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Crítica | Hiroshima

Em dezembro de 1941, quando ocorreu a famosa operação aeronaval de ataque à base norte-americana de Pearl Harbor, e a 2ª Guerra Mundial começou a extrapolar as fronteiras europeias, o Japão não possuía condições ao menos objetivas, de triunfar sobre os Estados Unidos. A antevisão de glória que a surpresa proporcionou foi apenas um fio-condutor para a derrota do Eixo, e de desastres muito mais brutais.

Se no nosso século ainda se detecta um cinismo patriota em obras como Pearl Harbor (2001, Michael Bay), sobra lucidez, pesar e um olhar que preza pelo respeito à alteridade nas linhas da reportagem de John Hersey, Hiroshima. Publicada em agosto de 1946 na revista The New Yorker, pouco mais de um ano do bombardeio à cidade, o material que ocupou todas as páginas daquela edição, aniquilou quaisquer possibilidades de eufemismos. Não era mais um ataque ao “Japão”, a uma entidade totalmente distinta dos EUA. Entravam em cena os japoneses. O aspecto essencial encontra-se logo no primeiro parágrafo: a apresentação dos seis personagens reais, sobreviventes da explosão do Little Boy – apelido dado à bomba de quatro toneladas lançada pelo avião Enola Gay na ocasião. O que são seis perto do imediato extermínio de 70 mil? É a tênue fronteira do drama e da tragédia, do que sai da abstração estratosférica dos números e se torna calor humano.

Em 1945, Hersey, ganhou o prêmio Pulitzer de Ficção por A Bell for Adano – não publicado no Brasil -, um romance em que já se passava no cenário da 2ª Guerra Mundial, explorando a Itália e as circunstâncias do fascismo. Hiroshima, por sua vez, é jornalismo puro com toques literários. É calculista sem ser ofensivo. Não se aplicam floreios que saltem aos olhos, ou que forcem uma aproximação entre o leitor e os fatos. Adjetivos certeiros oscilam entre antíteses e gradações e traçam um perfil bem concreto de quem são os personagens: dois doutores, uma jovem funcionária de uma fundição, um reverendo protestante, um padre jesuíta alemão e uma costureira viúva.

Como exemplo, segue uma das introduções: “[O reverendo Kiyoshi Tanimoto] Usava o cabelo preto, um tanto longo, repartido ao meio; os ossos frontais salientes, logo acima das sobrancelhas, o bigode minúsculo, a boca e o queixo pequenos lhe conferiam uma estranha aparência de velho e jovem ao mesmo tempo, um ar de menino e no entanto sensato, frágil e no entanto apaixonado.”

Essa humanização não surge do nada. Hersey declarou ter se inspirado em A Ponte de São Luís Rei, de Thornton Wilder, livro que conta um caso ficcional de cinco personagens que morreram em um desabamento de uma ponte em Lima e, pelas descobertas de um frei, suas histórias se cruzam. Na reportagem, Hersey encarna esse papel de narrador, neutro, de um bom jornalista, ciente da magnitude da situação que estava explorando.

Baseando-se nas experiências e nos relatos dos personagens, o livro não hesita em expor com detalhes cenas chocantes, mortes diretamente causadas pela explosão da bomba e outras das consequências da radioatividade. Vastos espaços com corpos e mais corpos, como um mar de efigies humanas, rostos totalmente queimados, órbitas vazias. Metáforas aflitivas como “a pele se desprendeu como uma luva” são encontradas em abundância. Não bastasse o espanto de visualizar mentalmente a situação, descobre-se que alguns desses corpos ainda respiravam, definhando, à procura da luz. Algumas representações, porém, podem ter seus significados ampliados por uma leitura mais atenta. No final da primeira parte do livro, conta-se: “as estantes que estavam atrás da srta. Sasaki caíram, e seu conteúdo a derrubou, quebrando-lhe a perna esquerda. No primeiro momento da era atômica livros imprensaram um ser humano numa fundição de estanho.” A última sentença guarda um paradoxo tão intrigante, que torna-se terrivelmente irônico: a detonação da bomba atômica, a arma mais avançada do mundo, fez com que livros, fontes de conhecimento seculares e naturalmente inofensivas, ferissem a moça. Ainda mais, em uma fábrica.

A dor da perda mostra suas diferentes nuances culturais com o acompanhar dos efeitos do ataque a Hiroshima e a Nagasaki, três dias depois, na sociedade. Por um lado, com a rendição do Japão, o conflito mundial encaminhava-se para o fim. Ainda sim, na cultura japonesa, esse ato tem um valor muito pesado, herdado de muitos séculos de tradição. Uma prova de resistência: “Quando [os civis] souberam que a guerra terminara — quer dizer, que o Japão fora derrotado —, naturalmente ficaram decepcionados, mas, com o espírito tranquilo, obedeceram à ordem imperial de fazer um sacrifício sincero pela paz duradoura do mundo — e o Japão tomou seu novo caminho”.

A atitude do controle estadunidense no Japão na época da publicação do livro não poderia ter sido outra senão a da censura, escondendo da população as verdades sinistras que um imenso público devorava mundo afora. O livro teve impacto avassalador, e despertou culpa definitiva em muitos cientistas que participaram da confecção da arma. É o ápice do conflito entre as interrogações humanas e as áreas do conhecimento científico. O contato intercultural quebra com a posição isolacionista, muito confortável e que tenta-se a todo custo retomar até hoje. Mas não há volta – criou-se todo um novo horizonte através do branco absoluto.

Mesmo assim, o repórter retornaria a Hiroshima em julho de 1985, quarenta anos após a primeira publicação, para reencontrar os sobreviventes e saber quais foram seus destinos. Infelizmente, nem todos sobreviveram até a ocasião. Além de registrar essa experiência de imediata nostalgia para o leitor, o capítulo “Depois da Catástrofe” traz alguns apontamentos sobre o armamento nuclear no mundo.

A partir dessa obra-prima de apenas 170 páginas, Hersey estabelece um exemplo formal sólido do que seria chamado de “livro-reportagem”. Mais do que pioneiro nas revoluções jornalístico-literárias que ocorreriam anos depois, é pilar essencial para o entendimento de um período tenebroso, sem tender para um dualismo torpe ou para a busca de escusas que não existem.

Hiroshima (idem, 1946)
Autor: John Hersey
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 176

Redação Bastidores

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