller como Anjo do Mal inserido bem no meio da trama. Com semelhanças traçadas em sua moral ambígua rendendo bons momentos de mistério e tensão, e com direito a uma cena de descoberta espantosa com apenas seus olhos sendo iluminados na escuridão de fundo – um espírito de cinema noir total e que não cai como um intruso dentro do restante do filme.

Mas quem domina mesmo todas as atenções em cena ao longo do filme é a trindade principal, a bela, o seu amor e o monstro que tudo quis estragar, o Strickland de Michael Shannon. Que de cara já ameaça ser o típico vilão poço de maldade e crueldade sem um pingo de humanidade, mas que passa longe dessa caricatura e traz consigo uma surpreendente carga dramática. Assim como os outros personagens, nos consegue fazer compreender o porque ele faz o que faz, mesmo que ainda nos faça o odiar por completo, e você o odeia adora-lo por isso graças a intensidade com que Shannon monta o personagem.

Com uma caracterização que muito se assemelha à composição vilanesca machista opressora do general Vidal de O Labirinto Fauno ou o instrutor Jacinto de A Espinha do Diabo. Como eles, Strickland se torna um reflexo do pior de sua era, no que se refere à Guerra Fria, ele é o resultado da cultura American Way of Life, que deu certo exteriormente, mas não tanto interiormente. Mostra ainda, mesmo que pouco, uma palhinha de como esse estereótipo é montado e construído em torno do seu meio social. Um breve diálogo dele com o seu comandante sobre mérito serve como contraponto às suas crenças, e suas cena e com a família um retrato perfeito de um miolo internamente quebrado.

No que se refere à criatura anfíbia, Strickland é mesmo a força motriz militar opressora que explora cruelmente os recursos naturais (e religiosos) enraizados na alegoria construída em volta do personagem e só o amor de sua amada poderá salvá-lo. Com isso desde já aproveito para elogiar outro incrível trabalho que o ator Doug Jones realiza aqui na sua sexta parceria com del Toro, e faz de seu homem anfíbio outro de seus personagens “monstros” icônicos, ao lado do Fauno, o Homem Pálido e o Abe Sapien de ambos filmes Hellboy, seu primo não tão distante.

O design da criatura não é só incrível, com um trabalho de maquiagem empregado ao design de construção prática na sua roupagem, com sutis adições em CGI para aumentar a palpabilidade da criatura, como a conjuntura animalesca que Jones põe no papel transmite um instinto de tanta naturalidade. De fato não é a criatura que conquista com tanto carisma como o próprio monstro do pântano do filme de Arnold ou a criatura de Frankenstein de Boris Karloff, dando lugar à isso seus instintos animais. Mas consegue capturar a atenção instantânea e um sentimento de curiosidade e admiração, para com o público e para com os personagens, com uma rara doçura presente só em seus olhares, mas sem esconder sua violenta selvageria que explode em certos momentos, que muito remete à imprevisibilidade da Fera do clássico (Bela e a Fera) de Jean Cocteau.

Mas que não são o bastante para afastar os olhos ou o amor de Eliza com uma simplesmente soberba Sally Hawkins. E o que se admira tanto em sua performance aqui é a forte dramaticidade que ela cria de forma tão sutil devido a sua limitação de fala, mas a atriz usa seus olhos e corpo como se fosse uma perfeita atriz do cinema mudo em cena.

O que aliás serve de meio para o diretor fazer uma sutil e apaixonada homenagem de del Toro a essa era clássica do cinema dos anos cinquenta, para além de outras referências que ele faz ao longo do filme, compostas na caracterização da personagem, que brilha em alguns breves e lindos momentos de puro silêncio poético cinematográfico. Traz essa personagem tão doce e pura que acaba se tornando os olhos e ouvidos de nós o público em seu mundo, nos fazendo sentir imergidos em sua solidão inicial tão palpável, para sua paixão inexplicável pela fera que se cria ao longo do filme.

Me surpreende de como o teor sexual da trama, que tanto causa burburinho dentro e fora do filme de como vai funcionar, é lidado de forma tão interessante por del Toro. Causa uma inevitável estranheza inicial, mas que começa a fazer muito e todo sentido quando vemos o relacionamento tomando forma de paixão no meio do filme, que serve até como uma afirmação da identidade dos personagens. O sexo é tratado como um desejo perverso e instigante, que com o Strickland de Shannon aparece quase como uma forma de estupro e na personagem de Eliza um desejo proibido que nem toda a sua pureza consegue resistir ao se tocar sexualmente ou mais tarde impor a sedução como sua declaração de amor para com seu amado. O que acaba tornando não só Eliza uma personagem, e a própria Hawkins, ambas tão desmerecidas por sua aparência física, cada vez mais apaixonantes dentro do filme e a paixão pelo Anfíbio ainda mais verdadeira.

Onde esse casal tão surreal e ao mesmo tempo tão verdadeiro em sua essência, acabam se tornando exatamente esse ponto de junção, narrativo e temático, entre todos os personagens ao longo da história, e revelam seus verdadeiros propósitos. A constante opressão racial e feminina que Zelda sofre; a senilidade e homofobia presentes na vida de Giles; e o tenso jogo de identidade que Hoffstatler/Dimitri passa como espião. Esse grupo de pessoas, perdidas em mundo frio e cruel que os rejeita por completo, se juntam por uma causa maior que a deles. Uma história sobre união, amizade e amor que Del Toro propõe aqui, nada mais simples e puro que isso.

O palco de fundo da América em plena Guerra Fria se torna uma metáfora à mais nessa alegoria que del Toro adiciona como outra forte motivação para seus personagens e um reflexo não tão diferente da nossa realidade atual; dividida por confrontos frios e sem sentidos movidos a frívolos sentimentos de ganância e ódio.

Com o grande trunfo do filme sendo exatamente na simplicidade de como ele trata esses símbolos e metáforas nas caracterizações dos personagens e na priorização cênica de sua mise-en-scene, sempre relacionando-os à história do cinema e sem ser didático ou burocrático com eles ou com a emoção de cada um.

Mas será inevitável ver reclamações sendo feitas ao bocado de clichês e familiaridades previsíveis, que o filme assume para si. Principalmente na forma como se conclui, “conveniente” talvez seja a palavra, mas a forma com que del Toro construiu ao longo do filme, toca naquilo que o filme se mostrou ser desde o início, um conto fantástico. Exatamente como a narração de Giles no início, batendo de frente com Morgan Freeman no quesito narração com voz pulsante, diz no começo: é uma história sobre um reino distante, uma história de amor com uma princesa sem voz.  Nos fazendo encarar desde então o seu mundo e sua história sempre a partir de seu olhar. Cheio de dor mas também cheio de esperança e um altruísmo que a tempos não via em um filme sendo tão bem transmitido.

A Beleza na Sensibilidade

Não poderia de deixar um breve espaço aqui para poder elogiar a rica parte técnica desse filme que merece um status de pitel artístico. Talvez seja um certo preconceito de minha parte escrever isso, mas devido às origens Mexicanas de Del Toro, ele não consegue evitar de colocar um visual aqui não menos que exuberante. Com a ajuda da fotografia de Dan Laustsen vemos o que ouso dizer ser a direção mais limpa e suave do diretor, com um uso pontuado e acertado de longos planos sequências aqui e ali que com certeza pegou emprestado inspiração de seu mestre Spielberg e amigo Cuarón, e retoma o estilo classicista da era do cinema que homenageia.

Com direito à uma cena envolvendo um número musical que com certeza irá irritar aos mais rançosos, mas que para os mais abertos de coração se torna um breve espetáculo que é impossível não esboçar um sorriso no rosto. É assim que se recria o cinema clássico se usando de estética sem soar como estilizado para impressionar.

Graças ao texto tão acertado e amarrado, vemos o filme de ritmo mais coeso do diretor à um bom tempo, nada se apressa ou se arrasta aqui, com uma montagem não menos que perfeita de Sidney Wolinsky. Para um filme tão 90% focado nos personagens, surpreende em ver um design de produção impecável que reconstitui a década de 1950 com perfeição. Só um eye candy a mais em um filme tão lindo em sua essência.

Beleza essa que se reflete tanto no seu esmero técnico digno de premiações e uma história tão soberbamente contada que será difícil desagradar até os mais duros de coração. Guillermo del Toro voltou a fazer o que poucos achavam que ele conseguiria de novo, se provou como um cineasta de bandeja cheia de boas influências e inspirações criativas tão ricas em suas temáticas humanistas. Trazendo consigo o cinema fantasia, os filmes de monstros e o estudo de personagens ricos e complexos, juntos em um filme que promete mexer com o coração e a encantar do início ao fim.

Talvez seja mesmo o filme mais cara de Oscar do diretor, mas também é sua carta de amor ao cinema clássico que o moldou. É uma fantasia gótica, adulta, madura, complexa em sua abordagem e puro em seus temas. Que usa do cinema clássico como ponto reverencial, em prol de seu melhor para encantar a todos em uma mensagem de amor e união que hoje tanto necessitamos, que facilmente será ignorada pelos mais exigentes de um cinema longe de pieguices ou panfletarismos, coisas essas que também passam longe de fazerem parte de A Forma da Água.

Seu melhor filme? Deixe essa resposta para o individual de cada um, ele já tem um bom leque de excelentes filmes e esse é outro fantástico no meio deles!

A Forma da Água (The Shape of Water – EUA – 2017)

Direção: Guillermo Del Toro
Roteiro: Guillermo Del Toro, Vanessa Taylor
Elenco: Sally Hawkins, Michael Shannon, Richard Jenkins, Octavia Spencer, Michael Stuhlbarg, Doug Jones
Gênero: Fantasia, Romance, Drama
Duração: 119 min

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Publicado por Raphael Klopper

Estudante de Jornalismo e amante de filmes desde o berço, que evoluiu ao longo dos anos para ser também um possível nerd amante de quadrinhos, games, livros, de todos os gêneros e tipos possíveis. E devido a isso, não tem um gosto particular, apenas busca apreciar todas as grandes qualidades que as obras que tanto admira.

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