Em 2002, Aleksandr Sokurov chamou atenção do mundo inteiro ao lançar Arca Russa, filme realizado num único plano-sequência de 99 minutos de duração no qual um aristocrata francês revivia a história da Rússia czarista enquanto visitava as salas do Museu Hermitage, em São Petersburgo. Já em Francofonia – Louvre Sob Ocupação, a sua obra mais recente, as pretensões do diretor são bem menores e embora haja algumas similaridades entre os dois filmes, elas não são numerosas o suficiente para dizer que se tratam de projetos irmãos.
O documentário conta, através de fotografias antigas, vídeos de arquivo, narração, pinturas e cenas de ficção, a história da ocupação da França pela Alemanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial e nos mostra como a preservação das obras de arte do Louvre se deu devido ao cuidado e apreciação de dois homens cujos nomes nunca são lembrados: o francês Jacques Jaujard, responsável pela administração do museu, e Franz von Wolff-Metternich, conde alemão e oficial nazista designado por Hitler para fazer o inventário do patrimônio artístico do Louvre e garantir a transição das obras da França para a Alemanha.
No entanto, o filme não se restringe apenas a essa história. Outros aspectos da ocupação são abordados pelo cineasta, como a recepção dos franceses aos alemães e como aos poucos o povo foi se acostumando e voltando normalmente à rotina. Em volta do tema central, são feitas regressões a momentos históricos anteriores ao período retratado e especulações filosóficas sobre a natureza do tempo, a necessidade humana de imprimir as condições de sua existência em pinturas e esculturas e o atrelamento paradoxalmente repetitivo entre a manutenção das obras de arte e os interesses políticos de ideologias ditatoriais e assassinas.
Analisando a narrativa, nota-se que ela opera em quatro instâncias que se justapõem umas às outras. Na primeira delas, Aleksandr Sokurov está em sua própria casa tentando entrar em contato com um amigo marinheiro que se encontra transportando em containers pelo oceano Atlântico vários monumentos artísticos. Nessa parte do filme, a fotografia investe em cores fortes, mas deixa a figura do cineasta sempre mergulhada em sombras. A escolha se mostra correta quando lembramos que o artista ou mesmo a imagem do artista são obliterados diante da importância e da vida longa das obras que criam (há a recorrência de fotografias nas quais Tolstoi e Tchekhov dormem e não acordam mesmo ao chamado dos tempos modernos). É curioso notar também que a situação à deriva do marujo enquanto carrega em seu barco o resultado material de séculos de experiência humana funciona como uma poderosa metáfora dos perigos que a arte vem sofrendo ao longo dos anos: guardadas em museus espalhados pelo mundo todo, as obras de arte têm sempre encontrado, de maneiras surpreendentes, formas de permanecerem intactas em momentos periculosíssimos onde tudo ao seu redor desvanece no turbilhão das guerras.
A segunda constitui o elemento mais informativo e filosófico da película. Nela, através da narração realizada pelo próprio Sokurov e mergulhos em fotografias, pinturas e vídeos antigos, o diretor lança mão de todas as informações históricas para contextualizar a obra dentro do recorte que pretende ilustrar e de todos os questionamentos sobre o Tempo e a História para elevar o que é retratado a um nível de discussão inteligente. Porém, enquanto a contextualização é realizada competentemente e mantém o espectador interessado, as especulações filosóficas pululam no filme sem nenhuma retaguarda intelectual suficientemente madura. Isso resulta numa obra relevante em seus aspectos históricos, mas óbvia do ponto de vista filosófico.
Já o terceiro recurso narrativo é o coração e a parte mais comovente do filme. A história dos já mencionados Jacques Jaujard e Franz von Wolff-Metternich é encenada e a interação entre eles é imaginada por Sokurov baseada no pouco conhecimento disponível sobre os dois. É nesse segmento que as escolhas do diretor e da sua equipe são mais inventivas. Vejam, por exemplo, como ao se perguntar sobre qual teria sido a origem do interesse dos artistas europeus pelos retratos (algo que não era visto em nenhuma outra cultura), Sokurov investe em alguns close-ups no primeiro encontro entre o francês e o alemão. Percebam também como a sépia dos vídeos de arquivo é retomada, fortalecendo a preferência de Sokurov pelos tons amarelados e amarronzados. Outra escolha acertada é a de envelhecer a imagem para criar semelhança visual entre a ação encenada e as imagens históricas. No entanto, o grande acerto de Sokurov são os minutos finais (pule este parágrafo caso ainda não tenha visto o filme). Quebrando a quarta parede de maneira excepcional, o cineasta faz os personagens sentarem numa cadeira e ouvirem da boca do próprio diretor, um espectador do momento presente no desenrolar da história, o futuro de cada um, o que acaba por deixá-los perplexos e aterrorizados com a irrupção da ordem cronológica do tempo.
Finalmente, ainda há tempo para os fantasmas de Napoleão Bonaparte e de Johanna Korthals Altes’ Marianne assombrarem os corredores do Louvre. Representantes de períodos históricos manchados de sangue, as duas figuras se pronunciam e servem como lembretes constantes das interferências indevidas do Estado no destino das Artes. No entanto, o recurso logo passa a ser cansativo e desnecessário. E o momento em que Napoleão diz “c’est moi!” e Marianne sussurra “Liberte! Fraternite! Equalite!” enquanto fitam Mona Lisa não só é embaraçoso, como a brincadeira com o possível motivo para o olhar enigmático da modelo de Leonardo da Vinci (Sokurov faz um close-up dela) é sem graça e pouco espirituosa.
Entretanto, ao ser feito numa época em que a França sofre com ataques terroristas e a sua cultura é solapada, o documentário chega ao público no momento certo. E embora seja irregular, ele nos lembra das fundações do Ocidente e nos enche de esperança ao mostrar que não importa os perigos que cada época acarreta, sempre vão existir pessoas dispostas a sacrificar seus ideias políticos e suas vidas pelas obras criadas por seus ancestrais. Vindo da mesma espécie que se mata em inúmeras guerras violentas e despropositadas, esse fato não deixa de ser um verdadeiro alento.
Francofonia: Louvre Sob Ocupação (Francofonia, França, Alemanha e Holanda – 2015)
Direção: Aleksandr Sokurov
Roteiro: Aleksandr Sokurov
Elenco: Louis-Do de Lencquesaing, Benjamin Utzerath, Vincent Nemeth, Andrey Chelpanov, Aleksandr Sokurov
Gênero: Drama
Duração: 88 min