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Crítica | Les Misérables no Teatro Renault

Os Miseráveis é, incontestavelmente, uma das obras literárias mais impactantes da História da Literatura. Ao lado de épicos como Guerra e Paz, a obra-prima de Victor Hugo atravessa décadas para contar a história do miserável Jean Valjean e da vida sofrida de todas as pessoas que cercam o trágico herói penitente. Um best-seller já no lançamento em 1862, a obra ganhou inúmeras adaptações para televisão, rádio e ao cinema. Era questão de tempo até chegar uma versão musical que abalaria o mundo.

Apenas 118 anos foram necessários até Robert Houssein, Claude-Michel Schonberg e Alain Boublin fazerem História em 1980 com o primeiro musical inspirado na obra. O sucesso explodiu tão rapidamente que, em pouco tempo, chamou a atenção do muito famoso produtor Cameron Mackintosh para uma montagem inglesa que deu origem à versão da Broadway em 1987.

Depois de 16 anos, o musical retorna ao Brasil em sua segunda edição claramente inspirada pela revisão de 2010 apresentada no Royal Albert Hall. Esse aguardado retorno carrega um importante significado visto que esse foi o primeiro musical a inaugurar o chamado Teatro Abril – hoje é Teatro Renault.

Mas será que quase duas décadas e uma boa revisão deram mais fôlego para este retorno muito querido após o sucesso do filme de 2012? Infelizmente, mais ou menos.

Foto: Marcos Mesquita

Petit Problèmes

Algo que basicamente nem a versão musical de 2012 consegue realizar com alguma proeza, se repete aqui com o programa do espetáculo – o livreto disponibilizado ao público para conferir informações pertinentes sobre a produção. O erro primário é a falta de qualquer informação sobre o contexto histórico da obra em questão.

Com pouco esforço, o espectador pode cometer o erro crasso de acreditar estar vendo uma narrativa pré-Revolução Francesa – a narrativa em questão não deixará essa informação clara em momento algum. Acredito que o público não tenha a menor obrigação de procurar o contexto histórico. Justamente por isso muito me surpreende não termos a informação à disposição que consegue dar uma base muitíssimo valiosa para entender o clima miserável que a França passou durante boa parte do século XIX.

Aproveito aqui então para oferecer esse muitíssimo breve panorama histórico. A narrativa se passa pós-Revolução Francesa de 1789. A Revolução consegue abolir a monarquia, mas dá origem ao Grande Terror de Robespierre até sua execução em 1794. Muito pouco se desenvolve nesse período de marasmático de transição entre a Revolução e o Império de Napoleão Bonaparte.

Em 1814 até 1815 o Império é desmantelado e Luís XVIII retorna de seu exílio de 23 anos instaurando uma nova monarquia que resulta em total decadência urbana e social, praticamente enterrando os ideais iluministas gerando diversas revoltas de barricadas conhecidas como a Revolução de Julho de 1830 derrubando a monarquia de Carlos X substituída pela Monarquia de Julho do Rei Luís Filipe I de França.

Como se tratava de um governo ainda muito recente, os movimentos de rebelião de 1832 ganharam pouco apoio público de uma população já muito cansada por conta de um período tão turbulento. É justamente no motim de 1832 e nas barricadas da Rua Saint-Denis que ocorre o clímax da narrativa. Ter essa informação já ajudaria consideravelmente para entender o completo clima de decadência, da opressão de figuras com pequenos poderes como a de Javert e do capataz da alfaiataria, da significante fome e crise econômica e da importância do florescimento do amor entre Cosette e Marius em contraste aos cenários sangrentos de uma revolução completamente perdida e flácida cujo custo foi completamente em vão. Importante lembrar que a rebelião foi motivada pela morte do General Lamarque (figura importantíssima deste período, pois era o único que fazia frente para que esta monarquia não retornasse aos moldes do antigo regime) após ter contraído cólera (mesma doença que mata Fantine).

A própria montagem da peça falha em nos situarmos entre os diversos anos que a peça percorre indo de 1815 até 1832 – a boa maquiagem de envelhecimento para Daniel Diges que interpreta Jean Valjean nos ajuda a enxergar as mudanças súbitas dos anos, além da mudança óbvia das atrizes de Cosette e Eponine.

Foto: Marcos Mesquita

Narrativa Miserável

Esse contexto é mais que vital para compreender a narrativa da peça, afinal não estamos ali apenas para apreciar o majestoso trabalho musical e da tradução das letras das canções.

Apesar de reconhecer o quão feliz é o livreto por condensar a história deste enorme épico para um entretenimento com pouco mais de duas horas e meia, essa segunda edição da Os Miseráveis no Brasil já é muito prejudicada no primeiro momento que Daniel Diges começa a cantar.

Diges é um excelente ator, não há dúvidas da disposição dele para atingir as notas exigidas, além da profunda e energética performance traduzida pela expressão corporal mais do que adequada ao personagem. Entretanto, Diges é um ator espanhol e apesar de todo o esforço de aprender a cantar em português, simplesmente o resultado não é aceitável. A dicção e pronúncia das palavras tornam suas falas praticamente incompreensíveis, infelizmente.

Logo, não somente o prólogo da peça é completamente prejudicado, mas todas as cenas que Diges aparece. Encarregado em encarnar o protagonista Jean Valjean, não é preciso dizer que a narrativa se torna uma bagunça para o espectador mais preocupado com a história do musical.

Então, quando se perde mais do que a metade da narrativa, o que resta? Por incrível que pareça, muita coisa na verdade. Apesar de já ter me surpreendido negativamente, a peça possui uma montagem sensacional que consegue aliar as projeções que substituem as pinturas de fundo com os cenários tão bem construídos – mesmo que seja uma montagem mais tímida quando comparada a magnificência de outros musicais que já pintaram no Teatro como A Bela e a Fera, O Fantasma da Ópera e A Família Addams.

Nando Pradho é uma força da natureza em Les Misérables. Foto: Marcos Mesquita

Força Coadjuvante

Felizmente, não demora nada para vermos uma performance realmente espetacular: Nando Pradho como Javert. Com todo o respeito aos outros atores de diversas montagens que a peça teve ao redor do mundo, mas me parece que Pradho está fazendo um dos melhores Javert da história deste musical. O ator dá a perfeita impressão de ter compreendido muitíssimo bem a essência do personagem e consegue transformar suas ações no palco conforme seu desenvolvimento é delineado.

Javert é apresentado sempre com rimas fechadas que acompanham o riff rígido e matematicamente simétrico trazidos com afinco pela orquestra. Entretanto, após tantos fracassos em capturar Jean Valjean, o único erro de sua carreira, Pradho passa a formar expressões mais cansadas e lentas de um Javert indignado e claramente derrotado que somente ganha luz e vida justo na cena de seu suicídio – aproveito aqui para elogiar o quão sensacional é a realização do truque do salto ao Sena fabricado com o esforço conjunto de técnicos de som, iluminação e projeção além da remoção de partes do cenário.

Ao entender que possui um dos personagens mais bem escritos da literatura ocidental, Pradho conseguiu, possivelmente, a melhor atuação de sua carreira até agora. Somente sua performance já justifica o custo do ingresso. Para ele só me restam os parabéns. Absolutamente perfeito.

O elenco coleciona talentos como Kacau Gomes que domina com facilidade a música mais difícil de toda a peça I Lived a Dream (Eu Tive um Sonho), além de apresentar um retrato muito valioso do sofrimento da injustiçada Fantine. Toda a encenação para a canção é pensada para valorizar o trabalho da atriz que consegue preencher o teatro mesmo estando completamente sozinha no palco apenas com focos de iluminação simples (e eficientes).

Antes de Eu Tive um Sonho, também há a segunda encenação mais rica de toda a peça. A performance do ensemble para Lindas Moças é excelente (apesar dos tons muito agudos em excesso). Destaco o trabalho de atrizes que criam ou são dirigidas para criar pequenas narrativas enquanto a desgraça de Fantine é encenada pelos atores principais da cena. A cena se passa em uma rua que concentra os bordeis de Paris e absolutamente todo o cenário é aproveitado para dar a ilusão da força sobrepujante da imoralidade que esmagará Fantine até sua morte.

Algumas atrizes aparecem simulando atos sexuais nas janelas das construções, além de outras oferecerem detalhes geniais como passar as mãos nas genitálias para aliviar a dor da laceração vaginal, além de oferecerem passos curvados que revelam cólicas e outros ferimentos que vão além do psicológico. Esses pequenos detalhes enriquecem figuras que seriam insignificantes. Não se trata de uma encenação cheia de pesos mortos parados em suas marcações.

Entretanto, nada supera o divertimento causado pelo número Seu Anfitrião (Master of the House) no qual Ivan Parente e Andrezza Massei contagiam o público com o carisma proporcionado para os alívios cômicos dos Thénardier. Além da encenação ser muito boa e inteligente, o número é dominado pela cantoria afinada dos atores que se permitem sair um pouco do texto para alegrar o público. Entretanto, mesmo apreciando o núcleo, acho que há um leve excesso desses dois personagens – isso se trata desta versão de Mackintosh, em uma história tão densa com tanto drama. Os alívios não chegam a prejudicar, mas podem virar uma presença incômoda principalmente nas cenas finais pós-rebelião.

Foto: Marcos Mesquita

Sem Escapatória

Infelizmente, sabendo dos ditames da montagem e da adaptação, é muito difícil se distanciar do texto importado. Porém é nítido como a peça perde força em sua segunda metade. Mesmo possuindo canções belas, muitas reciclam os tons melódios das principais que já foram apresentadas na primeira parte.

Também há sempre o núcleo consideravelmente chato do triangulo amoroso entre Cosette, Éponine e Marius. Há boas performances sim por parte de Clara Verdier, Laura Lobo e Filipe Bragança, mas não se trata de algo realmente espetacular que te desperte durante as muitas canções que eles participam. Na exibição que fui, foi possível ver Laura um pouco mais inspirada para a cena de sua trágica morte nas barricadas embalando com tons corretos para Só pra Mim e A Chuva Cai, as músicas responsáveis em desenvolver e concluir a personagem.

Creio que seja algo sempre sem escapatória para a segunda metade da obra que fica restrita a núcleos com conflitos muito abstratos. Só sabemos que Marius e os revolucionários batalham por igualdade enquanto exibem uma quantidade exorbitante de bandeiras vermelhas e poucas da França. Logo, é um conflito muito menos pessoal e de fácil identificação como a de personagens mais eficientes como Jean, Javert e Fantine. A divisão entre o amor e a revolução também é um arco muito apressado na versão de Mackintosh que acaba por prejudicar o drama de Cosette e Marius.

Ainda há ótimas passagens para a conclusão dos personagens, mas de modo geral, a primeira parte concentra a maior força do musical. O ponto alto aqui fica por conta das batalhas na barricada com boas pirotecnias e um jogo muitíssimo inteligente de iluminação para demarcar a matança e sanguinolência.

At the end of the day

Ao final desse texto, o que podemos concluir desta segunda edição de Les Misérables no Teatro Renault? É evidente que se trata de um bom espetáculo musical, mas que não atinge todo o seu potencial. Os problemas já citados no texto podem lhe fazer considerar melhor se o espetáculo vale o ingresso.

Entretanto, não o deixaria de recomendar por dois motivos muito simples: Nando Pradho está absolutamente fenomenal, Os Miseráveis foi, é e sempre será uma das histórias marco da humanidade. E a adaptação musical não deixa nada a dever em relação ao conteúdo original. Também há a enorme satisfação de ouvir o trabalho primoroso da orquestra com as canções mais que marcantes deste grande clássico do Teatro.

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Publicado por Matheus Fragata

Editor-geral do Bastidores, formado em Cinema seguindo o sonho de me tornar Diretor de Fotografia. Sou apaixonado por filmes desde que nasci, além de ser fã inveterado do cinema silencioso e do grande mestre Hitchcock. Acredito no cinema contemporâneo, tenho fé em remakes e reboots, aposto em David Fincher e me divirto com as bobagens hollywoodianas.

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