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Crítica | A Garota no Trem

De tanto resenharem sobre a adaptação de A Garota no Trem, já afirmaram inúmeras vezes que é impossível não escrever sobre o filme sem citar ao menos uma única vez o sucesso de David Fincher e Gillian Flynn, Garota Exemplar. Então, por que já não quebrar a banca na terceira linha do meu texto? De fato, A Garota no Trem e Garota Exemplar são filmes muito parecidos em seu conteúdo e até mesmo na forma – dessa vez, descaradamente, assimilando o trabalho que Fincher apresentou há dois anos.

Na verdade, desde seu lançamento como obra literária, A Garota no Trem já era comparada com Garota Exemplar. Paula Hawkins já sabia muito bem o que queria e também previa o sucesso de seu livro – os direitos cinematográficos foram vendidos em 2014, um ano antes da publicação do livro. Depois de lançado, ficou por semanas no topo da lista de mais vendidos tendo vendido mais de três milhões de cópias somente nos EUA.

O motivo de todo o sucesso? A boa e velha história de assassinato com o toque “moderno”: narradores nada confiáveis aumentando o grau do suspense. Felizmente, o filme é bastante fiel à paranoia crescente do livro.

Acompanhamos as idas e vindas de Rachel, uma alcoólatra deprimida que viaja de trem para a cidade todos os dias. Sentada no assento da janela, a mulher flerta com a vida dos outros, espionando o pouco que consegue. Mas uma casa em particular chama mais sua atenção graças a vida amorosa aparentemente harmoniosa de um casal “felicíssimo”. Porém, um dia, em sua bisbilhotagem, ela vê a mulher da “vida perfeita” com outro homem na varanda da casa. Em sua vida vazia, Rachel não consegue compreender como tal pessoa poderia jogar no lixo um relacionamento dos sonhos.

Incrédula e bêbada, ela abandona o trem e parte para confrontar a mulher espionada. Porém, no meio do caminho, algo acontece e ela desmaia. Quando acorda, não consegue se lembrar de nada do que havia feito naquela tarde e, para o seu azar, aquela mesma mulher desaparece e a polícia local acredita que ela esteja envolvida no sumiço.

Basicamente o roteiro de Erin Cressida Wilson tem apenas o trabalho de cortar trechos do livro em sua adaptação para as telonas, pois as coisas se desenrolam de modo muitíssimo similar. Porém, a narrativa já bastante peculiar e curiosa que Paula Hawkins utiliza na escrita, já é escancarada em questão de poucos minutos. A Garota no Trem não é um filme ordinário e, portanto, te causará muita estranheza no começo.

Wilson e o diretor Tate Taylor – muito elogiado pelo trabalho em Histórias Cruzadas, resolvem iniciar sua trama de modo audacioso, denotando o tom fragmentado da narrativa. Então acompanhamos os fatos do cotidiano perverso de Rachel, uma alcoólatra refém de si mesma graças a um término mal acabado de relacionamento, que passa seus dias espionando e desejando a vida dos outros, tendo pena de si mesma enquanto narra em voz over os eventos sob uma ótica dúbia e distorcida.

Já mostrando bom entendimento de seu material, Taylor corta a narrativa de Rachel assim que ela passa a se envolver com a história de Megan, a mulher espionada pela primeira protagonista. Então, passamos a conhecer a vida “perfeita” da moça, também refém de si mesma e dos abusos do noivo que a enxerga somente como propriedade sexual. Estabelecido seu drama principal e sua relação com a outra protagonista, acompanhamos um dia na pele de Anna, a nova esposa do ex-marido de Rachel, Tom.

O conflito majoritário de Anna é sua relação de medo com Rachel, já que a alcoólatra não dá folga ao novo casal, importunando a rotina deles sempre que possível. Rachel ainda sonha com a vida que teria com Tom e projeta seu passado romântico na vida de Megan. Logo, todas as três protagonistas têm sua merecida profundidade e seus pequenos dramas que se transformam diante da situação atípica do desaparecimento de uma delas.

Para quem não leu ou viu ao filme, com certeza tudo que descrevi acima é meio confuso (muitas críticas ao filme o condenaram por sua “confusão narrativa”). E realmente é. A narrativa é toda fragmentada com esses diversos pontos de vista que também possuem seus respectivos trechos de flashbacks – e não são poucos. Então se prepare, pois o filme exige muita atenção para colar as peças do quebra-cabeça e entender de fato a dor das personagens. É algo rico e pouco habitual, já que são elementos muito distintos e genuínos, mas sempre circundam o tema da traição.

Se a atmosfera do longa te prender, é muito difícil se perder na trama. Porém, mesmo contando com um ótimo mistério e personagens competentes, o roteiro tem suas fraquezas. A principal delas é o núcleo da investigação que se torna excessivamente burro e caricato. A opinião da investigadora é tão enviesada que corta o suspeito mais óbvio, além de Rachel, que é o sujeito assassino de fato. A roteirista é feliz em mudar constantemente o foco da investigação, nos levando a crer na culpa de outros suspeitos. Porém é relativamente fácil deduzir o grande vilão da história ao perceber esses vícios no texto.

Também há dois modos de encarar o tópico do desenvolvimento dos personagens: levando em conta de que o espaço narrativo do longa concentra uma passagem curta na vida dos personagens ou simplesmente por inaptidão da roteirista ao cortar justamente trechos que são dedicados a isso. Eu encarei pela primeira opção, pois as personagens são repletas de substância e personalidade, além de todas serem presas devido a traumas passados e pelo alcoolismo, uma condição limitante. Porém, as famosas sessões com o terapeuta são bastante restritas aqui e no livro eram as passagens que possibilitava o crescimento das protagonistas.

A Garota no Trem, na verdade, tem uma das direções mais interessantes do ano graças ao trabalho de Tate Taylor que busca se distanciar da inspiração óbvia de Garota Exemplar. Isso se dá bastante pelo jeito que ele conduz seu filme, tentando torná-lo uma representação perfeita do estado psicológico conturbado e convulsionado da protagonista Rachel. São muitas idas e vindas, muitos flashbacks, muitos encontros e desencontros até o final da trama dando a ilusão do filme estar completamente perdido e à deriva.

Isso é proposital. Oras, até mesmo o trem é uma brilhante metáfora da vida de Rachel, restrita a trilhos encarcerados que só permitem sua ida e volta no mesmo percurso. Eis aí uma grande metáfora para todo o alcoolismo e depressão que incapacitam a moça. Aliás, Taylor também trabalha em núcleos restritivos com as duas outras protagonistas, tão apegadas ao passado e presas em suas vidas miseráveis quanto a de Rachel.

A técnica de mise én scene também conversa diretamente com essa atmosfera incapacitante. Taylor condiciona boa parte dos vinte minutos iniciais do longa com muito estimulo narrativo via voz over, já deixando claro o nível de proximidade representativa que a forma do filme terá com suas personagens. Ali, já é possível sacar todo o trabalho de câmera que será utilizado para transmitir essa história.

Temos muitos planos claustrofóbicos, próximos aos atores. Na verdade, colados a eles e, por consequência, valorizando muito o trabalho do elenco. A câmera é a confidente dessas pessoas nada saudáveis. Durante os monólogos mais reveladores, Taylor trabalha com ela trêmula, desnorteada… bêbada, dialogando diretamente com o que é mostrado em tela. Logo, há muita encenação com câmera nos ombros para transmitir toda a instabilidade emocional que cerca a obra. Desfoques, alto nível de ruído, profundidade de campo baixa, luzes pálidas e suaves de paleta de cor dessaturada para darem lugar à iluminação dura de amarelo saturado para conferir os contrastes da depressão e das ressacas nauseantes de Rachel, são apenas algumas das técnicas que Taylor usa para ilustrar A Garota no Trem.

Taylor, tentando se distanciar do trabalho de Fincher, anda na contramão no sentido das composições visuais sendo muitas delas bastante vazias ou sem-graça. Pode-se considerar novamente a metáfora, mas era esperado um trabalho mais apelativo visualmente mesmo se comportando dentro da proposta autoral do filme.

Já valorizando na encenação o trabalho de seus atores, Taylor também brilha na direção deles conseguindo arrancar uma performance digna de Oscar no caso de Emily Blunt que vive a Rachel de olhares perdidos, cansados, de passos trôpegos e fala embargada mantendo-se no limite para nunca pender ao caricato cômico. Ela realmente está deplorável, frágil, deprimida e assustada. É o melhor papel que Blunt encarnou nos últimos anos.

Até mesmo com Haley Bennett, atriz um tanto desconhecida que esteve presente no fraco Sete Homens e um Destino, o trabalho é fenomenal. Ela interpreta Megan, a segunda personagem mais sofrida do filme e não tem nenhum problema em desempenhar as dificuldades impostas pelo roteiro. Bennett também investe na depressão de sua personagem que se comporta como uma femme fatale, guardiã de um segredo terrível. Bennett e Blunt são os destaques de A Garota no Trem e merecem todos os elogios.

No que Taylor tenta divergir na estética e um pouco da atmosfera tensa de seu filme ante Garota Exemplar, a trilha musical de Danny Elfman realmente copia, em algumas músicas, os sintetizadores de Trent Reznor e Atticus Ross. Quando não são os instrumentos similares, as melodias tornam-se idênticas. O ritmo irregular, de tons modais cíclicos e repetitivos de temas para acompanhar a rotina podre da protagonista é fantástico. A produção é inteiramente pensada para enfatizar, visual e sonoramente, esse aspecto bêbado e perdido de Rachel. Mesmo muito similar, a música casa perfeitamente com diversas composições funcionais e interessantes.

A Garota no Trem é um filme incômodo. Ele foge da fórmula dos blockbusters atuais ao apostar em uma narrativa complexa que exige sim muita participação do espectador para que ela faça sentido. Logo, caso não tenha paciência para uma proposta dessas, passe longe. Esse filme só te trará aborrecimento e frustração. Porém, lhes afirmo que seria um belo desperdício não conferir essa história nas telonas. Raramente vemos uma produção tão bem pensada para a sinestesia de sua forma que visa representar perfeitamente os dramas das personagens.

O mistério hitchcokiano envolta numa atmosfera kafkaesca é um presente para os fãs do bom suspense. Neste caso, um suspense regado a litros e litros de álcool e testemunhos de verdades embaçadas.

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Publicado por Matheus Fragata

Editor-geral do Bastidores, formado em Cinema seguindo o sonho de me tornar Diretor de Fotografia. Sou apaixonado por filmes desde que nasci, além de ser fã inveterado do cinema silencioso e do grande mestre Hitchcock. Acredito no cinema contemporâneo, tenho fé em remakes e reboots, aposto em David Fincher e me divirto com as bobagens hollywoodianas.

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