Vítima direta de regulação estatal e da burrice e manipulação do mercado de distribuição de cinema, o espectador brasileiro possivelmente sequer perceberá que A Infância de um Líder existe. Demonstrando o quanto o problema não é privilégio nosso, a produção – premiada em Veneza – encontra dificuldades em ser distribuída até mesmo em circuito internacional. Poderia passar despercebida, como tantas outras, não fosse a possibilidade de ser assistida no Netflix, o que corrige um pouco a injustiça: trata-se seguramente de um espetáculo invulgar e um dos melhores filmes de 2015.
Vagamente inspirado num conto de Jean-Paul Sartre e excepcionalmente bem produzido com um orçamento baixo para os padrões aos quais o filme está sujeito (falar de filme “bem produzido com orçamento baixo” no Brasil é equivalente a falar de “viagens tripuladas à Lua” na Venezuela), “A Infância de um Líder” é um delírio de estilo e significados a partir da máxima de que a História é um pesadelo do qual tentamos inutilmente despertar. O enredo acompanha os bastidores da negociação dos acordos pós-Primeira Guerra Mundial pelo ponto de vista da família de um diplomata norte-americano, sua mãe de formação católica e o filho pequeno problemático.
Não espere, entretanto, rebuscamento historiográfico ou didatismo: aqui, sentidos e ausências deles alternam-se vertiginosamente, entre imagens encenadas e material de arquivo, na construção de uma suposta lógica que – se existe – pertence ao território dos (maus) sonhos. Brady Corbet (na verdade, um jovem ator mais conhecido por participações em filmes como “Melancolia” e “Violência Gratuita”) dirige como um mestre, explorando ousadamente os movimentos de câmera e a trilha musical (de filme de terror), cedendo pouco espaço para a comodidade da plateia – mesmo aquela acostumada à “produção de arte”, a qual certamente preferiria o jogo de reações condicionadas e esquematismo típico a uma produção como “ A Fita Branca”, por exemplo, cujo material de partida guarda alguma semelhança com o de A Infância de um Líder.
Lançando mão de elegantes referências (o garotinho resiliente em sua androginia é clara alusão ao Tadzio de “Morte em Veneza”, ainda o título definitivo sobre a decadência europeia), Corbet dialoga ora com o rigor e niilismo tipicamente kubrickianos (a relação mãe-filho, bem como a tensão com a figura paterna, remetem ao triângulo familiar de “Barry Lyndon”), ora se insere no retrato tradicional da decadência europeia de Visconti e Pasolini, mas aonde chega é certamente uma paisagem nova: são poucos os filmes que conseguem ser fiéis ao “espírito de uma época” ao mesmo tempo que desperdiçam pouco de sua metragem com elaboradas explicações sociológicas (como alunos aplicados implorando pela atenção do professor).
Ainda que escorregue ao responder a um anseio narrativo (propondo um clímax desnecessário e inverossímil, durante o jantar de confraternização próximo de sua final), o filme recupera-se logo depois em mais um insight de pesadelo (e que coloca o astro Pattinson num segundo papel, ainda mais ligeiro que o primeiro, numa cartada possivelmente justificável pela necessidade de financiamento), uma cena vigorosamente filmada e que faz qualquer amante do cinema (acima de ideologias universitárias e algoritmos dos grandes estúdios) querer mais disto: a incômoda vibração entre imagem e som em movimento, ora incompreensível, ora ruidosa, onde as perguntas superam as respostas, mas diante da qual é impossível fechar os olhos.