em ,

Crítica | A Garota Desconhecida

A fórmula é inimiga da arte. Pelo menos quando essa fórmula já curta e simplória (diferente de simples) é pouco, ou simplesmente não é derivada, com o passar dos anos e dos resultados que gera. Um bom uso de técnicas e visões impostas quando mal usadas geram obras ou popularescas, ou intelectualistas – extremos nunca satisfatórios. Cineastas como Godard, Truffaut, Paul W. S. Anderson, Wes Anderson, Woody Allen e tantos outros são exaustivamente (e muitas vezes de forma injusta) taxados de formulaicos, mesmo quando reorganizam, exacerbam ou redundam, com sutileza magistral as suas próprias idiossincrasias. É o caso também do irmãos Dardenne, que mesmo com idas e vindas, assumem um gênero, um método capaz de articular os comentários presentes em seus roteiros.

A primeira diferença que surge é a pequena fuga da regra in media res dos outros filmes, quando a narrativa começava no meio de uma situação para que o filme usasse de toda a sua duração para desenvolver, resolver e apresentar um passado não explícito paulatinamente. Isso torna a estrutura do filme um tanto mais primária, mas justo nesse primeiro momento que os cineastas parecem criar um mundo mais interessante. Jenny (Adèle Haenel) é uma jovem médica que está prestes a trocar o atendimento em uma pequena clínica por um hospital de renome. Na sua festa de boas-vindas, uma plaquinha de metal já traz o nome da garota na porta de sua sala. Esse reconhecimento profissional representa o abandono do seu estagiário na clínica, Julien (Olivier Bonnaud), e toda uma série de pacientes das imediações que Jenny trata com muita atenção. A jovem brilha ao ver um paciente com câncer armar uma singela despedida musical, momento em que a característica câmera-sombra dos protagonistas fica leve e dá um espaço de respiro para a própria personagem.

Até aí, uma quebra catártica já tinha afetado Julien ao ver uma criança tendo uma convulsão, o que traz à tona sua incapacidade de ser médico. O profissionalismo de Jenny supre essa falha do aprendiz. É com o segundo momento de choque que a dialética entra em campo para conferir ambiguidade ao título, definindo a vertente alegórica da obra: depois do horário de atendimento da clínica, quando Jenny e Julien estão prestes a sair, alguém toca a campainha. No seu direito como profissional, Jenny não atende a porta, apesar da insistência de Julien. No dia seguinte, encontram o corpo de uma imigrante africana num canteiro próximo.

A tragédia, sem consequências legais, pesa na ética médica e pessoal da protagonista. Ela dispensa o novo emprego para tornar-se dona da clínica, preferindo o ambiente mais desconjuntado, colorido e aconchegante às paredes frias do grande hospital. Paralelamente, sua bondade, ou melhor, bom-mocismo, conduzirão o fio da sua investigação para descobrir quem foi a vítima do seu descaso. O prosseguimento é formulaico, um suspense com o motor de uma morte, mas que nem o naturalismo das atuações consegue invocar o calor dos embates dos outros filmes.

Uma desconhecida do título segue a mesma, a outra encontra reforço para a (auto)importância de sua jornada. A ambiguidade proposta pelo título é só mais um prova do egoísmo da trajetória de Jenny, do narcisismo europeu que não cessa de encontrar válvulas de escape. Pergunta-se: onde foi parar a complexidade do cinema europeu que enchia os quadros do que era e não era mostrado em A Criança? Verhoeven soube mostrar que isso ainda é possível hoje. As tentativas de invocar o Outro (vivo, num encontro face a face, sem as máscaras de uma mentira) no final só se tornam mais esdrúxulas quando a culpa recai uma outra ausência, dessa vez por parte de uma familiar da vítima.

Apesar do miolo do filme ser eficiente como narrativa episódica, é uma exibição da habilidade já bem conhecida dos Dardenne. A tensão e os sustos partem do cotidiano, são momentâneas, enquanto o que deveria guardar austeridade ganha rosto e identidade (de papel) no moralismo de uma velha Europa.

A Garota Desconhecida (La Fille Inconnue, 2016 – Bélgica, França)

Direção: Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne
Roteiro: Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne
Elenco: Adèle Haenel, Olivier Bonnaud, Jérémie Renier e Christelle Cornil
Gênero: Suspense
Duração: 113 minutos

Redação Bastidores

Publicado por Redação Bastidores

Perfil oficial da redação do site.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Crítica | A Grande Muralha

Crítica | Moonlight: Sob a Luz do Luar