Embora lançado brevemente após os atentados de 11 de setembro de 2001, o original “A Identidade Bourne” (2002), adaptação do romance de Robert Ludlum, foi posteriormente compreendido e incorporado junto ao esforço da indústria do entretenimento em assimilar uma nova conjuntura geopolítica que fugia bastante do retrato habitualmente entendido como uma pacificação institucionalizada relacionada aos conceitos de “fim da história” e “nova ordem mundial”.
Como era de se supor, numa indústria dominada por executivos e cabeças pensantes formadas no ambiente universitário tipicamente progressista que impera na educação superior (aqui e lá fora), não demoraria a Bourne virar uma espécie de símbolo solitário anti-imperialista, num novo esforço generalizado de culpar, dentro do ambiente da ficção, os próprios norte-americanos e, por tabela, toda a civilização ocidental, por qualquer mal vindo de fora que eventualmente a aflige.
A crítica internacional, por sua vez, tratou de enxergar em Paul Greengrass, diretor da continuação “A Supremacia Bourne” (2004), algum tipo de novidade estética que pudesse, de toda forma, acompanhar o suposto vanguardismo político da franquia, atribuindo ao diretor o estabelecimento de um novo estilo (baseado na instabilidade provocada nos eixos do enquadramento, sem, contudo, perder a distância focal e o centro da atenção do plano), que na verdade é anterior a ele e pode muito mais corretamente ser atribuído ao trabalho de câmera proposto durante anos pela série policial “NYPD Blue” (1993-2005).
Tudo isso não justifica, mas possivelmente explica, por que uma franquia tão corriqueira quanto esta possa ter adquirido ares de grande arte dentro de um gênero não raramente desprezado pelos críticos, muitas vezes procurando como loucos justificações políticas para suas eventuais preferências cinematográficas.
Agora em 2016, o personagem ressurge depois de idas e vindas em três outras versões (a primeira, dirigida por Doug Liman, e as duas subsequentes por Greengrass) e uma versão que abre outra linha narrativa (esta, dirigida por Tony Gilroy e dispensando o protagonista original).
No novo enredo, o diretor da CIA Robert Dewey (Tommy Lee Jones) comanda a caçada ao agente renegado Jason Bourne (Matt Damon), após a deserção da analista de informações Nicky Parsons (Julia Stiles), usando para isso as habilidades de campo de um homem de operações (chamado banalmente de Asset e vivido por Vincent Cassel) e de uma nova analista, a arrivista Heather Lee (Alicia Vikander, o destaque do elenco, em atuação repleta de nuances). Em trama paralela, Dewey pressiona um megaempreendedor da web (Aaaron Kalloor, vivido por Riz Ahmed) para que use seu portal para compartilhar informações com os serviços de inteligência norte-americanos.
Um filme de ação que, de alguma maneira, pretende também oferecer um recorte da realidade, não pode abrir mão, contudo, de cenas de ação que privilegiam o frenesi de perseguições e explosões aos momentos de maior respiração (e, eventualmente, algum raciocínio mais elaborado da parte do espectador). Este Bourne é amarrado por duas grandes sequências de ação, uma logo no início, em Atenas, e uma perto do desfecho, em Las Vegas. São como duas vigas que procuram dar sustentação à trama e onde o diretor pretende dar satisfação do orçamento acima de 100 milhões de dólares para, nos intervalos, expor sua visão a respeito dos problemas (reais) dos quais o filme apresenta discreto testemunho.
Sempre que personagens dentro do ambiente ficcional remetem a pessoas e situações que existem ou existiram fora das telas, o filme expande seu próprio universo, de certa forma exigindo da audiência que (mesmo involuntariamente) faça uma analogia com aquilo que o enredo diz e mostra com aquilo que se sabe – ou que eventualmente se poderia saber – a respeito do tema. No caso de “Jason Bourne”, que cita vagamente o nome de “Snowden” (Edward Snowden, um ex-funcionário da NSA – Agência de Segurança Nacional do Governo dos EUA – que veio a público revelar metodologia de vigilância usada pelos órgãos de defesa de seu país e que, hoje, vive em asilo temporário na Rússia) para localizar os conflitos, estamos lidando com o ruído permanente entre o que os governos querem obter de informação a respeito das atividades de seus cidadãos (e quais meios são usados para tal fim) e o quanto se pode ou não confiar no uso que se faz dela.
Embora seja, na maior parte do tempo, ligeira e discreta, essa referência direta à realidade geopolítica obrigaria a produção (na verdade, uma “superprodução”) a ser mais expositiva e fiel, o que não ocorre – ou porque a direção de Greengrass está mais interessada em colocar os personagens para apostar corrida, ou porque ela falha a respeito da acuidade naquilo que expõe. O momento no qual tal falha fica mais evidenciada é na quase interminável sequência que mostra os protestos em Atenas, quando superficialmente elaborada ambientação exibe inumeráveis bandeiras gregas entre os manifestantes, mas convenientemente se esquece de produzir também um número equivalente de bandeiras vermelhas, o que altera a percepção do espectador em relação ao que realmente aconteceu – como se sabe, um movimento com protagonismo da extrema esquerda e dos sindicatos do funcionalismo público ligados a esta na Grécia. O espectador mais atento eventualmente verá até uma suástica entre os “black blocs” gregos, mas a foice e o martelo mantêm-se em segundo plano, imperceptíveis.
O filme peca não só nesse registro da realidade como também em propor um desenrolar da trama dentro de terreno mais estrito regido pela verossimilhança (e não por uma abordagem fantasiosa da “realidade”). Em ao menos dois momentos os roteiristas (entre eles o próprio Greengrass) jogam a razoabilidade pela janela: o segundo, não revelarei aqui porque é um momento crucial da trama e está localizado próximo a seu desfecho. O primeiro, por sua vez, pode ser apontado: é quando o bilionário do ambiente digital (Kalloor), uma figura popular e seguida constantemente por fãs e paparazzi, acha uma brecha em sua agenda para tomar um cafezinho na lanchonete da esquina com o homem forte da CIA, trazendo à tona a relação que eles mantêm e que deveria, supostamente, permanecer sub-reptícia para coerência interna da própria história.
Embora esta seja uma falha de roteiro, sabemos que ela não é inusual em filmes com ambientação parcialmente transcorrida em “ambientes virtuais”: trocas de mensagens criptografadas, hackeamentos, segredos binários trancados aos quais apenas gênios da computação seriam capazes de decifrar, parecem, contudo, ser insuficientes para construir por si só o desenrolar típico da narrativa cinematográfica, que muitas vezes tem de recorrer ao bom e velho “olho no olho” (ou plano e contraplano), obrigando a plateia a ignorar que, naquele momento preciso, os meios de vigilância (dos quais o próprio filme deseja dar testemunho) também estariam em funcionamento, impedindo qualquer possibilidade de esse tipo de situação (como o encontro entre Kalloor e Dewey) ser mantida em sigilo – conforme o filme quer, ingenuamente, fazer crer.
Um filme como “Jason Bourne”, então, mantém seu interesse e a plateia em suspensão não pelo que ele supostamente oferece de “real”, mas muito mais por aquilo que, embora fantasioso, é apresentado como “realístico”. No caso, são especialmente as perseguições motorizadas, nas quais a expertise hollywoodiana faz seus inevitáveis solos para o público. Nesse sentido, o novo Bourne – tal qual, na verdade, seus antecessores – insere-se numa tradição de cinema em movimento cujo tributo deve ser pago a pelo menos dois filmes: “Operação França”, o clássico de 1971 dirigido por William Friedkin (e brilhantemente sucedido pela continuação “Operação França II”, de 1975, com direção de John Frankenheimer) e “Ronin”, a ainda insuperável produção dentro do subgênero lançada em 1998 e também dirigida com absoluta maestria por Frankenheimer.
Embora realizado décadas após estes três sucessos, “Jason Bourne” compartilha com eles, numa época em que boa parte do fenômeno cinematográfico dentro da indústria acaba reduzida (ou sintetizada) em programas de computação, a experiência física, mecânica, da filmagem em ambientes reais (ou que ao menos se parecem tão reais quanto seria possível), abrindo mão da aparência de videogame em benefício de uma encenação vibrante onde os atores têm papel decisivo (onde uma eventual projeção em 3D, por exemplo, revela-se totalmente dispensável). Aqui, eles estão absortos num emaranhado de proezas físicas que se alternam, entre explosões e tiros, de modo que seu elemento mais humano não é trazido pelos diálogos reduzidos (ainda que estes tenham por objetivo revelar suas emoções e sentimentos escondidos), mas pelo sofrimento físico, pelo cansaço, pelo atrito entre os corpos e o ambiente que os cerca, o que confere ao filme uma veracidade que nenhum discurso politizado seria capaz de propiciar.
Ao drama originalmente proposto por Robert Ludlum, faltam o cinismo e a maturidade política que sobram em outro autor de espionagem: Frederick Forsyth, este o grande mestre literário do gênero e autor de livros que também resultaram em bem-sucedidas incursões cinematográficas (“O Dia do Chacal”, “Cães de Guerra, “O Dossiê Odessa”).
Seria demais pedir a Greengrass que ele tocasse além da superfície em pontos críticos da discussão na qual ele pretende estar inserido, como por exemplo o fato impossível de ignorar de que Snowden (um símbolo da “resistência” dos indivíduos à intromissão do governo) seja hoje protegido por aquele que é possivelmente o mais atuante e tentacular serviço de inteligência em funcionamento (o dos russos). Ao enfrentar tal conflito sem rodeios, o cineasta abriria uma infinidade de outras portas para reflexão dos espectadores (e não é esta sua intenção?). Por outro lado, é justo poupar o filme de qualquer análise ideológica mais aprofundada.
Por mais que os críticos queiram fazer deste Bourne um panfleto que possa ser usado em sua pregação política, por mais que o próprio Greengrass gaste seu idioma tentando tornar a superprodução em algo mais relevante do que realmente é, o que resta na tela é uma trama onde, o tempo todo, os personagens colocam em atrito sua obrigação para com as instituições e o mundo exterior e a fidelidade quanto a si mesmos, ao seu mundo interior, repleto de memórias (perdidas e recuperadas), sentimentos familiares e dúvidas morais. É talvez nesse ponto que o filme finalmente se converta num libelo político, e não quando exibe um balé distorcido e incompleto contra a atuação da Troika na Grécia.