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Crítica | O grifo de Abdera

Lourenço Mutarelli, Mauro Tulle Cornelli, Oliver Mulato e Raimundo Maria Silva. Autores de O grifo de AbderaSe já havia qualquer estranhamento com a obra deste(s) autor(es), esse romance não será, também, uma porta de entrada. Quer dizer, nunca houve. Em entrevistas, Mutarelli afirma continuamente que o está cansado das imagens, por isso parou de ler e produzir quadrinhos profissionalmente, afirmando que o desenho é sempre um filtro para o leitor e que as ilustrações em seus romances anteriores foram exigências da editora. Afinal, sempre será reconhecido como um grande quadrinista brasileiro.

Passados cinco anos do seu romance mais regular, Nada me faltará,  e quatro do lançamento de Quando Meu Pai se Encontrou com o ET Fazia um Dia Quente, (deixando de lado o seu trabalho no teatro), Mutarelli, agora, sintetiza e organiza, de certa forma, os conflitos existencialistas que permearam estas últimas obras. Neste novo livro, dividido em três partes (O livro do fantasma, o livro do duplo e o livro do livro – sendo que a segunda é uma história em quadrinhos) uma aura de descobrimento e de conformação com o conceito de identidade preenchem as 260 páginas do romance. Mesmo que a sinopse  de um escritor que perde seu parceiro e, após entrar em contato com uma moeda de 2424 a.C., o tal grifo de Abdera, iniciará uma conexão telepática à Quero Ser John Malkovich pareça mais uma batida na tecla de um tema nada inédito (vide mais recentemente A Desumanização, de Valter Hugo Mãe), é pelos elementos comuns da literatura de Mutarelli que vale a pena a leitura. Portanto, quem não gosta nem de O Cheiro do Ralo ou de Transubstanciação, não encontrará razões para renovar a opinião.

Em questão de paralelo, Jesus Kid é o romance que mais se aproxima da experiência aqui encontrada. Escrever a história de um escritor escrevendo, das loucuras de Barton Fink, no romance de 2004. Já em 2015, a autobiografia se mistura com mais intensidade com a ficção. Quem teve o privilégio de adentrar o universo de Mutarelli nos cinco sketchbooks fac-símile publicado pela editora POP, que são, em si, também, uma obra, reencontrará aqui o mesmo non sense. Anteriormente, era o trabalho com o depressivo, com o sujo e o sombrio, misturando o humor kafkiano com o espelho dostoiévskiano (ou nas palavras de Dalton Trevisan: “em cada esquina, um Raskolnikov te saúda, a mão na machadinha sob o paletó“). Recordando que já em 2008, com A Arte de Produzir Efeito sem Causa, este novo estilo já estava sendo experimentado.

Quando a moeda surge na vida do protagonista e é estabelecida a conexão com Oliver Mulato, esse começa a soltar, aleatoriamente, frases sujas em espanhol que Mauro havia, por brincadeira, inserido no Google Tradutor, por exemplo. O que aparece pontualmente na primeira parte do livro, domina a segunda, o quadrinho, denominado XXX, de autoria de Oliver que reproduziu frames de filmes antigos, em sua maioria, pornográficos, e adicionou falas e “personagens”. O estilo do desenho aqui é muito mais ligeiro e tem mesmo a aparência de um sketchbook, contando inclusive com colagens e rabiscos, divergindo completamente dos barrocos quadrinhos que Mutarelli fazia. São cem páginas de non sense, ou de frases ancestralmente feitas, como a epígrafe do livro: “Aquele que dança em sua própria casa, atrai incêndios.” Existem também referências a diversas áreas, como brincadeiras com o filme 2001 – Uma Odisséia no Espaço, com a figura do Diabo, do Xipetotec, do macaco, da cabeça de papagaio com uma cartola, e, mesmo que não tenha um sentido lógico, existe a simetria.

Continuando na análise dos conceitos de identidade, O grifo surge também como uma ferramenta de conformação para o autor. Uma sujeição consciente à uma série de características comuns à figura do artista e sua relação com a tecnologia enquanto usuário. Não apenas do artista genérico, mas da própria mitologia que Mutarelli criou entorno de si e vê que não há escapatória, justificando a criação dos duplos. Funciona, e, além do íntimo, o “mercado literário” desponta também como alvo de críticas. Mesmo que o processo não seja fluidamente osmótico, a pantomima que nos é passada, tanto pelas palavras e números, quanto pelas imagens, esclarecem as intenções do autor.

Dessa miscelânea labiríntica de Abdera com Google Maps, Mutarelli pare o grifo, alcançando seu ápice contextual. Espiritualmente, o encerramento digno de uma trilogia.

E assim como outros livros do autor, O grifo de Abdera será, também, filme.

O grifo de Abdera (2016)
Autor: Lourenço Mutarelli
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 272

Redação Bastidores

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