Com o advento da evolução das ciências químicas, não tardou nada para que a ficção jogasse sua atenção sobre elas. Conforme cientistas criavam compostos diferentes e até mortais, a transição da ciência como fenômeno material e não mágico, foi gradual até a população se acostumar com as maravilhas e horrores daquilo tudo.
O desenvolvimento acerca desse tema na literatura já era sentido no século XIX, com clássicos como Frankenstein de Mary Shelley comprovando o sentimento de medo e dos horrores que a ciência poderia criar – e que certamente é um pesadelo real até hoje. É evidente que Frankenstein vai muito além desse sentimento de receio, abordando temas deveras humanos, mas o foco desse texto é de uma obra que também traduz a Ciência como arma: O Homem Invisível de H.G. Wells, um dos maiores autores de ficção científica da História.
Junção dos Cosmos
A história da Universal pode ser facilmente dividida em eras pré e pós presidência de Carl Laemmle Jr., filho do fundador do estúdio Carl Laemmle, um dos pioneiros em tornar o Cinema em uma verdadeira indústria de entretenimento. Isso acontece em meados de 1930, justamente a década que o estúdio começaria seu grandioso projeto que ficou conhecido como Os Monstros da Universal.
Ao contrário do pai, Laemmle Jr. era muito mais aficionado em contar grandes histórias e despertar profundas emoções nos espectadores. Não foi à toa que sob sua gerência que houve uma profunda revolução na Universal em renovação de equipamentos e sonorização do todos os lançamentos. Laemmle Jr. conseguiu até mesmo o primeiro Oscar do estúdio com Nada de Novo no Front em 1930.
Porém, com muito gasto e sucessos módicos, Lammle Jr. teve a brilhante sacada de renovar a seção de Filmes B da Universal para reaver a verba de tanto investimento e dos cortes causados pelas medidas anti-truste que proibiram o controle de três pontas da produção cinematográfica (produção, distribuição e exibição). Daí veio a ideia em amedrontar o mundo com os chamados Monstros que sustentaram a Universal por toda a década de 1930 até a venda do estúdio para novos proprietários em 1951 – os filmes de monstros seguiram até os anos 1960.
Aposta certeira
O sucesso de Drácula e Frankenstein apenas confirmaram como o faro de Laemmle Jr. era aguçado. Porém, foi no segundo filme da franquia que o jovem produtor encontrou sua cara metade: James Whale. Embalado pelo tremendo sucesso dos filmes e também pela amizade que se firmou entre os dois, Laemmle Jr. já tinha o projeto certo para Whale assumir o quanto antes: O Homem Invisível de H. G. Wells. Outro sucesso cult nascia ali.
O roteiro do filme passou por muitas mãos até chegarmos a versão final de R.C. Sherriff – até Whale chegou a escrever um. Mas como H.G. Well estava bem vivo na época, ele não vendeu os direitos da obra sem que ao menos tivesse o poder de aprovar o projeto. E demorou bastante já que diversos roteiristas sempre insistiam em esquecer da característica científica da obra. Mas, com algumas concessões ao estúdio, Wells acabou aprovando o texto de Sherriff.
Nele, o cientista Jack Griffin, auxiliar do químico Cranley, descobre um fluído que, combinado com a substância monocaína, consegue conferir invisibilidade para quem o ingere. Testando nele mesmo, Griffin consegue tornar-se invisível, mas um dos efeitos colaterais desconhecidos pelo cientista começa a fazer efeito: a insanidade e a violência. Assim, completamente invisível, o cientista começa a aterrorizar duas vilas inteiras causando mortes diversas o que motiva uma força-tarefa da polícia de todo o condado para capturá-lo.
Mas não se engane pela sinopse, leitor. O Homem Invisível se vale bastante da organização narrativa bem ousada de H.G. Wells. Nosso primeiro encontro com o personagem já o mostra todo envolvido por bandagens e pesados óculos escuros para conseguir conviver com a condição. Fugindo de seu mentor, Griffin se hospeda em uma taverna para tentar reverter o efeito da descoberta, pois suas motivações não são puramente maléficas em primeiro momento.
Logo, enquanto Frankenstein, o Drácula e A Múmia davam vida à monstros que realmente eram externos à nossa natureza, sobrenaturais, O Homem Invisível traz um protagonista humano, mas enlouquecido, vítima de sua própria ambição. O insumo narrativa da obra se faz presente, mesmo seguindo algumas obrigações inerentes ao Cinema daquele tempo.
A começar há um romance que consegue conferir mais camadas para Griffin. A paixão de Flora por Griffin é impossível devido às circunstâncias que seu namorado se encontra. Para piorar, a psicose que o protagonista sofre, o transforma em um homicida de primeira linha que chega até mesmo a descarrilar trens. É através do núcleo romântico que sentimos ainda alguma humanidade restante ao protagonista e, por consequência, o final da obra torna-se poderoso e bastante corajoso para a época.
Em si, a história também não vai surpreender ninguém – a menos que você tenha vivido em uma bolha sem ter visto um filme na vida. Apesar do formato fora do padrão de narrativas clássicas, o segundo ato da obra fica em um grande marasmo mostrando as ações do Homem Invisível no vilarejo. Seja com bravatas, traquinagens e assassinatos por estrangulamento.
As coisas ficam mais interessantes quando Griffin reencontra seu antigo colega de laboratório, Arthur Kemp. Nisso, a obra começa a se desprender bastante do livro original, na qual vemos Griffin obrigando Kemp a virar seu ajudante na vilania. O coadjuvante em si é bastante descartável. O roteirista apresenta um triângulo amoroso entre ele, Flora e Griffin, mas abandona rapidamente ao torná-lo uma grande caricatura covarde histérica.
Mas, com essa nova relação, muito mais da mitologia do Homem Invisível é exposta ao espectador. O grande destaque do roteiro de Sherrif e tornar O Homem Invisível em uma das primeiras narrativas de cinema B que explora acontecimentos paralelos. Enquanto vemos o vilão tocar o terror, acompanhamos o pânico da população local e os esforços da investigação policial. Algo que por si só é único para esse filme na franquia.
Vivendo o Sonho
Um dos elementos completamente indissociáveis da direção de James Whale recai diretamente no roteiro: o humor camp dos teatros ingleses – esse tipo de humor faria o sucesso nos desenhos de Chuck Jones com Looney Tunes anos mais tarde. De fato, O Homem Invisível é mais uma grande comédia de humor negro do que um filme de terror.
Embora Whale respeitasse os desejos da estética expressionista exigidos por Laemmle Jr. para os filmes Monstros, o diretor sempre injetava o humor negro peculiar. A insanidade de Griffin é, em sua maioria, muito cômica. A reação exageradíssima de alguns personagens como Jeny Hall, proprietária da taverna interpretada por Una O’Connor, é sensacional. Uma histeria insuportável que nem mesmo o marido da personagem aguenta.
Também é preciso destacar o grande papel de estreia de Claude Rains. Apesar de, quando não invisível, o ator estar recoberto de bandagens e gaze, Whale teve uma incrível sacada em selecionar Rains, o homem dono de uma das vozes mais marcantes dos filmes de Monstro da Universal. O ator, quando visível, mantém sempre uma postura muito rija refletindo o temor de um homem tenso e bastante estressado. Se move com uma lentidão incomoda e, em momentos propícios, encarna a megalomania do personagem que flerta com o poder tirânico de domínio sobre os outros homens.
De resto, Rains só precisa abrir a boca e falar para fazer magia. A voz é tremenda, o sotaque cockney é bizarríssimo e as diversas nuances que o ator faz são memoráveis. É um som imprevisível que vai do terno para o insano em questão de segundos, além do divertimento sádico expressado pelo homem enquanto mata ou atazana outras pessoas. É de muita competência, pois tudo é claro para o espectador. Não há incertezas com o que Rains apresenta dentro e fora da tela.
A paixão pelo teatro inglês de Whale não fica restrita apenas pelo humor caricato e vibrante. O diretor abraça a linguagem cinematográfica digna de um John Ford em Como Era Verde o Meu Vale. Digo isso por conta do profundo respeito que o diretor expressa pelos grandes mestres do Cinema Silencioso, os grandes inventores da linguagem cinematográfica.
Whale, sempre que possível, define a geografia da cena em um simples plano geral que se movimenta com travellings sempre que possível – para todos os quatro lados. Ou seja, em boa parcela, ver ao filme é como assistir a um pequeno teatro filmado. Mas mesmo restrito sempre a um mesmo eixo, Whale não deixa sua decupagem menos diversificada. A linguagem já tinha evoluído a tal ponto que era possível mostrar apenas o rosto dos atores sem que a plateia ficasse chocada ao imaginar ver um rosto decapitado. Logo, os closes são constantes, assim como planos detalhes e cut ins diversos.
Whale também tem certa peculiaridade com alguns arranjos fora do convencional para a época. Por exemplo, em determinado momento, o jornalista no rádio avisa que o Homem Invisível está a solta e, logo depois, temos uma ligeira sequência em montagem mostrando diversas pessoas trancando janelas e portas. Essa sequência é aberta e fechada com um travelling que vai em direção ao rádio para abrir e fechar o segmento. É um capricho autoral.
Além disso, Whale consegue dominar, junto do seu técnico em efeitos especiais, John Fulton, as trucagens necessárias para realizar o efeito da invisibilidade de seu monstro. Enquanto os outros eram bem menos complexos requisitando apenas uma boa maquiagem, o Homem Invisível tinha que passar por processos de dupla fotografia com máscaras de veludo preto para separar as partes visíveis e invisíveis do ator. Em um dos planos mais intrincados, vemos Griffin retirando as bandagens enquanto se observa no espelho. Tanto ele quanto o reflexo somem progressivamente ao mesmo tempo – um processo que requisitou nada menos do que quatro etapas que foram coladas manualmente no positivo do filme.
E não somente existem os efeitos absurdos de invisibilidade, mas também ótimas cenas com objetos levitando, portas se movendo, pegadas surgindo na neve, etc. Tudo feito com cuidado digno de Oscar. Há cenas de profunda excelência na técnica de efeitos em objetos como a qual Griffin puxa um cigarro e começa a fumar. É algo absurdo para 1933.
Aliás, toda essa paixão pelas trucagens de filme dão um charme único para O Homem Invisível. Dentre todos os filmes de monstro do estúdio, ele é o que mais se aproxima a homenagear o Primeiro Cinema, movimento no qual grandes mestres ilusionistas como George Mélies assustavam o público com trucagens de câmera inspiradas e histórias fantásticas de ficção científica. Porém, havia a adição do som e, para uma história como essa, Whale soube muito bem aproveitar efeitos sonoros de passos em salas vazias ou escadas e outros de manipulação de objetos não só para indicar a presença da criatura, mas para transpor o sentimento de paranoia dos personagens assombrados.
Toda essa liberdade de criação também não é por acaso. A figura dos gênios do sistema (os produtores) era ainda mais mandatória do que os de hoje, já que comumente eles eram também os donos dos estúdios e das redes exibidoras. James Whale confere marcas autorais como mencionei acima sendo a principal delas o seu humor único. Isso dentro da máquina dos studio system era tão precioso como uma pérola. Whale pode muito bem ser o primeiro autor a impregnar seus filmes com suas características em um grande estúdio – algo que merece um estudo aprimorado.
Se você se pergunta “como?”, é bem simples resolver a questão. Whale teve a tremenda sorte de firmar uma poderosa amizade com seu produtor Laemmle Jr. que, extraordinariamente, conferia 100% de autonomia para Whale desbravar em seus filmes. Não foi mero acaso o diretor ter se aposentado no final da década de 1930. O tempo de bonança monstruosa acabaria, Laemmle Jr. perderia espaço como manda-chuva e, por desventura, Whale perderia sua liberdade cativante seguindo as ordens restritivas de novos produtores.
A Breve Alegria
Com o ressuscitar desse universo agora com o vindouro A Múmia, foi uma tremenda diversão revisitar esses clássicos de 1930 que ajudaram a moldar toda a fama de um estúdio tão expressivo e carismático como o centenário Universal. Como puderam ver, esses filmes B não carregam apenas o mérito de sua indubitável qualidade, mas também nos reapresentam uma parcela mágica da História do Cinema pré-televisão.
Se caso nunca tenha visto esses clássicos e ama Cinema, não há recomendação e tempo mais propícios para visitar e descobrir a genialidade de uma equipe que não se sentia ofendida em adaptar contos de horror e clássicos da literatura em Filmes B. Para eles e certamente para James Whale, não existia esse negócio de produção B. Se tratavam, sim, de filmes como quaisquer outros do estúdio que os empregavam. Nessa ligeira década de paz, homens e mulheres puderam expressar o melhor momento de suas carreiras com risadas, gritarias, sustos e surpreendentes efeitos visuais.
Uma breve alegria que trouxe luz através de histórias sombrias para um mundo que ainda nem imaginava os horrores reais que enfrentaria em 1940.
O Homem Invisível (The Invisible Man, EUA – 1933)
Direção: James Whale
Elenco: Claude Rains, Gloria Stuart, William Harrigan, Henry Travers, Una O’Connor, Forrester Harvey, Holmes Herbert, E.E. Clive, Dudley Digges
Gênero: Monstro, Suspense, Ficção Científica
Duração: 77 minutos