Entre as frases que povoam o livro Notas sobre o cinematógrafo, podemos encontrar algumas como: “A utilização dos meios do teatro leva fatalmente ao pitoresco do olhar e do escutar”; “Expressão por compreensão. Colocar numa imagem o que um literato diluiria em dez páginas” ou ainda “Música. Ela isola seu filme da vida de seu filme (deleite musical). Ela é um possante modificador e até destruidor do real, como álcool ou droga”. O que poderia ser mero diletantismo nas mãos de um cineasta menos rigoroso, abundantes no cinema contemporâneo, torna-se a linguagem aproximada da perfeição humana pretendida por Robert Bresson.
Filmou da década de 30 até a de 80, quando morreu, e a cada filme mostrava – na redundância que surge para trazer questionamentos valoroso – a busca pela depuração máxima, filmes cada vez mais mínimos. Nesse movimento gradativo, quando Bresson passa a fazer filmes coloridos, algo em sua essência parece mudar. Os roteiros saltam de escritores franceses como Georges Bernanos (Diário de um Padre e Mocuhette, a Virgem Possuída) para um tom cada vez mais pessimista e seco. Dos cinco filmes coloridos que encerram sua carreira, só dois não são adaptações literárias de Dostoiévski ou Tolstói: O Diabo, Provavelmente e Lancelot do Lago. Ainda assim, são dois filmes em que as questões caras aos mestres russos reverbera exemplarmente.
Após essa curta introdução, é mais fácil de digerir os primeiros instantes de Lancelot: dois cavaleiros lutam, a câmera acompanha o peso das espadas. Um é decapitado, seu sangue escorre líquido, vibrante, jorra com força, como urina. Cavalos aparecem e contemplam mais dois curtos e secos assassinatos. Dois esqueletos de armadura enforcados aparecem no caminho dos cavaleiros: são um aviso. A partir desse instante, só há morte.
Em seguida, vemos corpos queimando e um oratório e velas são derrubados, antes de entrar um letreiro (“Après une suite d’aventures qui relèvent du merveilleux…”, isto é, depois de uma série de aventuras enquadradas no maravilhoso…) e afirmar de vez que esse é um filme póstumo. Não de Bresson, mas da própria saga arturiana. Uma camponesa afirma: “O presságio é o mesmo para todos eles”. Os Cavaleiros sobreviventes estão retornando da busca pelo Santo Graal de mãos vazias. Teria sido a busca em vão? Qual o valor da honra dos cavaleiros? A incerteza se instaura como um dos pilares do filme, contagiando o tema da fé cristã em plena época medieval.
Lancelot do Lago é um filme muito telúrico. A câmera está desde o início preocupada com o que se passa na terra: foca nas patas dos cavalos, no andar empostado dos cavaleiros. O som é duro, a trilha sonora ausente ressalta o retinir das armaduras e a solidão crescente dos diálogos, alegoricamente dos personagens e seus atores. Ou melhor, “modelos”, como nomeava Bresson. Porque são isso mesmo, pessoas desconhecidas, fora de qualquer star system, não são atores famosos, seguidores de qualquer método de atuação, inexpressivos, austeros. Cada cena tem pouco de contemplação, de pausa nos diálogos, o que incrementa o caráter anti-apoteótico, mais do que anti-teatral. Isto é, o fato dos atores praticamente vagarem pelas cenas ressalta o aspecto do travamento das personagens.
Com a Távola Redonda incompleta, não se fazem mais reuniões, não há senso de unidade. Sem a configuração circular, em que as lideranças se diluíam, as relações tornam-se pontiagudas, com a mesma natureza lancinante das espadas e lanças. Lancelot, cavaleiro da rainha Genebra, vive com ela a tensão do amor carnal e do amor cortês. Mordred (nome que significa “mau conselho”) entra em conflito com Lancelot e Gauvain. O Rei quase não aparece em cena. Não há governo, senão o da intriga.
Um dos momentos chave que demonstra isso é o da participação de Lancelot em um torneio, onde ele exibe toda a sua habilidade como guerreiro. São seis longos minutos, que parecem ainda mais longos pela repetição. A cada cavaleiro que surge, sobe-se uma bandeira – reforçando presença do dever perante uma autoridade nobre – as trombetas são tocadas e é mais um cavaleiro no chão. Quase não vemos o choque da lança e do escudo, mas mais a surpresa da plateia. Sabemos que é Lancelot pela cena anterior ao torneio e também pela conversa entre Gauvain e o Rei. Porém, visto que não há um só segundo em que o rosto de Lancelot aparece, a cena é tão elíptica quanto todo o resto do filme.
Só muitas cenas depois é que o rosto do cavaleiro é revelado, quando é recolhido ferido por uma camponesa – a mesma do aviso no começo do filme. “Mas eu estou vivo e vou partir”, afirma Lancelot. “Então vá, e morra”, responde a camponesa. Seu dever é mais com a rainha do que com o rei. Diante dos perigos da extinção, sua e da ordem dos cavaleiros, só resta a opção de cumprir seu dever. Acaba perdendo o amor sensual da rainha e vai lutar por Arthur quando Mordred se rebela com outros contra a autoridade.
O presságio se cumpre para todos. No meio da floresta, os exércitos se movem. Não há a grandiosidade da floresta que acaba com o reinado de Macbeth, mas algo mais próximo do que Manoel de Oliveira viria a fazer dezesseis anos depois com Non ou a Vã Glória de Mandar. É uma batalha sem qualquer noção de heroísmo, sem qualquer objetivo senão o da autodestruição.
Através dela, o homem pode chegar à transcendência, como é até comum aos personagens de Bresson (o burrinho Balthazar, Mocuhette, Charles…). É também quando fica clara a analogia da câmera com o cavalo: o animal está para o cavaleiro, assim como o olhar da câmera está para o filme. Com a pilha de mortos, o sangue jorrando, pode o homem deitado em sua tumba profana, junto de seu rei e seus companheiros de aventuras, finalmente ver a beleza do céu cinzento no qual voa suavemente uma ave negra. Lancelot suspira por Genebra. A espada fincada no chão forma a silhueta de uma cruz. E morre na terra.
Lancelot do Lago (Lancelot du Lac, França, Itália, 1974)
Direção: Robert Bresson
Elenco: Luc Simon, Laura Duke Condominas, Humbert Balsan, Patrick Bernhard
Gênero: Drama histórico, Romance
Duração: 85 min.